O STF e seus ministros

José Horta Manzano

«Quando il gatto non c’è, i topi ballano» ‒ quando o gato não está, os ratos fazem a festa. Quando um indivíduo tem certeza de que nada nem ninguém o pode ameaçar, é grande o risco de se deixar levar pela soberba dos que tudo podem. A garantia de estar blindado contra todo tipo de ataque gera um sentimento de poder absoluto.

Na estrutura da alta administração da República, os cargos têm prazo de validade. Presidente, deputado e senador têm mandato limitado no tempo. Ministro, que ocupa cargo de confiança, pode cair a qualquer hora, dependendo apenas de uma canetada de quem o nomeou. O topo do Judiciário, no entanto, é sujeito a regras diferentes. Os ministros do Supremo Tribunal Federal, uma vez nomeados, escapam ao destino do mortal comum: ninguém os pode tirar de lá.

É compreensível que juízes gozem de determinadas garantias. Aliás, a própria Constituição determina a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídios dos magistrados. Faz sentido. Para exercer sua função com serenidade e imparcialidade, um juiz tem de ter segurança. Se não as tivesse, seria presa fácil tanto para coação de gente poderosa quanto para ameaça de bandido perigoso.

No entanto, a própria lei se contradiz quando obriga os ministros do STF a se aposentarem, queiram ou não, ao atingir 75 anos de idade. Está aí a prova de que nem a vitaliciedade nem a inamovibilidade são garantias absolutas. Vencido o prazo, são postas de lado. Como se vê, tudo é relativo.

Nosso STF tem sido criticado ultimamente. Suas Excelências têm sido protagonistas de verdadeiras cenas de novela de segunda categoria. É possível que a presença constante de holofotes e câmeras lhes dê a sensação de estar num palco iluminado. Fato é que, com indesejável frequência, se comportam como comadres que se atracam num cortiço. Insinuações, ofensas, insultos são atirados como flechas, à vista de todos, num espetáculo deprimente.

O zé povão ‒ que somos nós ‒ assiste atônito e impotente aos bate-bocas. Fica a amarga sensação de que Suas Excelências se valem da garantia de que não serão demitidos. Não correm o menor risco de receber «bilhete azul».

Vamos agora refletir. Por um lado, tanto no Executivo quanto no Legislativo, os cargos mais importantes não são vitalícios: dependem de um mandato que pode (ou não) ser renovado pelo voto popular na eleição seguinte. Por outro, a regra da aposentadoria compulsória anula a vitaliciedade dos ministros do STF. Em conclusão, nenhum dos cargos maiores da República é vitalício de verdade, em nenhum dos três Poderes.

Depois de todos esses considerandos, vamos aos finalmentes. Seria o caso de pensar em abolir o caráter vitalício do cargo de ministro do STF. Um mandato fixo de oito ou dez anos me pareceria equânime. Chegado ao termo desse período, o magistrado poderia candidatar-se a novo mandato. Acredito que, assim, as labaredas da fogueira de vaidades em que se exibem Suas Excelências perderiam muito de sua intensidade.

Epílogo
Sem chegar a sugerir que ministros do STF venham a ser eleitos pelo voto popular, acredito que deveriam ser escolhidos por um colégio eleitoral ampliado, que incluísse o presidente da República, membros da alta magistratura, representantes da OAB e outros cidadãos de elevada cultura e reputação imaculada. Não custa sonhar.

Nota
Entre os onze ministros atuais, há dois ou três com direito a permanecer no cargo por mais um quarto de século a contar de agora. É um exagero. Muita coisa muda em 25 anos. Manter um indivíduo na mesma função pública, intocável e inamovível, durante tanto tempo pode ser prejudicial para a sociedade.

Quem te viu, quem te vê ‒ 2

José Horta Manzano

Chamada do jornal O Globo, 13 dez° 2016

Chamada do jornal O Globo, 13 dez° 2016

«Curiosamente, em 2012 Trump chamou o Colégio Eleitoral de “um desastre para a democracia”, quando pensou que o sistema levaria o presidente Barack Obama a perder o voto popular e mesmo assim conquistar seu lugar à Casa Branca.

Depois de sua própria vitória eleitoral, no entanto, o magnata elogiou o “gênio” que criou o sistema.»

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Citação do artigo de O Globo de 13 dez° 2016.

Segundo turno

José Horta Manzano

A Constituição em vigor, promulgada em 1988 e dita «cidadã», respondia às aspirações e às necessidades da época. Considerando aquele momento histórico, com um Brasil recém-saído de longo período autoritário, a Lei Maior foi uma conquista e tanto. Aos constituintes ‒ e ao povo também ‒ pareceu que o período de trevas estava superado. Em certo sentido, estava. Só em certo sentido.

Urna 2Passaram-se já quase trinta anos. O mundo mudou e o Brasil também. Algumas das transformações foram pra lá de positivas; outras, menos. Temos menos analfabetos que antes, coisa boa. O aumento do número de escolas superiores subiu degraus de dois em dois, mas fica a desagradável impressão de que o iletrismo subiu de elevador. Um exemplo ilustra o drama. Temos bacharéis em Direito às baciadas, porém, de cada 10 candidatos, 9 são reprovados no exame que lhes daria o direito de exercer a profissão. É estonteante.

A Constituição já foi emendada e remendada numerosas vezes, mas parece saco sem fundo: a cada dia aparece um escolho, um pedregulho, um paralelepípedo no caminho. Dado que a convocação de nova assembleia constituinte não está prevista para tão já, o remédio é continuar remendando.

Um detalhe que volta à ordem do dia a cada quatro anos me incomoda. Reapareceu domingo passado, quando das eleições gerais para prefeito e vereador. O texto constitucional determina que apenas municípios cujo eleitorado supere 200 mil inscritos têm o privilégio de promover um segundo turno de votação, caso nenhum dos pretendentes tenha atingido maioria absoluta. Por que só grandes aglomerações beneficiam da medida?

Chamada Estadão, 4 out° 2016

Chamada Estadão, 4 out° 2016

Por décadas, eleições majoritárias se fizeram em turno único. Megalópoles, como São Paulo, já tiveram prefeito eleito com menos de 30% dos votos. É situação inconcebível hoje. Ignoro qual tenha sido a intenção do legislador ao restringir o segundo turno a 92 municípios. Se foi evitar gastos, foi decisão furada. Não há preço que pague a legitimização que um segundo turno traz. O ungido terá recebido, necessariamente, a benção da absoluta maioria dos governados.

Ademais, custos são relativos. Numa metrópole, campanhas custam os olhos da cara. Já em pequenos municípios, o gasto é infinitamente menor. A equidade ensina que todos os cidadãos devem ser submetidos às mesmas leis e que todos merecem receber o mesmo tratamento. Esse equilíbrio não será atingido enquanto o legislador não estender a todos os municípios o direito de realizar dois turnos de eleição a fim de legitimar o prefeito.

Interligne 18cPara completar
Os eleitores inscritos nos grandes municípos, com direito a dois turnos, são 54,3 milhões. O eleitorado total atinge 144 milhões. O resultado é que, grosso modo, menos de 38% da população tem prefeito legítimo e incontestável, eleito com maioria absoluta. Os 62% restantes ficam de fora. Têm de se contentar com um prefeito assim assim.

Os de fora ‒ 1

José Horta Manzano

Nós, de fora, também temos obrigação de votar. É só meio voto, mas já é melhor que nada. Por que meio voto? Porque só nos obrigam a escolher o presidente, chefe do Executivo. Quanto a nossos representantes no parlamento, aqueles que levam nossa voz até lá, não os temos. Do ponto de vista da representação democrática, somos cidadãos de segunda linha.

Voto inteiro ou meio voto, o fato é que mais 350 mil conterrâneos que vivem fora das fronteiras estavam inscritos e habilitados a votar. Muitos, desse contingente, se dirigiram àquela maquineta esquisita e despositaram ali crença e esperança.

2014 Exterior Turno 1É compreensível que a taxa de abstenção dos que votam no exterior seja elevada. Diferentemente dos que residem em terras de Santa Cruz, a urna mais próxima não está ali na esquina: pode estar a centenas de quilômetros de distância. Nem todos têm tempo, dinheiro e paciência para fazer o trajeto.

Assim mesmo, formamos contingente de eleitores maior que o do Estado de Roraima. Visto sob o aspecto eleitoral, os brasileiros do exterior constituem a 28a. unidade federativa da República.

Por definição, vivemos todos mergulhados num universo diferente da pátria-mãe. Não fomos bombardeados com propaganda eleitoral. Nenhum de nós recebe bolsa isto ou bolsa aquilo. Nem cesta básica. Isso nos confere certa isenção na hora de votar. Se a gente vota neste ou naquele candidato, será mais por acreditar que levará o País a bom porto, e menos por algum interesse pessoal.

Acredito que a esmagadora maioria dos expatriados brasileiros esteja feliz com os resultados vindos do exterior. Dona Dilma foi a preferida de apenas 18,3% de nós. Dona Marina foi sufragada por 26,1% dos expatriados. E Aécio levou a parte do leão: 49,5%. Por um trisquinho, não teria sido eleito no primeiro turno!

Andei examinando o voto dos brasileiros ao redor do mundo. Salvo alguma discrepância notável, a tendência foi a mesma: Aécio em primeiro, bem distanciado. Marina em segundo. E, na rabeira, dona Dilma.

Discrepâncias, há. Duas são mais gritantes.

Entre os brasileiros residentes em Havana (Cuba), dona Dilma sugou 84% dos votos – um espanto! Eu disse espanto? Nem tanto assim. Pensando bem, Cuba não é exatamente o paraíso sonhado de todo candidato à emigração. Em sua esmagadora maioria, os gatos pingados que vivem na capital cubana hão de ser gente ligada a interesses diferentes do dia a dia do comum dos mortais: Porto de Mariel, pessoal diplomático, pessoal das empreiteiras, espiões, olheiros, lobistas. O voto faz sentido.

Colégio Eleitoral de Caracas, Venezuela

Colégio Eleitoral de Caracas, Venezuela

A surpresa grande está em outro lugar: na velha, boa e muy bolivariana cidade de Caracas (Venezuela). Naquele reduto controlado com o braço armado de um certo señor Maduro, os eleitores puseram Aécio Neves na cabeça. Com 50,75% dos votos, seria eleito no primeiro turno! Sei não. Nossos compatriotas estabelecidos no paraíso moldado por Chávez não dão a impressão de estar muito felizes com a situação.

O voto e a roda

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 maio 2014

Naquele tempo, ainda havia trem. Na estação da estrada de ferro, o jovem aprendiz, ansioso, apresentou-se logo de manhãzinha para seu primeiro dia de trabalho no serviço de manutenção. O chefe do setor apresentou-o ao funcionário mais antigo e recomendou a este último que se encarregasse de transmitir, pouco a pouco, todo o seu saber ao novato.

Após rápida consulta ao relógio, o veterano conduziu o recém-chegado à beira de um trem que estava para partir dali a meia hora. Pediu ao jovem que observasse atentamente o que ele ia fazer. Tomou uma marreta e deu três pancadinhas numa roda do primeiro vagão. Em seguida, passou à segunda roda e repetiu o movimento. E assim por diante, roda por roda, vagão por vagão, deu a volta ao trem.

Train 5Terminado o peculiar balé, o aprendiz perguntou timidamente qual era a serventia daquela tarefa. O velho funcionário disse que não fazia a menor ideia, mas repetia esse movimento diariamente fazia 35 anos. Porque lhe tinham ensinado no seu primeiro dia de trabalho.

Essa fábula ilustra a força inercial de certos fatos e atos que se transmitem de geração em geração e varam os séculos sem que ninguém saiba ao certo por quê. A obrigatoriedade do voto é um bom exemplo.

Pelo ordenamento constitucional do Brasil imperial, o voto era obrigatório. Fazia sentido. No imenso território que ensaiava seus primeiros passos como nação independente, os alfabetizados eram poucos. O legislador brasileiro decidiu manter distância da visão democrática e universalista que Rousseau lançava sobre a política. Preferiu outra abordagem: o voto censitário.

Considerando que a massa não estava apta a escolher seus próprios representantes, confiou o encargo a cidadãos selecionados. Para fazer parte do colégio de eleitores, havia que preencher alguns requisitos: ser homem livre com mais de 25 anos e, sobretudo, dispor de determinada renda.

Essa seleção, ressentida como se honraria fosse, instituía a «função» de eleitor. Por esse entendimento, o voto «pertencia» à nação, cabendo a ela designar aqueles que estavam aptos a desempenhar a tarefa. Era natural, portanto, que os eleitores, uma vez convocados pelo Estado, tivessem a obrigação de votar. Em caso de impedimento, era até autorizado o voto por procuração – o eleitor transferia o encargo a um representante.

by Fernando de Castro Lopes, desenhista Correio Braziliense

by Fernando de Castro Lopes, desenhista
Correio Braziliense

O método de escolha dos representantes do povo sofreu transformação radical de lá para cá. Tivesse essa mudança ocorrido de golpe, talvez a estrutura tivesse sido integralmente repensada e fosse, hoje, harmoniosa. Não foi o que aconteceu. Quis o destino que a evolução do sistema eleitoral se estendesse, gradual, por decênios ‒ um conserto aqui, um remendo ali. O resultado carece de coerência.

A sequência de modificações transfigurou o modelo originário. O caráter censitário do colégio eleitoral foi-se esgarçando à medida que novas categorias de cidadãos eram autorizadas a votar. A idade mínima do eleitor foi baixando, degrau após degrau, dos 25 para os atuais 16 anos. A participação foi aos poucos franqueada a um número crescente de cidadãos: mulheres, militares, analfabetos. A exigência de renda mínima foi abolida.

O sistema atual, após todas essas mudanças, nem de longe lembra o modelo de 200 anos atrás. A «função» de eleitor cedeu lugar ao direito de ser eleitor. À primeira vista pode não parecer, mas tivemos aí profunda guinada conceitual. O voto não mais «pertence» à nação, mas a cada eleitor. A escolha dos dirigentes deixou de ser feita por cidadãos aos quais o Estado atribuiu uma tarefa. Passou a ser feita, em tese, por todos os cidadãos.

Urna 5O «eleitorado de função» era obrigado a exercer seu papel, exatamente como conscritos têm de servir nalguma das Armas. A obrigatoriedade do voto estava, assim, justificada. O atual «eleitorado de direito» tem a faculdade de escolher seus representantes. Quem diz faculdade não diz obrigação. Se obrigação for, não será mais um direito.

No contexto atual, o voto obrigatório é contrassenso. Cidadão constrangido a praticar um ato qualquer não estará exercendo seu direito, mas cumprindo obrigação.

Muita atenção: que ninguém acuse os atuais inquilinos do andar de cima por essa incoerência. Ela lhes foi legada pelos antecessores que, por sua vez, já a tinham herdado dos respectivos predecessores. O descuido do legislador vem de longe, mas nunca é tarde para consertar.

E então? Varremos essa relíquia anacrônica ou continuamos a dar marretadas na roda?