Depois de certa idade…

Sylo Costa (*)

Meu saudoso pai, exemplo de sensibilidade, dizia sempre que “a felicidade está diretamente ligada à ignorância”. Não à ignorância da brutalidade, mas àquela ignorância do não saber. Papai era um cearense “retado”. Médico, formado na Bahia, terminou o curso com uma bolsa de estudos que lhe foi dada pelo Ministro da Educação Francisco Campos, que atendeu um pedido da turma de 1932, composta, de acordo com o convite de formatura em meu poder, por 73 formandos: 38 brancos, 17 negros, 14 baianos e quatro mulheres.

Panda albino

Coala albino

Bons tempos aqueles, em que não havia a perversidade da discriminação e podia-se brincar assim. Seu anel de grau foi presente dos colegas. Será que a sociedade em que vivemos comportaria esse modus vivendi? Hoje, quem chamar um negro de “negão” está discriminando o sujeito e pode ser processado na forma da lei, ou seja, aquilo que podia ser um tratamento carinhoso é crime hediondo. Pode-se xingar de fdp, ladrão, cavalo, égua etc. Mas bicha ou macaco é discriminação, e lá vai o perigoso criminoso para a cadeia.

Eu tinha dois amigos em Salinas que atendiam pelo nome de Negão. Um morreu, o outro está vivo e reside em São Francisco, lugar na barranca do Velho Chico, abençoado por Deus e bonito por natureza. Há muito não o vejo e não sei como chamá-lo quando o encontrar. Não que ele não entenda, mas outro “aragaço”(1) que, porventura, esteja por perto certamente vai reparar. O país está assim: um saco.

O Congresso Nacional, composto por homens, mulheres e muita gente boa, religiosos ou não, bichas e dissimulados, mensaleiros e ladrões comuns, está que é uma sensibilidade só… Agora, estão discutindo sobre maioridade. Uns querem que ladrõezinhos de 17 anos sejam tratados como “de menor”, outros mais pés no chão, não. Tanto faz bala 22 ou 38 para fazer defunto. Mas não.

Os desocupados de ongs, direitos humanos e outros modismos enchem o saco de qualquer um. Ô paiseco de… deixa prá lá. Se eu não estivesse com “idade avançada”, me mudaria para qualquer outro lugar onde não houvesse petistas de todas as espécies e padrecos comunistas disfarçados de intelectuais pregando aos incautos…

Cavalo albino

Cavalo albino

Agora, para completar o rol de sensibilidades de que estamos possuídos, alguns legisladores, pessoas que se dizem normais, querem tornar “crime hediondo” qualquer manifestação que expresse simpatia ou desejo pela volta dos militares, ou seja, mais ou menos o que acontece na Alemanha, onde não se pode, por outras razões, discutir sobre o Holocausto. Nossa liberdade de expressão está condicionada ao modismo desses brasileirinhos sensíveis que têm medo de polícia e de lobisomem…

Um dos sentimentos que mais me maltrata é a decepção, e eu vivo hoje, como brasileiro, decepcionado com a vida, não a minha vida, mas a vida vivida no Brasil, o que me faz lembrar um salinense ranzinza que, cerrando os dentes, dizia: “Ô Sylo, qué sabê? Se lugá fô lugá, isso aqui num é um lugá”. Também acho…

(*) Sylo Costa é homem político mineiro. Assina coluna semanal no jornal O Tempo.

(1) No norte de Minas Gerais, dá-se o nome de aragaço aos albinos.

O Garcia

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 set° 2014

Sapato 1Antes de começar, lanço uma advertência daquelas que aparecem em começo de filme: «Toda e qualquer referência que possa evocar alguma pessoa viva ou falecida terá sido mera coincidência.» Isso posto, vou-lhes contar como se anunciava, tempos atrás, uma liquidação de mercadoria ― prática hoje extinta e suplantada por «sale», que é expediente mais moderno.

Faz meio século, ferramentas de marketing eram primitivas. Venda especial se anunciava no grito. Seu Garcia, comerciante de calçados que cheguei a conhecer, fazia frequentes liquidações. Provavelmente já tinha intuído certas manhas de mercado hoje evidentes. Quando decidia vender artigos a preço de banana, punha-se à porta da loja, batia palmas e apregoava: «Entre, minha gente! Deu a louca no Garcia!».

Clap clapFaz alguns dias, tomei conhecimento de um anteprojeto de lei que me fez lembrar o velho calçadista. A notícia, espantosa, apareceu no mui oficial site do Ministério da Justiça. O longo texto de 52 páginas, concebido por comissão de sábios nomeada pelo próprio ministério, será submetido em breve ao Congresso Nacional.

Em 114 artigos, o «Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil» desconstrói, logo no prólogo, o conceito de «estrangeiro», considerado pejorativo em nossa cultura. A ousada afirmação carece de sentido num país onde tudo o que vem de fora é visto como superior.

Em vez de estrangeiro, elege-se a palavra «migrante» como sucedâneo. São migrantes os que vão, os que vêm, os que se deslocam e até os que se supõe queiram deslocar-se. O clube das expressões politicamente incorretas ganha mais um membro: estrangeiro entra para o índex.

O ambicioso esboço de lei é abrangente. Faz varredura completa da área de imigração, emigração, aquisição e perda da nacionalidade, reagrupamento familiar, acolhida humanitária, outorga de asilo, concessão de visto. Sem sombra de dúvida, o calhamaço merece que o Congresso o examine com desvelo.

Sapataria 1De saída, um ponto salta à vista e causa espanto. O Artigo 1° define como apátrida todo aquele que não for considerado por nenhum Estado como seu nacional. Até aí, nada demais, que é definição universalmente aceita. O inacreditável vem agora. No Artigo 25, o anteprojeto concede nada menos que… a nacionalidade brasileira a todo apátrida que a solicitar. Assim, bondade pura, sem condições e sem contrapartida. Não há registro de que ideia tão arrojada tenha jamais ocorrido a algum legislador.

Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, por sinal citado no introito do texto, é impossível avaliar o número de apátridas no globo. Cálculos vagos dão algo em torno de 12 milhões de pessoas, mais do que a população do Rio Grande do Sul. Pode ser bem mais que isso.

Suponha agora o distinto leitor que nossos congressistas, num descuido, chancelem essa lei. A notícia há de correr mundo mais rápido que rastilho. Assim que o Brasil propuser, de mão beijada, a cidadania a todo apátrida que a solicitar, filas de dobrar quarteirão se formarão à porta de nossas representações diplomáticas. Garantido.

Sapataria 2E todos farão jus ao mimo ― é de lei. Embolsado o precioso passaporte, cada um dos novos brasileiros terá direito, naturalmente, a ser repatriado à custa da princesa. Chegados ao Brasil, os antigos estrangeiros ― com o perdão da palavra imprópria ― já serão brasileiros de direito pleno. Terão, assim, direito a fixar residência onde bem entenderem, a pleitear todas as bolsas, a votar e a ser eleitos. Não precisa muito esforço de imaginação para prever que sólidos bolsões de «migrantes» se formarão em determinadas regiões, grupos dentro dos quais língua e costumes originários se manterão. O anteprojeto favorece o surgimento de uma constelação de pequenas nações dentro do território nacional.

Longe de mim fazer, de princípio, oposição à imigração. Afinal, os antepassados da maioria de nós chegaram um dia de algum canto do planeta. Mas todo movimento de população tem de ser enquadrado. Grandes contingentes de forasteiros aportados de supetão tendem a se aglutinar. Não se aculturam da noite para o dia. Não passam a falar nossa língua nem a comer arroz com feijão no dia seguinte.

O interesse superior da nação brasileira não combina com um regime de portas escancaradas e boca-livre a quem chegar. O passaporte brasileiro é um bem precioso demais para ser oferecido por atacado. Não é mercadoria e não se encaixa em lógicas do tipo «Entre, minha gente! Deu a louca no Garcia!».

Virem-se, conterrâneos!

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

Sigismeno fica muito impressionado com as estrepolias que mãe natureza faz sem pedir licença a ninguém. Horrorizou-se com as cheias do Rio Madeira, no extremo oeste.

Ao ver que a presidente sobrevoava regiões alagadas, achou que ela teria feito melhor se tivesse utilizado um barco para se aproximar das vítimas da enchente. Teria sido um modo mais chegado de mostrar compaixão. Decisões presidenciais são, por vezes, mistérios insondáveis.

Ele ficou um bocado surpreso quando soube que a chefe do Executivo tinha insinuado que aquele desastre só podia ser obra de chuvas estrangeiras, que as nossas são bem-comportadas. E chuvas vão lá escolher onde preferem cair?

Acalmou-se ao ler o desmentido oficial que assegurava que jamais, em tempo algum dona Dilma diria tal enormidade. Chegou à conclusão que, certamente, devia ter ouvido mal.Rio Madeira

Sigismeno, que gosta das coisas certinhas ― pão, pão, queijo, queijo ― sentiu-se incomodado com um detalhe. Foi quando dona Dilma chamou as vítimas de «pessoas que estão em situação de calamidade». Econômico por natureza, meu amigo achou que era um desperdício de palavras. Uma só teria dado o recado: flagelados. Enfim, cada um se exprime como consegue.

Mas Sigismeno, que também não é um idiota total, ficou chocado quando soube que, num singular gesto de largueza, os mandachuvas tinham autorizado as vítimas das intempéries a sacar o Fundo de Garantia.

Ele sempre imaginou que aquele dinheirinho ― poupança forçada a que são obrigados todos os assalariados ― devesse servir de garantia para os velhos dias. Pensou com seus botões (mas suficientemente alto para que eu ouvisse) que era superfácil fazer caridade com o dinheiro dos outros.

Não pude deixar de concordar com ele. Ninguém se insurgiria se fosse liberada uma verba de emergência para ajudar os flagelados a atravessar este momento difícil. Mas incentivá-los a gastar o pecúlio que vai fazer falta mais tarde pareceu, a meu amigo, medida criticável e eminentemente antissocial.

Para um governo que se diz preocupado com o “social”, cai mal.

Os limites da igualdade

José Horta Manzano

Antes da Revolução Francesa, a estratificação da sociedade era rígida. O roteiro de cada um já era conhecido desde o nascimento. Filho de ferreiro se tornaria ferreiro. Filho de príncipe já nascia príncipe. Filho de agricultor seria necessariamente agricultor. O elevador social ainda não havia sido inventado.

Filho de peixe...

Filho de peixe…

Os acontecimentos destes últimos 200 anos aceleraram o ritmo de transformação da sociedade. Embora enguice às vezes, o elevador da ascensão social já existe e costuma funcionar. Há que saber manejá-lo.

Substituído pela indústria, o ofício de ferreiro praticamente desapareceu. Para usar a mesma metáfora, direi que filho de metalúrgico já não nasce predestinado a seguir a profissão do pai. Pode até fazer sucesso no ramo de telecomunicações, por exemplo. (Tivemos, aliás, um exemplo. De notoriedade nacional.) Da mesma maneira, nada impede que um filho de agricultor possa vir a ser doutor.

Estes últimos anos, a busca frenética da igualdade tem levado muita gente a forçar a mão. Certas palavras e expressões ― usadas no dia a dia havia séculos ― foram banidas. Cego, surdo, mudo, preto, aleijado, manco, mulato, velho & companhia são palavras a evitar. A etiqueta hoje manda substituí-las por um equivalente genérico. Mais complicado, um circunlóquio também serve. Seja.

Mas a eliminação de toda menção àquilo que foge à norma não elimina aquilo que foge à norma. Em outros termos: não basta silenciar sobre uma realidade para fazer que ela deixe de existir. Todo agrupamento humano é um conjunto harmonioso de seres diferentes. Por mais que me digam que estou na melhor idade, na terceira idade, na feliz idade ― nada disso me fará rejuvenescer.

Ser mais idoso que a média significa apenas que nasci antes, assim como tantos outros nasceram antes de mim e tantos outros nascerão depois de todos nós. Não deveria ser motivo de vergonha nem de orgulho. Não é qualidade a ostentar nem defeito a esconder. Não há palavra melhor para definir um velho que esta: velho.

O bom-senso indica que assim deveria ser com todas as outras minorias. Infelizmente, não é o que acontece. E é bom não transgredir, porque pode até dar processo. O brasileiro, grande fã de novelas, adora uma intrigazinha. Qualquer picuinha pode terminar num tribunal. Todo cuidado é pouco.

A Constituição de países civilizados costuma dizer que todos os cidadãos são iguais em direito. Em princípio, é frase vazia, que não funciona na prática. Mas continua lá. E, vez por outra, gera efeitos absurdos.

Semana passada, as autoridades do Estado americano de Iowa determinaram que, em nome da igualdade entre cidadãos, os cegos ― ou não-videntes, se preferirem ― estão autorizados a portar armas. O jornal Des Moines Register noticiou. Não estamos falando aqui de pessoas com leve disfunção visual. O direito se estende a indivíduos que não enxergam absolutamente nada.

... peixinho há de ser

… peixinho há de ser

Para mim, não faz sentido. Até para aplicar nobres princípios, como a igualdade de direitos, não se pode fugir ao bom-senso. Se não, chega-se a situações esdrúxulas como o direito de voto que o Brasil concedeu a seus cidadãos analfabetos. A alfabetização do povo é dever do Estado. Que cumpra primeiro seu dever, oferecendo instrução a todos, depois conversamos. Adolescentes e presidiários não têm o direito de votar. Por que analfabetos o teriam?

Há limite para tudo. Permitir a não-videntes portar uma arma de fogo é tão incongruente como seria conceder-lhes uma carteira de motorista.

Emergentes

José Horta Manzano

A raiz merg, que aparece no verbo latino mergĕre, não foi muito produtiva. Deixou prole escassa, hoje presente em meia dúzia de palavras em cada língua românica. Imergir, emergir e submergir são os membros mais ilustres da família. Seus derivados entram também na lista: imersão, submersível, emergência.

O étimo deixou também uma descendência de ares menos eruditos. São palavras que, com um jeitão mais pobre, caíram na boca do povo. Mergulho e seus parentes mergulhar e mergulhador estão entre elas. Mergulhão é nome usado para designar uma boa dezena de famílias de aves, desde o cormorão europeu até o biguá amazônico.

Esses pássaros têm todos em comum o fato de serem predadores aquáticos.Voando em alta velocidade, quase na vertical em direção à superfície da água, conseguem mergulhar até alguns metros de profundidade e, assim, capturar o peixe ou o crustáceo que lhe servirá de almoço.

Imergir e submergir indicam movimento descendente. Quem ou aquele que sai da água emerge, volta à superfície. Em princípio, para emergir, é preciso haver estado submerso.Imersão

Até não muitas décadas atrás, o planeta se dividia em alguns poucos países desenvolvidos e uma multidão de subdesenvolvidos. Era assim que se usava dizer. Mas isso foi num tempo em que se davam às coisas e aos fatos seus nomes verdadeiros, sem ter de recorrer a eufemismos «politicamente corretos». Saber que seu país natal era subdesenvolvido não ofendia ninguém.

De uns tempos para cá, subdesenvolvimento virou tabu. Ai de quem classificar assim um país! Lá pelos anos 80, os subdesenvolvidos foram promovidos a uma categoria superior, a de «países em desenvolvimento». A denominação mudou, mas chineses, indianos, indonésios e brasileiros continuavam a viver as mesmas agruras de antes.

Desde que o século XXI despontou, os grandes «países em desenvolvimento» começaram a sentir um certo desconforto ao serem classificados na mesma categoria de territórios miseráveis. Forjou-se então uma classificação intermediária. Apareceram os «países emergentes».

Segundo os critérios geralmente aceitos, são chamados emergentes os países que apresentam um forte crescimento do PIB, um nível relativamente elevado de industrialização e de exportação de produtos industriais, uma taxa importante de abertura ao exterior e um mercado interior em expansão. Muito poucos são os que correspondem a essas quatro condições. Em rigor, somente a China e, alguns degraus abaixo, a Índia preenchem os requisitos. Ninguém mais.

Nosso País chegou a registrar excepcional e constante crescimento do PIB entre 1960 e 1980. Depois disso, hesitou. Hoje, praticamente estacionou.

A industrialização brasileira cresceu impressionantemente a partir dos anos 1940. Continuou, sem parar, até o começo dos anos 1990. Hoje tentamos segurar, mal e mal, o que sobrou. Nossa luta atual se restringe a estancar ou, pelo menos, limitar a desindustrialização.

A abertura ao exterior nunca foi nosso forte. Importações e exportações têm sido historicamente entravadas por monoculturas, chicanas burocráticas, infraestrutura cronicamente deplorável.

Sobra-nos um mercado interior em expansão. Sim, é verdade. Mas é um mercado ironicamente ávido por produtos industriais ― e até agrícolas! ― vindos do exterior.

Há solução? Certamente. Só para a morte não há remédio. Mas os problemas acumulados são tantos e a vontade de resolvê-los tão escassa que, a curto prazo, não há grande esperança.

Por enquanto, o mais cômodo seria criar uma nova categoria de países. Na base da pirâmide, teríamos os que estão «em desenvolvimento» (leia-se os miseráveis). No meio, continuariam os «emergentes», aqueles que estão já mais pra lá que pra cá, quase chegando. No topo, como de costume, os «desenvolvidos».

E o Brasil como fica? Ora, que se invente uma categoria intermediária entre pobres e remediados. Poderemos chamá-la, por exemplo, «países em via de emersão». Com isso, voltaremos a nos ufanar de nossas conquistas. Sem ficar com a consciência pesada.

Politicamente correto estilo anos 60

José Horta Manzano

Você sabia?

Você acha que essa irritante moda do politicamente correto é novidade, uma importação recente? Pois prepare-se para uma decepção.

A GAZETA, São Paulo  -  20 jul 1961

A GAZETA, São Paulo – 20 jul 1961

Um movimento eclodiu neste Brasil brasileiro muitos anos antes de importarmos essa maneira estranha de nos comunicar, em que cada palavra tem de ser sopesada antes de ser pronunciada.

Um rascunho de cartilha politicamente correta foi apresentado décadas antes de trazermos, de importação, essa novidade tão distante do jeito irreverente de se exprimir de nossa gente.

Mais de cinquenta anos atrás, já havia gente enxergando o mal por toda parte. Na época, a solução preconizada era bem mais radical que hoje. Se, atualmente, certas expressões são apenas desaconselhadas, há meio século a ideia era francamente bani-las, removê-las do dicionário. ¡Vaya radicalismo! ― diriam nossos hermanos.

A capital paulista contou, durante mais de setenta anos, com um jornal de qualidade que, infelizmente, já desapareceu. Chamava-se A Gazeta. Circulou de 1906 a 1979. Quem se interessar em conhecer um pouco da história do jornal pode visitar esta página.

O professor Francisco da Silveira Bueno (1898-1989), filólogo e lexicógrafo, era autor do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, adotado no ensino público.

Em 20 de julho de 1961, o professor Silveira Bueno foi entrevistado por um jornalista da Gazeta. O assunto era justamente a ameaça que sofria seu dicionário de ser amputado de algumas palavras julgadas ofensivas.

Era o prenúncio dos tempos estranhos que vivemos. Já então, confundia-se o recado com o portador. Já então, imaginava-se ingenuamente que, eliminado o mensageiro, estaria automaticamente eliminada a mensagem.

É erro antigo que perdura. A língua é maior que dicionaristas. A língua pertence a seus falantes. Lexicógrafos e dicionaristas nada mais fazem que registrar fatos da língua, não são seus criadores, nem responsáveis por eles.

Inseri no post de hoje a entrevista de 1961. Ela se explica por si mesma, dispensa maiores comentários.

A GAZETA, São Paulo  -  20 jul 1961

A GAZETA, São Paulo – 20 jul 1961

Naquele começo dos anos 60, os Estados Unidos ― grande democracia ― ainda viviam tempos de segregação. Ainda se construíam banheiros públicos separados para pretos e para brancos, ainda se reservavam lugares para não brancos no fundo dos ônibus.

Está aí a prova do pioneirismo de nosso País. Para dizer a verdade, eu bem que preferia que tivéssemos sido os primeiros em outros campos mais proveitosos para a população, mas ― que fazer? ― não se muda a História.

Só mais um detalhe picante. Quem tiver a paciência de ler a entrevista de Silveira Bueno verá que a birra da época era contra a palavra negro, considerada, então, pesada e ofensiva. Os descendentes de africanos haviam de ser chamados de pretos, essa era a forma suave, delicada e correta.

O tempora, o mores!

Madame ou Mademoiselle?

Você sabia ?

José Horta Manzano

Por mais que se considerem progressistas e ‘prafrentex’, os franceses são bastante conservadores. No trato com terceiros, a coisa sobressai. Há dois níveis de tratamento: tu e vous, ambos da segunda pessoa.

O tu, mais íntimo, é utilizado em família, entre camaradas de escola, entre adolescentes. É usado também no círculo de algumas associações sindicais ou profissionais, ainda que às vezes soe forçado. Tu denota intimidade. Quando a gente se dirige a alguém com quem não tem intimidade, o tu soa artificial, obrigatório. O vous, mais formal, usa-se nos demais casos ― a maioria.

O uso da terceira pessoa, em voga até um século atrás, é hoje considerado preciosismo démodé. Simbolizava um excessivo respeito que já passou de moda. Frases como «Madame est servie» (A Senhora está servida = o jantar está na mesa), dita por serviçais, só é ouvida hoje em dia em filmes históricos. De toda maneira, poucos são os que ainda se podem dar ao luxo de pagar empregados domésticos.

As regras de uso de tu e de vous são muito rígidas. Há casos, comuns por aqui, que deixariam qualquer brasileiro boquiaberto. Suponhamos que um seu colega de escritório se sente habitualmente à mesa ao lado da sua. Se a empresa funcionar, como a maioria, à moda antiga, você e seu colega perigam passar 20 anos sentando-se todos os dias um ao lado do outro e chamando-se reciprocamente de vous mais o sobrenome. Bonjour, Monsieur Dupont! Bonjour, Monsieur Dubois! Esquisito para nós, não? Imagine só: bom dia, senhor Silva! Bom dia, senhor Souza!

Se o ambiente de trabalho for menos rígido, talvez você se sinta autorizado a chamar seu colega pelo nome. Nesse caso, teremos: Bonjour, Jean! Bonjour Paul! Mas não se engane: continuarão a se dizer vous até o fim dos tempos. Jamais ousarão transpor o muro invisível que retém as pessoas e as impede de entrar na intimidade da outra.

O que acabo de descrever é o caso genérico, representativo do estado de espírito mais disseminado. Evidentemente, há situações particulares em que o relacionamento pode funcionar de outra maneira.Bagues 1

Um homem será sempre chamado Monsieur. Basta haver saído da adolescência. Pouco importa se é casado ou não. Será sempre Monsieur. Já o mesmo não ocorre com uma mulher, não me pergunte por quê. Chegada à idade adulta, ela se apresentará como Madame, se já for casada. Ou como Mademoiselle, se não o o for. E assim será chamada. Atenção: esse termo de tratamento será sempre seguido pelo sobrenome. Se não, fica parecendo nome de vidente ou daquelas que os antigos chamavam «mulheres de vida fácil».

Mas o tempo passa e os costumes mudam. Faz anos que movimentos feministas denunciam a flagrante diferença de tratamento entre homens e mulheres. Por que todos têm de saber se uma mulher é casada ou não? Por que os homens escapam a toda inquirição sobre seu estado civil?

Depois de muita luta, senhoras e senhoritas conseguiram que uma lei fosse votada para acabar com essa diferença. Embora já estivesse em vigor desde fevereiro do ano passado, o instituto legal só alguns dias atrás foi definitivamente referendado pelo Conseil d’Etat, a mais elevada jurisdição administrativa do Estado francês.

Uma lei, por mais que queiram seus instigadores, não consegue mudar mentalidades da noite para o dia. Não se pode proibir que formas consagradas por anos de uso popular desapareçam por encanto. O que o novo regulamento determina é que, nos documentos oficiais, seja abolida a diferença entre casadas e solteiras. A partir de agora, todas as mulheres serão chamadas Madame. Ponto e basta.

Isso vale para o Imposto de Renda, a conta de eletricidade, o IPTU, documentos de identidade, passaporte, carteira de motorista, enfim, tudo o que for documento oficial. A notícia saiu no jornal 20 Minutes de 28 de dezembro. Para quem quiser conferir, está aqui. Em francês.

Para mudar as mentalidades, ainda vai levar um tempinho. Modos de pensar não se mudam por decreto.

Un chat est un chat

José Horta Manzano

Uma conjectura atormenta filósofos desde a Grécia antiga: mudando o símbolo muda-se a coisa? Em palavrório mais chique: a coisa e seu símbolo são convergentes ou inapelavelmente antinômicos?

Os franceses, com sua longa experiência em matéria de conflitos, afrontamentos, revoluções e guerras, ensinam a «appeler un chat un chat» ― se for um gato, há que dizer que é um gato. Esse dito popular exorta o bom povo a não ter medo de dizer as coisas como elas são. Dar nome aos bois, diríamos nós outros. Diríamos? Dizíamos, caro leitor, dizíamos.

Até alguns anos atrás, os contorcionismos verbais se restringiam a suavizar tabus geralmente de ordem sexual. Todas as palavras que pudessem, de perto ou de longe, remeter ao sexo eram evitadas. Até fenômenos fisiológicamente naturais como a trivial menstruação tinham seus nomes eludidos. Dizia-se que a moça estava «naqueles dias».

Costumes mudam com o passar do tempo. Não há que ser empacado nem caprichoso, que o mundo é assim mesmo. A sociedade evolui e, com ela, as modas, as palavras, as expressões. De uns tempos para cá, essa guinada tem-se acelerado em nosso País. É fenômeno importado, mas pegou forte, alastrou-se como fogo em palha seca.

Uma lista de nomes e expressões a banir foi instituída. E esse rol tende a se avolumar a cada dia. Não se fala mais assim, não se diz mais isso, nem pensar em pronunciar aquilo. Fica a desagradável impressão de que mentores mal-intencionados se concertaram para agir conscientemente a fim de acirrar ânimos, aprofundar fossos entre extratos sociais, separar o povo em campos distintos e antagônicos.

Elizete Cardoso

Palavras estranhas ― e nem sempre bem escolhidas ― nos vêm sendo impostas. Mulato, por exemplo, palavra a execrar hoje em dia, deve ser substituída por afrodescendente. Ora, há que ter em mente que todos os mulatos são também eurodescendentes, se não, não seriam mulatos. Por que, raios, o afro- teria precedência sobre o euro-? Devemos enxergar aí uma nova discriminação?

O Brasil já foi um país muito mais livre. O que digo pode soar estapafúrdio para os mais jovens, mas é o que ressinto. Éramos pobres, sim, mas podíamos sair à rua sem medo de ser assaltados, não precisávamos viver enjaulados como bichos no zoológico, a porta de casa dispensava tranca. E era natural dar nomes aos bois.

Hoje os brasileiros são mais ricos (ou menos pobres, conforme o critério estatístico adotado), mas vivem na apreensão permanente do assalto, da violência, da bala perdida, do sequestro relâmpago. São obrigados a cercar-se de jaulas, câmeras de controle, porteiros, vigias. E, para coroar tudo, como morango em cima de bolo de aniversário, já não se pode falar como antes. Temos de filtrar nossas palavras, pesar nossas expressões, policiar nosso discurso.

Será que, de uns dez anos para cá, teremos sido capazes de resolver a conjectura secular dos filósofos? Será que, mudando o nome da coisa, mudamos também a essência dela? Será que o mulato transfigurado em euro-afrodescendente será mais respeitado, mais valorizado, mais favorecido, mais feliz?

Se assim for, chegou a hora de enfiar o grande Ataulfo Alves no mesmo balaio ao qual já foram condenados Monteiro Lobato e o Saci-Pererê. Seu samba Mulata Assanhada, de 1956, tem de ser banido do cancioneiro nacional.

E é bom que preparem um balaio de bom tamanho. Muita gente fina vai ter de se acomodar lá dentro. Gente do quilate de Ary Barroso, Chico Buarque, Noel Rosa, isso só para começar. Pelas regras de hoje, estão todos em pecado mortal.