Somos todos migrantes

Eduardo Affonso (*)

Existimos porque o Homo sapiens deixou a África e ganhou o mundo. Não havia, então, postos de fronteira, fossos, muros, passaportes. O ser humano circulava como ainda hoje fazem as outras espécies. Seguia adiante porque via um horizonte, e uma alternativa além dele.

Chegamos a novos continentes, movidos pelas mesmas esperanças com que hoje milhares de refugiados se lançam ao Mediterrâneo, cruzam a selva, atravessam rios e desertos: para sobreviver, escapar à dor, reconstruir a vida.

Fugimos – toda migração é fuga – das cheias e da escassez, do fogo e do frio, da falta de perspectivas, da intolerância.

E, ainda assim, migrantes congênitos, demos de inventar barreiras, fronteiras e privilégios. De nos julgar senhores de uma terra prometida por nós a nós mesmos. Uma terra que acreditamos nossa apenas por havermos migrado antes dos que querem migrar agora. Ou – pior – depois de haver expulsado (ou exterminado) os que aqui estavam antes de chegarmos.

(Minha bisavó atravessou o Atlântico, grávida, num navio. Os sobrenomes que carrego no sangue – Raposo, Medeiros, Magalhães, Souza, Silva, Costa, Coelho, Carvalho, Lopes, Faria, Vianna, Leal, Jacó – contam a história de muitos adeuses, embarques, chegadas, recomeços.)

Quantos de nós não pensaram em refazer a vida num país mais decente, para escapar à crise sem fim engendrada pela cleptocracia a que estivemos submetidos por mais de uma década ou pelos necromilicianos de agora? Como não nos solidarizarmos com os que se cansaram de viver à míngua sob o “socialismo do século XXI” e se arriscam em balsas pelo Caribe ou a pé através da Amazônia? Os que tentam escapar do fundamentalismo dos talibãs ou querem deixar de ser reféns da miséria atávica do Haiti?

Volta e meia uma imagem traduz essa tragédia. O pequeno sírio-curdo Aylan, de bruços e já sem vida numa praia da Turquia. O contêiner repleto de cadáveres de chineses, abandonado na Inglaterra. O bebê passado de mão em mão até a cerca de arame farpado do aeroporto de Cabul. O agente de fronteira dos Estados Unidos – branco, a cavalo – tentando capturar o homem negro que entrara ilegalmente no Texas. E há as manchetes que nos deixam sem palavras: “Brasileira morre de fome e sede na travessia da fronteira entre México e EUA”.

Ela se chamava Lenilda. Era técnica em enfermagem. Saíra de Vale do Paraíso, Rondônia. Deixou um país construído por estrangeiros (99,5% dos brasileiros descendem de imigrantes) e decidiu seguir para onde os descendentes de estrangeiros correspondem a 98,5% da população. Ficou – como Aylan, como milhares – pelo caminho.

O imigrante traz sua força de trabalho e gera riqueza cultural e material. Acolhê-lo é um caso típico de altruísmo recíproco, um processo de cooperação em que todos saem ganhando. A alternativa à imigração não é impor obstáculos, mas investir em melhores condições de vida em seus países de origem – seja o Haiti, a Síria, a Venezuela, o Brasil. Jamais a humilhação, o abandono.

Somos todos descendentes do primeiro africano que migrou. Somos todos aquele bebê afegão, aquele haitiano que foge do homem a cavalo. Somos todos Lenilda. Todos, sem exceção.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Recebendo refugiados

José Horta Manzano

Chamada do Estadão, 6 set° 2015

Chamada do Estadão, 6 set° 2015

Alguém está brincando com as palavras. Só nestes últimos dois dias, depois que a chanceler deu seu acordo, a Alemanha recebeu 27 trens lotados de refugiados. Calcula-se em 7000 o número total de recém-chegados. Em pouco mais de 24 horas.

Chamada do alemão Die Welt, 6 set° 2015

Chamada do alemão Die Welt, 6 set° 2015

Uma coisa é prometer, outra, bem diferente, é fazer. Como dizem os italianos, «tra il dire e il fare, c’è di mezzo il mare» – entre o dizer e o fazer, há um oceano.

O Garcia

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 set° 2014

Sapato 1Antes de começar, lanço uma advertência daquelas que aparecem em começo de filme: «Toda e qualquer referência que possa evocar alguma pessoa viva ou falecida terá sido mera coincidência.» Isso posto, vou-lhes contar como se anunciava, tempos atrás, uma liquidação de mercadoria ― prática hoje extinta e suplantada por «sale», que é expediente mais moderno.

Faz meio século, ferramentas de marketing eram primitivas. Venda especial se anunciava no grito. Seu Garcia, comerciante de calçados que cheguei a conhecer, fazia frequentes liquidações. Provavelmente já tinha intuído certas manhas de mercado hoje evidentes. Quando decidia vender artigos a preço de banana, punha-se à porta da loja, batia palmas e apregoava: «Entre, minha gente! Deu a louca no Garcia!».

Clap clapFaz alguns dias, tomei conhecimento de um anteprojeto de lei que me fez lembrar o velho calçadista. A notícia, espantosa, apareceu no mui oficial site do Ministério da Justiça. O longo texto de 52 páginas, concebido por comissão de sábios nomeada pelo próprio ministério, será submetido em breve ao Congresso Nacional.

Em 114 artigos, o «Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil» desconstrói, logo no prólogo, o conceito de «estrangeiro», considerado pejorativo em nossa cultura. A ousada afirmação carece de sentido num país onde tudo o que vem de fora é visto como superior.

Em vez de estrangeiro, elege-se a palavra «migrante» como sucedâneo. São migrantes os que vão, os que vêm, os que se deslocam e até os que se supõe queiram deslocar-se. O clube das expressões politicamente incorretas ganha mais um membro: estrangeiro entra para o índex.

O ambicioso esboço de lei é abrangente. Faz varredura completa da área de imigração, emigração, aquisição e perda da nacionalidade, reagrupamento familiar, acolhida humanitária, outorga de asilo, concessão de visto. Sem sombra de dúvida, o calhamaço merece que o Congresso o examine com desvelo.

Sapataria 1De saída, um ponto salta à vista e causa espanto. O Artigo 1° define como apátrida todo aquele que não for considerado por nenhum Estado como seu nacional. Até aí, nada demais, que é definição universalmente aceita. O inacreditável vem agora. No Artigo 25, o anteprojeto concede nada menos que… a nacionalidade brasileira a todo apátrida que a solicitar. Assim, bondade pura, sem condições e sem contrapartida. Não há registro de que ideia tão arrojada tenha jamais ocorrido a algum legislador.

Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, por sinal citado no introito do texto, é impossível avaliar o número de apátridas no globo. Cálculos vagos dão algo em torno de 12 milhões de pessoas, mais do que a população do Rio Grande do Sul. Pode ser bem mais que isso.

Suponha agora o distinto leitor que nossos congressistas, num descuido, chancelem essa lei. A notícia há de correr mundo mais rápido que rastilho. Assim que o Brasil propuser, de mão beijada, a cidadania a todo apátrida que a solicitar, filas de dobrar quarteirão se formarão à porta de nossas representações diplomáticas. Garantido.

Sapataria 2E todos farão jus ao mimo ― é de lei. Embolsado o precioso passaporte, cada um dos novos brasileiros terá direito, naturalmente, a ser repatriado à custa da princesa. Chegados ao Brasil, os antigos estrangeiros ― com o perdão da palavra imprópria ― já serão brasileiros de direito pleno. Terão, assim, direito a fixar residência onde bem entenderem, a pleitear todas as bolsas, a votar e a ser eleitos. Não precisa muito esforço de imaginação para prever que sólidos bolsões de «migrantes» se formarão em determinadas regiões, grupos dentro dos quais língua e costumes originários se manterão. O anteprojeto favorece o surgimento de uma constelação de pequenas nações dentro do território nacional.

Longe de mim fazer, de princípio, oposição à imigração. Afinal, os antepassados da maioria de nós chegaram um dia de algum canto do planeta. Mas todo movimento de população tem de ser enquadrado. Grandes contingentes de forasteiros aportados de supetão tendem a se aglutinar. Não se aculturam da noite para o dia. Não passam a falar nossa língua nem a comer arroz com feijão no dia seguinte.

O interesse superior da nação brasileira não combina com um regime de portas escancaradas e boca-livre a quem chegar. O passaporte brasileiro é um bem precioso demais para ser oferecido por atacado. Não é mercadoria e não se encaixa em lógicas do tipo «Entre, minha gente! Deu a louca no Garcia!».