José Horta Manzano
Do latim, herdamos coisas boas, sem sombra de dúvida. Mas junto vieram uns espinhos. Os gêneros gramaticais, por exemplo. Pra que atribuir gênero às coisas? Só Júpiter sabe. Por que uma porta é feminina enquanto um portal é masculino? São sutilezas que só fazem atrapalhar. Ah, que inveja do inglês, que conseguiu desatar esse nó há séculos. Mas os gêneros gramaticais fazem parte de nossa língua e somos obrigados a lidar com eles.
A desastrosa inação do governo federal gerou uma situação de angústia em que a vacinação ocupa o lugar central. Assisti ao Jornal Nacional, coisa que não fazia havia décadas. Por acaso, descobri que as edições antigas ficam disponíveis no YouTube. Na deste sábado, notícias relativas à vacinação preenchem metade do tempo; a outra metade é dedicada às trapalhadas do presidente e a notícias variadas. Imagino que, pouco mais pouco menos, sejam essas as proporções todos os dias.
Não só o jornal da tevê fala de vacina. O assunto está em todas as bocas e a mídia acompanha. Já vi várias vezes algum escriba se exprimir assim: “as 30 milhões de doses foram prometidas”; e também assim: “são dadas como certas 42 milhões de doses”.
Há que distinguir entre fala coloquial e artigo de jornal. Na fala de todos os dias, é permitido omitir um plural aqui e ali, tomar um atalho e esquecer o verbo, estropiar algum gênero gramatical. Ninguém vai olhar feio. Já na escrita séria, são caminhos a evitar. Um escorregão pode, às vezes, comprometer a seriedade de todo um artigo.
Por sua natureza substantiva, o numeral milhão é percebido como masculino. Ninguém dirá “uma milhão”, não é? Pois a regra que vale para “um milhão” vale para qualquer outra quantidade expressa em milhões. Ao fim e ao cabo, milhão será sempre percebido e tratado como se ao gênero masculino pertencesse.
Admito que soa esquisito escrever que “os 30 milhões de doses foram prometidas”, mas assim são as coisas; se milhão pede o artigo no masculino, não há jeito de escapar. Reestruturar o trecho é uma solução. Para deixar a frase menos bizarra, o jeito é reescrevê-la. Pode-se reformular, por exemplo, assim: “as doses prometidas, que deverão ser da ordem de 30 milhões”. Pronto, o recado foi dado sem agressão à concordância.
Coragem, gente! Um pouco de criatividade não faz mal a ninguém.
Caro Manzano, eu também já havia notado esse novo cacoete dos jornalistas, tanto que publiquei um artigo em dezembro sobre esse tema. O link é https://diariodeumlinguista.com/2020/12/18/milhoes-tem-flexao-de-genero.
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Caro Bizzocchi, salve!
Para o mesmo pepino, chegamos a conclusão semelhante e, ainda por cima, puxamos um suspiro ao evocar línguas em que o problema não teria razão de ser. Pra você ver.
O cacoete não vem de hoje. Faz anos que ele me surpreende. Mas, convenhamos, é armadilha. Ao falante que diz ‘duas mil’, parece natural seguir na mesma trilha e soltar um ‘duas milhões’. Talvez um dia essa forma se fixe.
Se antes essa flexão era menos ouvida, será porque milhões não estavam ainda em voga. O mensalão trouxe a inflação e taí o resultado: milhão na boca do povo. (Só na boca; no bolso, necas.)
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É isso aí, caro Manzano! Se nós dois fizemos o mesmo diagnóstico, é porque a doença é séria rs rs.
Um abraço!
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