São outros quinhentos

José Horta Manzano

Você sabia?

Nem sempre é fácil encontrar a origem de expressões da língua. Algumas são tão evidentes que não precisam de explicação. Outras são misteriosas, como é o caso desta que tratamos hoje. Que outros quinhentos serão esses?

Fosse feita anos atrás, uma busca desse tipo seria trabalhosa. Precisava conversar com os mais velhos, perguntar ao professor de Português, ir até a casa de um amigo que tivesse a Enciclopédia Barsa – mas ir com disposição pra passar a tarde consultando os intermináveis 22 volumes. Era complicado, mas tinha uma vantagem: achada uma resposta, a gente se contentava. Era aquela, e não se falava mais nisso.

Hoje mudou. Em três rápidos cliques, encontram-se respostas. O problema é que surge logo uma dúzia de explicações, que nem sempre têm a ver uma com a outra. O engraçado é que tem gente incapaz de transmitir com as próprias palavras aquilo que leu; então, num rápido exercício de copiar/colar, apanham parágrafos inteiros e apresentam como se fosse obra sua. Curioso. O resultado é a multiplicidade de pistas, umas mais consistentes, outras menos.

Uma origem, apresentada por alguns como legítima, é a história engraçada de um trapaceiro que chega a uma cidadezinha e, com sua lábia, acaba enganando o padre, o fazendeiro, o dono da venda. E consegue extorquir 500 (reais, cruzeiros, milréis, como queira) deles. A historieta é engenhosa, mas não convence. Como é que uma piadinha que quase ninguém conhece havia de se transformar em expressão popular tão arraigada?

Outra origem – esta, mais consistente – situa a origem da expressão nos tempos medievais, uns 700 anos atrás. Encontrei um bocado de gente fina sustentando esta explicação. Naqueles tempos, a nobreza formava casta superior, cujos membros escapavam à lei comum. Até para punir delito de injúria, a pena variava conforme o ofendido pertencesse à nobreza ou ao povão. Quem ofendesse gente simples pagava 300 soldos de multa; se ofendesse barão, duque ou marquês, o descuido ia lhe custar 500 soldos(*).

Acontece que o pagamento da multa não livrava o ofensor de futuros arroubos. Caso escorregasse e reincidisse, pagava nova multa: eram outros 500. A história parece um tanto esquisita, mas é o que encontrei. Quando topam com uma explicação dessas, meio tortuosa, os franceses dizem que foi «tirée par les cheveux – puxada pelos cabelos». Ai, meu couro cabeludo!

(*) O soldo
Durante toda a Idade Média, antes da reforma introduzida no século XV pelo rei Eduardo 1°, a unidade monetária do Reino de Portugal foi o dinheiro, nome simples mas evidente, derivado do denarius romano.

De toda maneira, na Idade Média, dinheiro não era como hoje; não havia notas e os valores não circulavam. O escambo (sistema de trocas) era o modo habitual de comerciar. Portanto, que o dinheiro se chamasse dinheiro não incomodava ninguém. Doze dinheiros valiam um soldo (do latim solidus), e vinte soldos valiam uma libra (do latim libra).

Quem se lembrou do sistema vigente na Inglaterra até 1971, antes da decimalização da moeda, acertou. A libra se dividia em 20 xelins(shillings), subdivididos em 12 pence cada um. Como no Reino de Portugal, era reminiscência do sistema romano.

Cavalos alpinos

José Horta Manzano

Você sabia?

Desde que as hordas de invasores mongóis ensinaram à Europa como guerrear a cavalo, a cavalaria passou a constituir peça importante de todo exército. Até cem anos atrás, sempre que estourava uma guerra, cavalos de proprietários privados eram requisitados para serem incorporados ao exército. A mecanização provocada pela invenção do motor a explosão fez que, pouco a pouco, a utilização dos equinos decrescesse.

O exército suíço é um dos últimos da Europa a utilizar cavalos. Até os anos 1950, eles ainda eram 20 mil. Hoje são apenas 350, escolhidos a dedo e mimados como animais de estimação. Todo ano, organiza-se uma espécie de exame vestibular para a aquisição de novos cavalos para o exército. Muitos são os candidatos, poucos os escolhidos. A proporção de aprovados lembra o exame da Ordem dos Advogados no Brasil.

O uso dos animais está longe de ser folclórico. São utilizados exclusivamente para transporte de carga. Há caminhos por onde só se pode passar a pé ou a cavalo. No inverno, pode acontecer de uma avalanche ou um simples excesso de neve bloquear o acesso a algum vilarejo isolado na montanha. Se as condições atmosféricas permitirem, o abastecimento de emergência pode ser levado por helicóptero. Quando o tempo não permite voo, só os cavalos do exército são capazes de cumprir a tarefa.

Esse pequeno estoque equino é mantido também com outro objetivo. Caso um tremendo ataque cibernético venha um dia bloquear todo transporte e toda circulação, os cavalos estarão disponíveis pra remediar a situação. O serviço é todo regulamentado. Trabalham em média 45 dias por ano. Aposentam-se com a idade de 16 anos. Cada animal transporta a carga máxima de 100kg. E não pense que eles trabalham de graça. Afinal, este é o país dos bancos. Como todo militar, recebem um soldo. Atualmente, é de 40 francos (150 reais) por dia, pagos ao proprietário do animal.

Mistérios de gênero

José Horta Manzano

No passado, as atividades femininas restringiam-se a afazeres domésticos e a trabalho na agricultura. Fora desse universo restrito, era o clube do Bolinha: só homens tinham vez.

Soldado 1A Revolução Industrial expandiu o horizonte profissional das mulheres. Guerras que devastaram a população masculina também colaboraram. No século XX, a diversificação das atividades humanas permitiu que moças e senhoras passassem a exercer profissões que antes lhes eram vedadas.

À medida que possibilidades se abriam, nome de profissão foi ganhando equivalente feminino. Assim, apareceram as primeiras médicas, professoras, deputadas, engenheiras, filósofas, escritoras. Até estivadoras, delegadas de polícia e juízas existem. Há diretores e diretoras, vendedores e vendedoras, empregados e empregadas, assalariados e assalariadas.

Curiosamente, uma profissão exercida por número crescente de mulheres ainda não ganhou denominação feminina. Ainda hoje, ouvi pelo rádio o depoimento de uma moça apresentada como soldado da Polícia Militar. «Ela é soldado». Soa estranho, não?

Soldado 2Soldado deriva de soldo, retribuição devida a militares. Em latim, soldus – contração de solidus – designava moeda de ouro ou de prata. Entre as palavras da família, algumas ainda se referem a dinheiro ou a pagamento. Dizemos saldar uma dívida, por exemplo. Os antigos diziam «venda de saldos» – expressão hoje arcaica, substituída que foi por «sale», que é muito mais chique.

Concordo que alguns femininos dão margem a forma estranha. Para evitar hilaridade, é melhor evitar dizer torneira mecânica, por exemplo.

A meu ver, no entanto, não há por que hesitar em dizer soldada. Não me parece ofensivo, nem ambíguo, nem politicamente incorreto. Além do mais, está abrigado sob o manto do vocabulário da Academia Brasileira de Letras. Portanto, é de lei.