A síndica

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Tem gente que se torna praticamente virtuose na arte de manipular emocionalmente outras pessoas. Sua expertise é provocar a fúria de qualquer um que atravesse seu caminho, fazendo comentários desrespeitosos sobre características que a pessoa não tem como controlar (como cor da pele, gênero, deficiências físicas ou mentais), desqualificando moralmente seus oponentes e abalando sua autoestima.

Um dos pontos-chave dessa estratégia é que a ofensa seja feita sempre de forma sorrateira, indireta: é preciso que o agressor pegue o outro desprevenido, seja através de uma postura inicialmente amistosa, seja através de um raciocínio ferino rápido durante a conversação que pareça ocasional, não-intencional. O emprego de um tom de voz contido ou jocoso colabora para que a intenção de causar descontrole emocional no noutro se concretize mais rapidamente. O lado triste é que, quando a vítima finalmente sai do sério, retrucando de forma intempestiva, ela não está dando uma resposta à altura, mas apenas reforçando a eficácia da estratégia e confirmando o poder demolidor do agressor.

As mulheres sabem bem como isso funciona. Acuadas por frequentes comentários discriminatórios a respeito de sua competência técnica ou autoridade para liderar grupos, ou ainda por observações de baixo nível (normalmente de cunho sexual), se reagem chorando ou estapeando o agressor, lá vem a velha cantilena: “Mulheres são instáveis emocionalmente, não têm sangue frio para lidar com situações de tensão, não têm senso de humor”. E o agressor, impune e com presumido ar de espanto, se rejubila com a comprovação na prática de suas teses.

Forçoso é admitir que, para que a estratégia funcione, o agressor precisa possuir algum resquício de inteligência. Precisa saber que não pode levantar acusações diretas aos berros, uma vez que isso demonstraria para os circunstantes que ele também não consegue controlar seus impulsos. Precisa saber identificar com antecedência qual é o posicionamento exato de seu oponente na escala reativa que vai de “sangue de barata” a “pavio curto”. Precisa impedir a qualquer custo que os circunstantes se alinhem com a vítima e saiam em defesa dela. Um caso emblemático desse tipo de expertise é o que eu relato abaixo.

Todo mundo sabe como os síndicos costumam ser malvistos pelos moradores de um condomínio. As razões para esse estereótipo são muitas: postura autoritária, moralismo, tentativas de interferência na vida particular dos moradores, formação de panelinhas no atendimento às demandas dos moradores, suspeitas de apropriação indébita ou de má gestão orçamentária, dentre muitas outras.

No condomínio onde moro não foi diferente. A síndica de ocasião era uma senhora de cerca de 80 anos, que se apresentava como especialista em administração de pessoal, contabilidade, legislação trabalhista e fiscal. O síndico anterior havia sido acusado de desviar dinheiro do condomínio. A eleição dela representava, portanto, a esperança de uma faxina completa nas contas do condomínio.

Era uma pessoa altiva e austera mesmo fora das funções de síndica. Ríspida no trato com moradores e funcionários, logo começou a causar um sem-número de conflitos. Sentia-se à vontade para legislar sobre novas regras de convivência caso a convenção do condomínio fosse omissa nesse sentido. Gritava com crianças e adolescentes que brincavam no jardim do térreo pisando na grama, ou ouviam música alto. Vira e mexe soltava uma circular recriminando hábitos dos moradores que, segundo ela, contrariavam a imagem de um condomínio “de classe”.

Uma das coisas que mais a irritavam era o contato afetivo próximo dos moradores com os porteiros. Alegando questões de segurança, ela passou a proibir que o contato fosse além do ‘bom-dia’. Mandou reformar a portaria, colocando-a num plano mais elevado e revestiu os vidros com filtro escuro. Proibiu os funcionários de se afastarem do posto mesmo que por alguns segundos para ajudar moradores com sacolas de compra ou problemas de locomoção.

Ao longo do tempo, sua especialidade mostrou ser mais especificamente a de tirar os moradores do sério, tratando-os como subordinados. Para isso, ela não economizava adjetivos pejorativos e humilhações em público. Chamou a mãe de uma moradora, de quase 90 anos, de esclerosada. Acusou, sem provas, um morador eletricista de ter feito uma gambiarra na antena de tevê para ter acesso indevido a canais pagos. Certa vez, depois de ter brigado com um morador gay por seu comportamento espalhafatoso, interfonou para meu apartamento, pedindo que eu alertasse a mãe dele de que ele “não valia a comida que a mãe preparava”.

Intimidados, os condôminos deixaram de recorrer a ela para resolver quaisquer pendengas. Temendo serem a próxima vítima de seus maus bofes, limitavam-se a comentar em voz baixa pelos corredores os absurdos mais recentes. A tensão escalou sem controle até o dia em que ela resolveu confrontar um morador que era um ex-militar aposentado por distúrbios psiquiátricos. Como o homem tinha surtos frequentes de agressividade e andava armado, representava um páreo duro para a intempestividade dela. Certo dia, ao passar em frente ao escritório da administração, ele foi questionado sem meias palavras se não se envergonhava de ser “encostado na mulher”, que trabalhava dia e noite para sustentar a casa, enquanto ele levava uma vida fútil, cuidando apenas de sua cachorra.

Foi o que bastou: furioso, o homem invadiu o escritório e estapeou a síndica sem dó nem piedade. Pega no contrapé pela primeira vez, ela registrou um boletim de ocorrência, mandou trancar a porta da administração e deslocou um vigia para fazer sua segurança 24 horas por dia. Contratou um advogado e exigiu que os moradores pagassem por seus serviços, alegando que estava no exercício de suas funções quando da agressão. O rebuliço foi total. Logo os moradores se dividiram, uns apoiando uma mulher idosa vítima de agressão e outros justificando a perda de controle de um homem aviltado em sua honra, já sem muitos freios racionais.

Por fim, um grupo de moradores decidiu organizar um abaixo-assinado para a realização de uma assembleia extraordinária, em que se discutiria o afastamento definitivo da síndica em função de tantas polêmicas. Para que ninguém fosse alvo isolado de fúria, ficou combinado que cada morador apresentaria de própria voz as circunstâncias de seu embate pessoal com ela. Informada dessa tática e vendo que não teria como contraditar cada caso, poucos minutos antes do início da assembleia, a síndica apresentou sua renúncia por escrito.

Aprendi com essa mulher que não há uma forma 100% eficaz de reagir a esse tipo de manipulação emocional, nem mesmo o silêncio despeitado. No limite, pode-se respirar fundo, perguntar-se se há um fundo de veracidade no comentário insultuoso e retrucar usando da mesma técnica: a ironia ou o sarcasmo.

Certa vez, quando nos encontramos no corredor e ela pretendeu me ensinar a melhor forma de embalar o lixo para que ele não provocasse mau cheiro, olhei para ela espantada e emendei com toda coragem: “Nossa, me desculpe, devo estar ficando com Alzheimer! Imagine a senhora que eu não me lembro de ter pedido sua opinião…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O leite condensado e o rabo

José Horta Manzano

O pudim de leite de minha avó não levava leite condensado. Preparado com leite, ovos e açúcar, ia ao forno em banho-maria e lá ficava um bom tempo. Dava muito trabalho, mas o resultado era esplêndido, como se dizia na época. Nada a ver com esses pudins melequentos e enjoativos de hoje.

Estive pesquisando sobre a produção de leite condensado no Brasil. Aprendi que teve início nos anos 1920. Mas uma coisa é produzir, outra coisa é vender. Nos arquivos do jornal Folha de São Paulo, a primeira menção a esse produto só aparece, tímida, em 1933. Era então apresentado como alimento para “creanças, doentes e adolescentes”.

Em 1934, é citado mais duas vezes. No ano seguinte, aparece de novo uma vez só. É a prova de que estava ainda longe de se tornar artigo de consumo popular. Acostumadas ao leite fresco, as cozinheiras resistiram um bom tempo antes de adotar o produto enlatado. A difusão do leite condensado entre as donas de casa (é assim que se dizia na época) só ganhou força a partir dos anos 1950.

Na Europa, leite condensado não é produto de grande consumo. Nas raras vezes em que comprei, tive de perguntar pra saber em que gôndola estava escondido. Costuma ser apresentado em dois tipos de embalagem: latinha e tubo (do tamanho do tubo de maionese). Há ainda duas opções: com açúcar e sem. O que não contém açúcar é mais vendido que o adoçado.

A razão é simples. Em princípio, leite condensado é visto como substituto do leite fresco. Para pessoas que gostam de tomar café com pouquíssimo leite, não é interessante comprar leite de caixinha. Vai estragar antes de ser consumido. Esse cliente prefere comprar leite condensado de tubinho. Usa um pouco de cada vez, põe a tampa, e o produto não estraga.

Conforme o país e determinadas características de fabrico, a denominação varia: leite condensado, leite concentrado ou leite evaporado. Na culinária europeia, não é ingrediente constante. Continua sendo visto, não como um produto em si, mas como substituto do leite fresco. Não frequenta os livros de doçaria. É produto para se ter guardado no fundo da prateleira para alguma emergência.

Se, por milagre, minha avó ressuscitasse, havia de levar muitos sustos. Como primeira providência, ela certamente sairia correndo pra comprar um jornal, que sempre foi um hábito diário.

Havia de ficar encantada de encontrar um mundo bem mais colorido do que o que ela conheceu. É verdade que automóveis perderam a cor e se limitam hoje a preto, branco, tons de cinza e algum bordô. Em compensação, os jornais perderam a monotonia do preto e branco e são impressos em cores. A tevê também – que era um chuvisqueiro cinzento – ganhou cores vivas. E as roupas, então! Uma policromia!

No entanto, ele havia de ficar assustada de ver que o Brasil tem agora um presidente que solta palavrão em público. E palavrão pesado, daqueles que, quando aparecem no jornal, vêm com tarja preta.

E havia de ficar abismada de ler, por detrás da tarja acanhada, as palavras presidenciais. E havia de ficar aterrada ao perceber que o presidente sugeriu à imprensa enfiar leite condensado num lugar que, (apesar de ela não captar direito qual poderia ser), intuiu que fosse impublicável. E enfiar com lata e tudo!

Pasma com o desvio de finalidade de um produto que já foi precioso, raro e caro, não tenho dúvida: ela pediria imediatamente pra ser levada de volta ao lugar de onde veio. E remataria em seu mineirês do século 19: «Arre! Este mundo não serve mais pra mim não, gente. Me deixa muito aflita! Ocês, que são brancos, que se entendam. A conversa tá muito boa, mas eu já vou indo.»

Quando Salvador era “a Bahia”

Sebastião Nery (*)

Em 1948 Salvador não existia. Era “a Bahia”. O interior inteiro, quando ia para a capital, dizia que estava indo para “a Bahia”. E “a Bahia” foi minha primeira grande aventura externa. Saí de Jaguaquara para a Bahia.

E chegou o mar. Nunca tinha visto o mar. Sabia que era grande e ameaçador. E ia ter que tomar o “navio da Baiana”, da Companhia Navegação Baiana, que fazia Salvador e os outros portos da baía de Todos os Santos. De repente, numa curva, vi ao longe aquela coisa azul, enorme, espichada, como um imenso animal deitado. Era o mar.

O coração disparou. O trem foi se aproximando, parou perto. Fui comer meu camarão com chuchu, mas de olho no belo animal azul.

O trem parava em São Roque, havia uma meia hora para o pequeno navio sair. Corríamos em disparada para as barracas das baianas do camarão com chuchu, a maior contribuição culinária dos africanos à cozinha brasileira. Maior do que a feijoada, porque a feijoada é complexa. Camarão com chuchu é simples, come-se com colher.

Entrei no navio, fui para a varanda, ele começou a balançar. Não muito, mas também não pouco. Todo navio balança. Não adianta propaganda. O homem jamais vai domar o animal azul. Mas eu queria ver Salvador nascer de dentro do animal azul.

À medida que o navio andava, um infinito cordão de pérolas começou a brilhar lá ao longe, no começo miúdas, depois crescendo, aumentando, até que viraram luzes, as luzes de Salvador, da ponta da Barra até Itapagipe.

Visão magnífica, inesquecível, para quem, como eu, via pela primeira vez. Uma cidade saindo do ventre das águas, como um parto no céu.

Com minha malinha de seminarista pobre, que estava se mudando do Seminário de Amargosa, onde estudei quatro anos, para o grandioso e glorioso Seminário Central de Santa Tereza, hoje Museu de Arte Sacra, era uma aventura. Entrei no Elevador Lacerda, metade com medo, metade encantado. E lá de cima, abertas as portas, o animal azul lá embaixo e a Ilha de Itaparica piscando luzes como se fosse um presépio de Deus.

Mas o seminário só começava no primeiro dia útil de fevereiro. E aquele fim de semana era Carnaval. De batina preta, chapéu preto, 15 anos, caí nos braços da enlouquecida rua Chile, com seus carros alegóricos e cordões de fantasias, mulheres lindas desfilando suas longas coxas mágicas.

Não havia outro caminho, era atravessar de ponta a ponta. E o povo surpreso com aquele padreco todo de preto, perdido no meio da folia. Meu roteiro era passar o fim de semana, sexta, sábado e domingo, em um pequeno hotel na rua Rui Barbosa, ao lado da Chile, e segunda-feira ir para o Santa Tereza. Até lá, noites inteiras na janela, vendo os carros desfilando, os blocos passando, homens e mulheres sambando e o povo cantando.

Diziam-me que Carnaval era coisa do Diabo. Não achei. Gostei muito.

(*) Sebastião Nery (1932-) é político, jornalista e licenciado em filosofia. Texto publicado no blogue do autor.

Chá de revelação

Eduardo Affonso (*)

Os amigos vão chegando. Alguns, avessos a modismos, não escondem o desconforto.

– Mas precisava mesmo fazer chá de revelação? Antigamente não tinha nada disso.

– Não tinha, tia Cotinha. Agora tem. Os tempos são outros.

Grupinhos se formam pelos cantos, sem ninguém se aproximar muito da mesa de comidas, em cujo centro há uma caixa envolta em celofane. Pelo protocolo – a coisa podia ser novidade, mas já tinha protocolo – comidas e bebidas só serão servidas depois do estouro do balão.

– E tem chá mesmo, ou é só modo de dizer?

– Só modo de dizer, tia. Não é porque é chá que tem chá. Igual chá de cadeira, chá de sumiço.

– Pelo menos uns biscoitinhos eles podiam adiantar, né?

Tia Cotinha estava de dieta, e não tinha interesse em revelação nenhuma. Só e tão somente em poder comer sem moderação, fosse o que fosse, enquanto as atenções estivessem voltadas para outra coisa.

– Sabe que cores vão usar?

– Não faço ideia. Pelo jeito, melhor não esperar nada convencional.

– Convencional é a última coisa que espero aqui.

– Só falta ser bege e dourado, e a gente que adivinhe o que cada cor quer dizer.

Alguém se aproxima da mesa dos salgados, pede silêncio, desembrulha a caixa, e dela salta um balão bege preso por uma fita dourada.

– Não falei que ia ter bege e dourado?

– Já pode pegar os salgadinhos?

– Não, tia, precisa estourar o balão primeiro.

Sobe a música. É “My way”, em ritmo cigano.

– E eu achando que o dourado era o pior que podia acontecer…

– Essa música é enorme e ainda repete. Tem mesmo que esperar até o fim pra pegar a comida?

Como se Deus ouvisse os apelos da tia Cotinha, a música é interrompida ainda na primeira parte, bem no “The record shows, I took the blows / But I did it my way” e uma voz anuncia:

– Dona Cotinha, sendo a senhora a tia favorita, queremos convidá-la a estourar o balão e…

Tia Cotinha não se faz se rogada. Com agilidade inusitada, toma a agulha das mãos do mestre de cerimônias, posiciona-se o mais perto possível dos pães de queijo, se inclina em direção ao balão, e puff! voam quadradinhos cor de chumbo por sobre a mesa de salgados.

Ecoam discretos aplausos e alguém aumenta de novo o som do celular – os Gipsy Kings agora na parte do “I ate it up and spit it out / I faced it all and I stood tall”.

Tia Cotinha se apossa da bandeja antes que outro parente mais afoito o faça.

– Papelzinho cinza significa o quê? – pergunta, com um pão de queijo pela metade, ao moço de terno preto que comanda o evento.

– Cremação. Se fosse enterro seriam papeizinhos roxos.

– Ah, tá.

A sobrinha, prima do morto, só percebe quando o segundo pão de queijo já foi devorado e o resto da travessa está bem embiocado no fundo da bolsa.

– Tia Cotinha!

– Vamos embora, Maria Alice. E no meu, por favor, contrata um bufê melhorzinho, que o pão de queijo tá borrachudo. E nada de cinza e roxo, pelamordideus! Quero púrpura e prata. Púrpura, tá entendendo, Maria Alice? Púrpura!

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Cinema

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Não fosse a grande dificuldade que tenho em vencer minha preguiça natural de sair de casa, eu frequentaria mais as salas de cinema. Existe ainda um outro importante fator: o trauma. Sei que é difícil acreditar em algum tipo de trauma que a gente possa carregar por causa de uma diversão como essa, mas eu arrasto um e posso explicá-lo melhor.

Há muitos anos, quando eu era solteiro e ainda muito mocinho, fui assistir a um filme. Nem me lembro qual era, mas fui. Levei minha namorada de então. Também não me lembro quem era, mas levei. Naquele tempo, namorar no escurinho do cinema era o máximo. Só vou fazer uma ressalva: quero deixar claro que, quando eu era mocinho, o cinema não era mais mudo. Ele já falava.

Enfrentávamos uma imensa fila para comprar os ingressos, quando dois meninos, bem vestidos até, se aproximaram e nos ofereceram dois ingressos. Ótimo. Assim, não teríamos de encarar toda aquela fila para comprar entrada e mais outra para entrar no cinema.

Os meninos nos explicaram que, como os pais deles já haviam comprado ingresso, aqueles estavam sobrando. Eu e minha namorada (qual o nome dela mesmo?…) nos entreolhamos e concordamos tacitamente em comprar os tais ingressos. Ficamos todos muito felizes. Tanto os garotos quanto eu e a… a… tá bom, vá lá, a moça que me acompanhava.

Saímos daquela fila e fomos para a outra, menos apinhada e mais rápida, para propriamente entrarmos no cinema. Logicamente, nos posicionamos atrás do último da fila para aguardar nossa vez. Percebemos que todos os companheiros de fila levavam ingressos de cor verde. Só os nossos dois eram cor-de-rosa.

Naquele exato momento, senti acender em minha testa uma luzinha que piscava: “otário, otário” em vermelho! Puxei minha namorada para fora da fila e saímos em busca dos meninos. Era um cinema de bairro, perto de onde eu morava. Naquele tempo existia apenas o cinema falado. Os shopping centers ainda não. Nem falados, nem mudos.

Saímos à cata dos dois garotos e, não demorou muito, os encontramos. Justamente na fila para comprar os bilhetes, com o meu dinheiro. Agindo como se participássemos de um filme de espionagem, ficamos atrás deles, para nos valer do fator surpresa. (Aprendi isto em filme do James Bond, mas o pessoal da Swat também usava esse truque.)

Claro, o truque funcionou como no filme. Já ia até dizer: “Meu nome é Manzano. Francisco Manzano”, com um canto da boca. Mas desisti rapidamente e comecei ali mesmo, segurando um dos meninos pelo braço, movido pelo impulso e pela raiva que eu sentia no momento, a gritar com os dois aprendizes de estelionatários.

A coisa mais delicada que eu vociferei foi que eles eram dois marginaizinhos, golpistas mirins. Disse que iria chamar a polícia para resolver o caso. Eles, ainda não recuperados da total perda de cor da pele (que, de tão branca, deixava transparecer os pulmões ofegantes), imploraram com um “pelo amor de Deus, moço, a polícia não!”.

Mexeram com meus sentimentos humanitários e fizeram jus às benesses da minha condescendência. Concordei com eles. Pra que a polícia? Antes de soltar o braço do garoto, fiz com que eles nos devolvessem o dinheiro que nos haviam surrupiado, o que fizeram com expressão apavorada. Ainda os ameacei. Num piscar de olhos, os dois sumiram. De tão rápidos, ninguém saberia dizer que rumo tomaram.

Quando já íamos nos afastar do local, com o dinheiro recuperado ainda guardado no meu bolso, surgiram-nos pela frente dois não muito simpáticos representantes de nossa polícia, que foram sem cerimônia alguma nos pegando pelo braço, enquanto uma senhora gorda, toda esbaforida, apontava para nós e gritava, chamando a atenção não só dos policiais, como de todos os que passavam pelo local:

‒ Foram esses aí mesmo, seu guarda! Foram eles que tiraram dinheiro das duas crianças. Eles ameaçaram os coitadinhos! Foi horrível! Pobres crianças! Gente tarada! Achei que eles iam bater nas crianças, até matar!

Pronto. Tentei explicar ao solícito policial o que ocorrera. Porém, no primeiro “mas” que esbocei, fomos, aquela moça que estava comigo e eu, gentilmente instalados dentro da viatura e levados até a delegacia.

Cinema é muito complicado. Depois da roda, a maior invenção foi o DVD.

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Teimosia

Eduardo Affonso (*)

Ali pelos 15, 16 anos, era mais difícil disfarçar a timidez e/ou a falta de traquejo no convívio social. As cantadas, então, estavam totalmente fora de cogitação. O jeito era deixar que outros dissessem por mim – e nisso a música romântica era imbatível.

Havia bailes; dançava-se de rosto colado; a respiração junto à orelha, a mão dedilhando a alça do sutiã ou descendo pelos quadris, a coxa roçando a coxa – tudo isso ajudava a verbalizar o que a voz não ousava.

E, se houvesse que haver uma voz, que fosse a do Paul McCartney dizendo “uô uô uô uô uô uô uô uô, my love does it good”, a do Elton John pedindo “fly away, skyline pigeon, fly” (eu jurava que era Skylab pigeon, mas isso é assunto para outro texto), ou Junior confessando que ”when you’re near, reality loses its hold and loneliness’ tears wet my soul”. Mas, tirando o uô uô uô uô uô uô uô do Paul, eu não entendia patavina. O que ajudava bastante.

O problema era quando as letras eram em português.

Em princípio, isso era um facilitador. Bastava cantar junto (ou fingir que cantava, tipo segunda voz de dupla sertaneja) e o recado estava dado. Se colasse, colou. Se não colasse, eu estaria só cantando a música, sem quaisquer décimas oitavas intenções.

Uma das minhas favoritas – para o bem e para o mal – era “Minha teimosia, uma arma pra te conquistar”, do Jorge Ben (ainda não era Benjor).

Era uma cantada perfeita. Direta. Para dançar com direito a olhares de promessa e um arremedo de gingado que podia ajudar na conquista pelo caminho da comiseração – mas, naquela idade, quem liga?

O problema era o meu apego à gramática. Eu tentava cantar corrigindo a letra, o que me tirava totalmente o foco. E, claro, ferrava com a métrica.

“A minha teimosia é uma arma
pra te (2º do singular) conquistar.
Eu vou vencer pelo cansaço
Até você (3º do singular)
gostar de mim, mulher, mulher.
Mulher graciosa, alcança a honra.
Você (3º do singular) alcançou, mulher.
Minha amada, minha querida, minha formosa
Vem (2º do singular) e me fala (2º do singular)
que eu sou o seu (3º do singular) lírio
e você (3º do singular) é minha rosa.
Mostra-me (2º do singular) teu (2º do singular) rosto
Fazei-me (2º do plural!!) ouvir a tua (2º do singular) voz
Põe (2º do singular) estrelas em meus olhos
Músicas em meus ouvidos
Põe (2º do singular) alegria em meu corpo
Junto com amor de você (3º do singular)
Mulher, mulher
Lá, lá, lá, lá
Mulher, mulher.”

Eu tentava pôr tudo na segunda pessoa do singular – e não funcionava. Tudo na terceira pessoa do singular – e não dava certo. E (vejam o nível de desespero) até mesmo tudo na segunda do plural. Em vão.

A minha teimosia com as pessoas gramaticais acabou se tornando uma arma para não conquistar ninguém. O jeito era vencer pelo cansaço – e ir com força no lá lá lá lá do final para tentar apagar a má impressão do gingado.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Direitos

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Almoçar fora aos domingos sempre é uma maneira agradável de o marido dizer que gosta da mulher, poupando-a de parte dos trabalhos domésticos, nem que seja uma vez por semana. Ou pode ser uma negociação antecipada (sem que a mulher se dê conta) para o maridão ir assistir ao jogo de futebol logo mais, tomando aquela cervejinha com os amigos. É preciso a mulher ficar atenta para julgar da sinceridade de um convite para almoçar fora num domingo.

De uma maneira ou de outra, muita gente acaba fazendo um programa desses aos domingos. Muita mulher desatenta acaba assinando um alvará para o marido abandoná-la pelo resto do dia, voltando a casa só bem mais tarde, depois de muitas cervejas e, dependendo da quantidade delas, com dificuldade até mesmo para se lembrar do nome da própria esposa:

— Ô… Ô… Ah!… Ifffone!!!

E, quando finalmente se lembra do nome da mulher, sente extrema dificuldade para se lembrar do assunto do qual queria tratar. Aí desiste e deixa pra outra hora.

Mas enfim aconteceu num domingo desses que o Genivaldo foi com a distraída Ivone almoçar fora. Ele já engatilhando as cervejinhas com os amigos mais tarde. Ela indo ingenuamente almoçar.

O Genivaldo é um desses sujeitos que se acham com todos os direitos e mais alguns que, aliás, não tem. Mas, mesmo assim, briga por eles. Tipo “você sabe com quem está falando?” e a outra pessoa nem ousa perguntar “com quem?”. Aí, pelo sim, pelo não, são obtidos os direitos e, de quebra, alguns privilégios também.

Assim, quando chegaram ao restaurante e fizeram menção de ocupar uma determinada mesa num lugar privilegiado junto a uma janela, um garçom, pedindo mil desculpas, indicou-lhes uma outra, num cantinho meio solitário, onde quem se senta parece estar de quarentena. Aquelas mesas já estavam reservadas para um cliente antigo do lugar.

‒ Como assim, não podemos nos sentar aqui? Só porque um figurão vem por aí?

‒ Não se trata disso, meu senhor ‒ respondeu muito polidamente o garçom ‒ é que ele reservou as mesas desta ala. Estão reservadas faz uma semana. É isso.

O Genivaldo já estava começando a espumar discretamente pelo canto esquerdo da boca, o que, para quem o conhecia, não era bom sinal.

‒ Então é isso? A gente trabalha, paga os impostos todos em dia e, quando resolve almoçar fora, não pode porque alguém mais importante segura a mesa antes de chegar ao local!

Comedidamente o garçom tenta explicar-lhe:

‒ Meu senhor, não se trata disso, é que simplesmente o nosso outro cliente fez reserva antecipada. Se me permite, temos uma mesa disponível alí naquele cantinho que, se for de seu agrado…

E apontou para um canto que só não era fora do restaurante porque providencialmente havia uma parede ali, justamente onde a mesa se encostava. Aliás, a mesa estava quase embutida na parede a ponto de deixar no ar uma pitada de dúvida sobre qual das duas viera primeiro: a parede ou a mesa. Podia-se arriscar um palpite de que ambas haviam sido instaladas ao mesmo tempo e no mesmo lugar.

O Genivaldo aceitou e se dirigiu para o cantinho junto com a esposa.

Garçom que é garçom não olha em volta para saber onde é que estão precisando de seus serviços. Acho que nas próprias escolas de formação profissional aprendem a desviar o olhar justamente para os lados onde não há ninguém. Em seguida, com poucos anos de prática, alguns chegam a atingir a perfeição. Você faz um discreto sinal com uma das mãos, mas nada. Você então ergue o braço em nova tentativa, mas o garçom continua a fingir que não viu. Em desesperada tentativa, quando você quase se levanta da cadeira e ergue o braço para chamar a atenção, como se estivesse numa estação de trem, quando todo o restaurante já se deu conta da sua agitação, só o garçom ainda não reparou. Provavelmente, quando você já estiver subindo à mesa para arriscar um zapateado, daqueles que terminam com um sonoro “olé”, aí sim, o garçom vai se resolver a vir até você.

Assim foi com o casal Genivaldo. A mesa à qual se sentavam ficava num canto quase esquecido do resto do restaurante (aliás, do resto de todo o mundo), bem pouco visitada pelos garçons que, a julgar pelo tempo que demoravam a voltar ao salão, pareciam estar em pleno campeonato de palitinhos na cozinha e somente nos intervalos davam umas voltinhas pelo salão, para reforçar a impressão de que ainda estavam por lá e para que os clientes não se sentissem em abandono total.

O bife à parmigiana pedido chegou à mesa em forma de peixe assado (devido a um pequeno mas lamentável equívoco do garçom). De sobremesa, veio um manjar branco em lugar do sorvete de framboesa encomendado (por outro menor mas também frustrante equívoco, coincidentemente do mesmo garçom). Como é natural, tais acontecimentos acrescentaram legitimidade a todas as reclamações feitas pelo Genivaldo, não ao garçom e muito menos ao gerente do restaurante, claro que não, mas à pobre Ivone que, como todas as esposas dedicadas, exerce, entre outras, a função de ouvidora do marido.

Saíram do restaurante depois de pagar a conta, obviamente sem deixar gorjeta alguma.

Quando foram reganhar o carro na rua, viram um policial lavrando uma multa por estacionamento em local proibido. O Genivaldo ainda tentou reclamar:

— Ô, seu guarda! Mas e os direitos da gente? Todo o mundo para por aqui. Será que só eu não posso?

— Não se preocupe não. Aqui todos têm seus direitos garantidos. Já multei todos os outros que estão estacionados e o senhor teve sorte: sua multa é um direito seu e, com ela, foi-se a última folha do meu bloquinho. Todos são iguais, sim, senhor…

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Apertem os cintos

Eduardo Affonso (*)

– Torre de comando, aqui é o capitão.

– Torre de comando na escuta, capitão. Prossiga.

– Quero trocar o engenheiro de voo, talquei?

– Durante o voo, capitão?

– Agora mesmo.

– Mas capitão…

– Eu sou o capitão, não sou? Quero colocar no lugar dele, hmmm, deixa eu ver, o comissário Éverton.

– O comissário Éverton tem conhecimentos para ser o engenheiro de voo?

– Ele trabalha no avião, porra. Conhece o avião. Já andou de avião. Quero o comissário Émerson como engenheiro de voo e pronto. O engenheiro antigo está demitido.

– Capitão, o senhor falou comissário Éverton ou comissário Émerson?

– Sei lá, porra. Um comissário aí.

– Está bem, capitão. O senhor está no comando, há de saber o que é melhor para a condução da aeronave até o seu destino.

– Eu andei pensando em mudar também o destino disso daí.

– O senhor quer mudar o plano de voo em pleno voo, capitão?

– Se os passageiros quiserem… E eu sei que os passageiros não estão satisfeitos de ser obrigados a viajar com o cinto afivelado, mesinha travada, não poder fumar… Tem muita gente insatisfeita com isso daí.

– Capitão, esses são procedimentos normais. É para a segurança dos passageiros e da tripulação.

– Falando em tripulação, eu não quero mais aquela aeromoça como chefe de cabine. Minha sobrinha, que está na poltrona 7F, é a nova chefe de cabine.

– Capitão, sua sobrinha trabalha na empresa? Tem os cursos?

– Contrata agora, porra. Contrato temporário. É que eu preciso de alguém de confiança na cabine enquanto eu vou lá fora trocar as turbinas.

– O senhor vai… trocar as turbinas?

– Vou. Elas estão me incomodando ali na asa. Não gosto de turbina zumbindo no meu ouvido.

– O senhor não prefere pousar primeiro para depois trocar as turbinas?

– Não. E quero as turbinas ali na parte de baixo. Naquele lugar ali, como é que chama? Aquele com pneu. Trem de pouso. Isso, quero as turbinas no lugar do trem de pouso.

– Capitão, vai ser difícil pousar sem os trens de pouso. Troque apenas a aeromoça e…

– Droga, tem uma luzinha vermelha acendendo aqui no painel. Ô da torre, como é que eu apago essa luzinha?

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Na pressão

Eduardo Affonso (*)

Não tenho medo de solidão.

Não tenho medo de cair no banheiro, bater a cabeça no tento de mármore do box e só me encontrarem quando eu já tiver escorrido pelo ralo e não restar nem o esqueleto, porque os cachorros terão levado os ossos para a sala e tudo que restará de mim será um fêmur meio roído, na boca do Tião.

Não.

Eu tenho medo é de panela de pressão.

A panela de pressão é uma esfinge. Uma bomba-relógio. Um campo minado.

Meu pai, homem intimorato, daqueles de andar com duas armas – uma na canela, outra embaixo do sovaco – só foi derrotado pelo câncer e pela panela de pressão (não nessa ordem, obviamente).

Ele entrava na cozinha apenas para perguntar por que é que o almoço ainda não estava pronto. Ele almoçava às 11 horas em ponto, para poder estar no Fórum pontualmente ao meio-dia. Por volta de 10h45, começava o inferno astral da minha mãe:

– Conceição, já são quase 11 horas. Cadê o almoço, Conceição?

Minha mãe suspirava resignada, e cozinhava, de modo que às 10h59 a primeira travessa chegasse à mesa, onde meu pai já a esperava, de garfo e faca na mão.

Um dia – morávamos em Visconde do Rio Branco – meu pai extrapolou sua jurisdição.

Invadiu a cozinha e resolveu pular os intermediários e pressionar diretamente a panela de pressão.

A panela, claro, não tinha a paciência infinita da minha mãe.

Seguiu-se uma explosão. Quando cheguei em casa não entendi o que havia acontecido, ou de onde surgira aquele teto cravejado de feijão.

Ninguém se feriu, e, tirando o feijão e o teto, salvaram-se todos. Meu pai deve ter entendido que ninguém está acima das leis da física. Que tudo neste mundo tem seu tempo, cada coisa tem sua ocasião.

O feijão com arroz, aquele dia, foi só arroz, quebrando – ao que eu saiba, pela primeira e única vez – uma milenar tradição. Minha mãe saboreou, grão por grão, essa vitória, obtida por interposta panela.

Fim do flexibeque.

Um lar só é um lar quando tem tapetinho na porta e panela de pressão. O tapetinho eu não tenho, mas comprei a panela, há alguns anos. Trouxe-a para casa como quem abre os portões para um cavalo de Tróia, sabendo o que ele guarda na barriga.

Usei-a poucas vezes, durante as faringites – quando uma sopa descia bem melhor que um sanduíche. Mas sempre o fiz com respeito, quase com reverência.

Levanto a válvula com a ponta dos dedos e espero que a panela desabafe, se acalme, sinta que está entre amigos. Depois, dou-lhe uma ducha de água fria, para aquietar-lhe os ânimos. Ela ainda resmunga um pouco, solta algum vapor pelas ventas, e só quando parece pacificada é que dou um passo para trás e destravo a tampa.

Tem funcionado.

Hoje, vencendo um trauma de décadas, cozinhei feijão. Escapamos incólumes: eu, a panela, o teto, o fogão.

Mais algumas experiências bem sucedidas com essa criatura explosiva e já me sentirei capaz de arriscar alguma coisa com uma mulher de Escorpião.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

O vaso e o cachepô

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Uma crônica com um título desses fica até com cara de fábula. Mas não é. Trata-se de caso que realmente aconteceu.

Contaram-me essa história como verdadeira e não tenho por que duvidar, pois a relatar-me foi o próprio dr. Venâncio Prates, homem de meia-idade (que já teve, com certeza, 1/4 de idade e um dia ainda há de ter idade inteira), sujeito boa-praça, que leva muito a sério seus cabelos grisalhos – os que ainda lhe restam e que agora observam, lá do alto, a barriga um tanto volumosa a comprometer um bocado a estética do conjunto.

Disse-me que a esposa, dona Ilda, à semelhança de tantas outras, adorava plantas. Frequentava exposições, admirava e elogiava o capricho da natureza na feitura das flores, umas mais belas que as outras, o que sempre a deixava sem saber definir qual a sua predileta, tantas as cores e as formas. Tamanha beleza e tanta variedade enchiam-lhe os olhos.

Foi num Dia dos Namorados que o dr. Prates teve a infeliz idéia de comprar um pequeno vaso com florezinhas muito delicadas, até bonitinhas mesmo. Tinha bom gosto para escolher, e não havia de existir melhor presente para a esposa.

Flor 1

Pois bem, deu-lhe o tal vaso. A mulher ficou radiante e passou uns 5 ou 6 dias agradecendo de tanto que gostou. Mas (e quase sempre há um “mas” para fazer a coisa desandar)… e o cachepô? Um recipiente desses melhoraria e muito o vaso, faria com que as flores ficassem ainda mais bonitas – achava dona Ilda. Um vaso sem cachepô está fadado ao insucesso, ao abandono, ao esquecimento.

Como de costume, dr. Prates atendeu logo ao desejo de sua amada. Um ou dois dias depois, apareceu em casa com um cachepô que, de fato, valorizou mais ainda o presente.

Um “mas” bastava? Claro que sim, se se tratasse de pessoa, digamos, normal. Já dona Ilda, com tanto tempo disponível para conjecturar, conseguia elaborar idéias mais profundas a partir de um simples vaso, agora reforçado pelo cachepô.

by Ewa Helzen, artista de Malta

by Ewa Helzen, artista de Malta

Achou que talvez fosse a cor da sala que não estivesse lá combinando muito bem com as flores, que, aliás, continuavam muito bonitas, embora parecessem já não ornar tão bem com o ambiente.

O dr. Prates não demorou a tomar a decisão de pintar a sala de estar. Claro que, logo em seguida, descobriu que a sala de jantar não podia ficar com a pintura velha e logo deu-lhe nova pintura também. Acatando sugestão da amada esposa, os quartos também foram pintados, o que obrigou, por conseqüência, a aplicar pintura nova ao resto da casa, sem esquecer, naturalmente, o lado de fora.

Feito tudo isso, dona Ilda, que continuava a cuidar muito bem das flores (que bem poderiam ser chamadas de Eva, pois foi por onde tudo começou), a sra. Prates – dizia eu – que tinha tempo de sobra para observar as coisas, após longa, acurada e minuciosa observação dos tons, do tamanho e do formato das flores do vasinho predileto, chegou à conclusão que, na verdade, era a casa que não combinava com a elegância e distinção das flores. Flores tão únicas, como jamais vira em sua vida. E depois, não era só isso, havia também que considerar o valor sentimental que elas representavam.

Flor 2

Não demorou muito e o dr. Prates, apesar das frustradas tentativas de demover a esposa da nova idéia (sem sucesso apesar de alentada argumentação), procurou nova casa, mais ampla, espaçosa (e mais cara também, claro) mas que, enfim, estaria perfeitamente apta a acolher, numa das salas, aquele vaso de flores dentro do cachepô.

Agora era hora de sossegar, mas (olha o “mas” aí de novo…) alguma coisa ainda inquietava o pobre dr. Prates (a esta altura, literalmente mais pobre mesmo, depois dos gastos consentidos). Conhecendo a esposa de longo relacionamento, ou seja, de muitos outros carnavais, pressentia ele que algo mais ainda estava por vir.

O dr. Venâncio Prates me confiou, depois de longo e profundo suspiro, que, preocupado com o conforto da esposa, comprou na semana passada uma almofadinha nova, para ela se sentar no banco do automóvel quando for dirigir.

A almofadinha até que ficou muito legalzinha, mas… (quem diria, hein, outro “mas”!), ele me disse que esta semana estão procurando um modelo novo de carro para comprar. Zero, é claro. E a almofadinha vai ter que ficar uma graça no carro novo.

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Texto publicado originalmente em 29 maio 2015.

Amigos

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Foram tempos difíceis. Não fossem alguns amigos, nem sei bem que rumo, talvez até trágico, poderia ter tomado a vida do Neves, coitado.

E foi justamente nessa hora que o Neves pôde reconhecer o valor de seus amigos. Ao menos daqueles mais próximos, que não mediram esforços para contrariar a natureza e fazer com que a vida dele se tornasse um pouco melhor do que estava.

Aquilo, provavelmente, seria apenas uma fase ruim, afinal, a vida de todo o mundo é assim mesmo, feita de fases, com algumas marés boas e outras deprimentes.

Mas aqueles foram tempos difíceis mesmo. Primeiro a separação, com a mulher do Neves indo embora de casa. Em seguida, praticamente na mesma época, a perda do emprego. Era duro enfrentar a situação, quando a mulher e o patrão do Neves descobriram, ao mesmo tempo, que não precisavam mais dele. Pior do que isso, só se os dois (patrão e mulher) descobrissem que não precisavam mais do Neves e que ambos precisavam muito um do outro. Mas não foi esse o caso, dos males o menor. Apenas coincidiu de ambos dispensarem os bons serviços prestados pelo fiel Neves depois de tantos anos. Há quem diga que isso é destino, outros chamam de praga de urubu.

De qualquer forma, aconteceu desse jeitinho mesmo. O patrão do Neves achou que ele já não estava produzindo tanto quanto antes e disse-lhe simplesmente: “Foi um prazer tê-lo conhecido, tchau”. A mulher do Neves, quanto a ela, nem isso disse. Deu apenas um sonoro “tchau” e saiu pisando duro, com um ar de até-nunca-mais-se-Deus-quiser. Talvez ele também já não estivesse mais produzindo tanto quanto produzia antes ‒ isso ninguém nunca ficou sabendo ao certo…

O Neves chorou, sofreu, imaginou que nunca mais ia se recuperar, começou a achar que não servia mais pra nada, nem pra trabalhar e, pior que isso, nem pra ter uma mulher, aquelas coisas todas de baixo astral, dava dó, só vendo.

by Vasilis Akoinoglou, artista grego

Deixou de pagar o aluguel, com o qual já não tinha mais como arcar. Começou a beber. Só não foi parar na rua porque o Pacheco e sua mulher lhe deram uma mão e se ofereceram para recebê-lo em casa. Por uns tempos, é claro, só até que as coisas melhorassem. O Neves hesitou, não queria aceitar, mas diante das circunstâncias, como não lhe sobravam outras opções entre aceitar a ajuda ou eleger residência debaixo do Viaduto Santa Ifigênia ou sob um viaduto da Avenida Marginal (num programa de múltipla escolha), acabou aceitando o oferecimento do casal de amigos, frisando bem que era apenas temporário.

O casal Pacheco recebeu o Neves com visível prazer, muitas atenções e todos os cuidados que se têm quando se acolhe um bom amigo em casa. Ele parecia fazer parte da família. Muito amigos, realmente. Coisa bonita e rara de ver, aquilo.

No início, o Neves tentou relaxar um pouco depois do sufoco pelo qual andara passando; tratou de desligar e se refazer. O casal Pacheco sempre solícito, fazendo de tudo para tornar a hospedagem perfeita.

O Neves batalhou e, depois de algum tempo, conseguiu encontrar novo empreguinho. Não era tão bom quanto o anterior mas, àquela altura, ele não podia ser tão exigente. Aceitou aquele mesmo, afinal, era um recomeço.

A mulher do Pacheco, uma morena muito bonita, de olhos grandes, sorriso aberto e sincero, sempre agradando ao Neves em tudo o que estava a seu alcance, incentivando-o o mais que podia.

Passados o susto e o trauma dos primeiros tempos, a vida do Neves pareceu estar voltando ao normal. Aliás, mais ao normal do que se imaginava.

Aproveitava sempre seu tempo livre para conversar com a sra. Pacheco. Não podia deixar de admirar e sentir-se atraído pela beleza natural daquela mulher, digamos assim, tão boa de alma quanto de corpo também. Com todo o respeito, é claro.

by Vasilis Akoinoglou, artista grego

Era impossível olhar para aquela mulher sem se deleitar com imagem tão bonita ‒ uma mulher que devia ter sido feita num dia em que Deus, certamente de bom humor, decidira mostrar o que é capaz de fazer para alegrar os homens. Diante de mulher com perfume tão suave, voz tão delicada e gentil, sentimentos tão nobres, o Neves não conseguia evitar que lhe passasse pela pobre cabeça um desejo forte que vinha tímido, discreto, mas sincero, lá do fundo do seu ser. Mas que ele logo tratava de reprimir em nome do bom senso e do respeito ao amigo Pacheco.

Diariamente aquela mulher, com seu jeito tão natural e ao mesmo tempo sensual, provocava sonhos no Neves, sonhos estes inapelavelmente classificados como “impróprios para menores de 18 anos”.

O Neves começava a sentir-se mal com a situação. Francamente, não pegava bem ficar assim pensando em bobagens justamente com a mulher do amigo Pacheco. Afinal, era constrangedor que isso acontecesse justamente com o casal de amigos (por sinal bons e grandes amigos) que o haviam socorrido, acolhido e abrigado num momento tão delicado e difícil.

Ele já não pensava mais nela como a mulher do amigo. Já pensava nela apenas como mulher, sem o amigo.

Um dia o Neves disse para si mesmo: “‒ Eu só seria capaz de fazer uma coisa dessas se eu fosse mesmo um cara muito sem-vergonha, um canalha, que não tivesse caráter nem princípios. E se eu fosse, ainda por cima, totalmente irresponsável”.

Mas como nesta vida a gente vai vivendo e descobrindo coisas novas e surpreendentes a cada dia, meia hora mais tarde ele concluiu: “‒ É… Acho que eu sou tudo isso mesmo…”

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

A empresa

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Era uma empresa de porte médio, mas crescendo a cada dia. Muitos funcionários. Entre eles um chefe, o Januário, dono de um cargo de destaque e que supervisionava o trabalho de toda aquela gente que carregava a empresa nas costas.

Como tinha curso universitário, muito embora nunca tivesse defendido nenhuma tese, era tratado por doutor. Era, portanto, o Doutor Januário, muito prazer.

Era um homem que sempre tirava nota baixa em toda prova de humildade. Sem “por favor” nem “muito obrigado”. Ninguém lhe prestava favor algum, pois era sempre uma obrigação servi-lo. A ninguém agradecia, pois não precisa agradecer quando alguém não faz mais que a obrigação.

Mas onde será que andava o Macedinho? Já uma semana sem comparecer ao trabalho. Ninguém sabia dizer. Nenhuma notícia, nenhum telefonema, nenhum pedido de desculpa. Aquilo era demais, era só ligar ou mandar um recado por outra pessoa, sei lá. Mas não, ninguém sabia dele.

Na segunda-feira seguinte, lá apontou o Macedinho, sorridente, com o mesmo semblante calmo e sereno de sempre. Por onde passava, todos olhavam para ele como se fosse um homem-bomba em direção ao seu triste destino, coitado, prestes a explodir a qualquer instante. Ninguém ousava dirigir-lhe a palavra nem sequer aproximar-se dele. Subiu, sem ninguém lhe dizer nada, até o 3º andar do prédio, onde, depois de bater à porta anunciando sua chegada, entrou no gabinete do dr. Januário, que o recebeu não com cara de poucos amigos mas com cara de amigo nenhum amigo.

‒ Entre e feche a porta, sr. Macedo. Sente-se e vamos conversar. Vai ser rápido.

O Macedinho sentou-se numa das duas poltronas em frente à mesa do chefe. Não parecia preocupado, transmitia tranquilidade. Parecia feliz.

‒ Pois bem, sr. Macedo. Uma semana sem comparecer ao trabalho. Já vi algumas coisas acontecerem em minha vida, mas uma ousadia dessas é a primeira vez. Esqueceu que há um chefe aqui, que quem manda aqui sou eu, que todos têm a obrigação de dar satisfações? Ainda mais num caso destes! Uma semana!

‒ É… – ponderou em tom tranquilo o Macedinho.

‒ O que é que o senhor acha que eu devo fazer agora? Não, não me diga. Aposto que vai me contar uma história qualquer, de uma tia velhinha lá do interior que estava doente e coisa e tal. Esqueça, não vai colar. E também não estou a fim de ouvir bobagem.

‒ Claro, tem razão, bobagem… ‒ comentou impassível o funcionário.

‒ Já vi funcionários rebeldes, já vi muitos desleixados, mas o senhor me parece mais do que isso. É um grande idiota… Mas pode ser que seja só um retardado mental mesmo. Aliás, o senhor pode até escolher. Pode ser um idiota ou um retardado mental. Para mim, tanto faz, dá na mesma. Pode escolher.

Sem dar qualquer espaço para que o funcionário, ao menos, tentasse se explicar (ou optasse entre idiota e retardado), o chefe continuou:

‒ Olhe aqui, eu cheguei aonde estou depois de muitos anos batalhando e não por puro puxa-saquismo, como dizem esses seus colegas idiotas por aí. Por competência. E agora, mesmo com essa história que a gente já está sabendo, da venda da empresa, saiba que eu vou continuar aqui, neste mesmo lugar, tá ouvindo? Por competência no cargo.

Houve um pequeno intervalo de total e desconcertante silêncio, após o quê o chefe disse:

‒ Agora, se quiser, pode falar. Mas seja breve.

‒ Bom, dr. Januário, eu gostaria só de fazer duas perguntas. São fáceis de responder. Vai ser rápido.

‒ Pode fazer, mas rápido.

‒ Pois bem. O senhor ficou sabendo que o sorteio da mega-sena da semana passada teve só um ganhador para aquela fortuna toda de quase 30 milhões?

Nesse momento deu um clique na cabeça do chefe, que se ajeitou melhor na cadeira, descruzando as pernas para novamente cruzá-las do outro lado com ambas as mãos segurando os braços da poltrona e respirando um pouco mais profundamente.

‒ Muito bem. Primeira pergunta: adivinhe só quem foi esse sortudo ganhador? – perguntou o Macedinho abrindo um grande e muito malicioso sorriso no rosto, olhando fixamente nos olhos do chefe.

O dr. Januário não respondeu, talvez com medo da própria resposta. Ficou com o olhar paralisado, fixado no funcionário, a boca entreaberta.

‒ Segunda pergunta: adivinhe só quem foi que passou a semana toda em negociação e acabou comprando esta empresa?

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

A casa da minha avó

Ruth Manus (*)

A casa da minha avó tem um manacá. Tenho a estranha sensação de que ele fica florido o ano todo e não apenas nos três meses da primavera. Talvez seja só impressão minha. Ou talvez seja a presença da minha avó que encha tudo de flores roxas e brancas, 365 dias por ano.

A casa da minha avó é em Santo Amaro e é a casa mais bonita do mundo. Já estive na Toscana e na Provence e não vi nenhuma casa melhor do que a da minha avó. Vi maiores, vi mais caras, vi de tudo um pouco e nunca vi nenhuma casa que tivesse esse improvável aspecto de ser o melhor lugar do mundo. Mas a dela tem.

Na casa da minha avó, sempre que a gente chega, tem cabelos prateados à nossa espera. Não sei se há outro lugar no mundo onde eu me sinta tão bem-vinda. Meu marido sempre me espera, meus pais sempre me esperam, meus amigos sempre me esperam. Mas a minha avó me espera na porta. E nunca se importa que eu me atrase.

A casa da minha avó tem uma garagem pequena e vazia. Sempre que olho para ela me lembro do Gol preto do meu avô, no qual entramos depois dos pênaltis da Copa de 94, para buscar meu tio no aeroporto, enquanto buzinávamos e balançávamos as bandeiras. Em 95, já não havia mais meu avô, nem Gol preto. Deram-no como parte do pagamento ao empreiteiro que fez obras na casa para tentar alegrar a minha avó. Já aviso: não funciona. Novas paredes não substituem velhos amores.

A casa da minha avó tem a sala impecável, arrumada, perfumada e sem pó, mesmo que a faxineira só a visite duas vezes por mês. As flores nunca ficam com sede, os vidros nunca ficam embaçados, os quadros nunca ficam tortos. Espero aprender a ser assim até os meus 88 anos. Por enquanto, me contento em lembrar de guardar o leite de volta na geladeira.

Na casa da minha avó, a família inteira está presente, ainda que seja só nos porta-retratos. Ela coleciona amores. Os três filhos, os sete netos e as duas bisnetas estampam a sala com seus sorrisos largos e suas presenças raras. Em 2004, foi colocada a foto do casamento do meu irmão. Em 2013, do casamento da minha irmã. A ordem cronológica pedia que a próxima fosse eu, mas minha prima queimou a largada e passou na minha frente. Quem é que se casa aos 22, Júlia de Deus?

Na casa da minha avó, há um relógio verde na parede da cozinha. Embaixo dele, a mesa de madeira onde me sento e espero. Não posso fazer nada que não seja esperar, ela não deixa. E então começa: experimenta um pedacinho desse bolo. E esse pão fresco. Com geleia. Tem de damasco e de morango. Coloca requeijão também. Um suco de caju. Um Toddy quente. Manteiga Aviação. Queijo e presunto. Não importa se são 9h15, 14h30 ou 19 em ponto. Não importa.

Na casa da minha avó não se toma Coca-Cola, mas, misteriosamente, duas garrafas vazias surgiram por lá. Foi na época em que a Coca-Cola estampou as embalagens com os nomes das pessoas. Ela encontrou Rita e encontrou José. Juntou-as em cima da geladeira, como uma das únicas formas de ainda estar ao lado do meu avô, depois de 22 anos de viuvez. Acho que isso foi a coisa mais bonita que já aconteceu com a Coca-Cola.

A casa da minha avó é cheia de tricô. Mas ela só gosta de tricotar para os bebês. Para adultos, só cachecóis. E não para qualquer adulto. Só para aqueles que mereçam o suficiente para retardar a entrega do casaco de algum bebê. Eu mereço. O último foi o cinza. Antes o roxo. E antes o branco. E antes um todo colorido. São os melhores que tenho.

A casa da minha avó tem talco. Tem os perfumes do meu avô até hoje na prateleira. Tem um colar com um teletubbie vermelho que eu dei para ela há uns 20 anos, não sei bem o porquê. Tem azulejos decorados na cozinha. Novelos de lã. Goiabada. E braços abertos. Os melhores braços abertos deste mundo. Nem os do Cristo Redentor ganham deles.

(*) Ruth Manus é advogada, escritora e colunista do Estadão.

Distraído e desligada

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Ele muito distraído, ela extremamente desligada, Dorival e Helena formavam um par perfeito. Quando acontecia a um deles de se esquecer de alguma coisa, o outro não tinha moral para cobrar nada. De qualquer maneira, eram tão distraídos que se esqueciam de cobrar um do outro. Eram iguais. Formavam, enfim, um casal no mínimo interessante.

‒ Você se lembrou de passar na farbácia e comprar o beu rebédio para gripe?

‒ Ai meu Deus, Dori! (Pode não parecer, mas ela o chamava de “Dori” para ser carinhosa e não para irritá-lo). Sabia que estava esquecendo de alguma coisa! Sua gripe… Quer dizer, seu remédio! A gripe você já tem, não precisava comprar. Era só o remédio.

‒ Tudo bem, se até abanhã eu não tiver borrido de pdeubodia, eu besbo vou comprar o beu rebédio.

doente-4À história de estacionar o carro em algum ponto da cidade e depois ter de fazer longas caminhadas até encontrar o ponto de novo, os dois já estavam muito acostumados. Involuntariamente, disputavam para ver quem fazia isso mais vezes.

Ela só ganhava dele porque uma vez tinha ido trabalhar de carro e voltado a pé para casa, esquecendo-se do carro na garagem do escritório. Era a diferença entre ambos: ela já era pós-graduada em esquecimento e distração.

Para confirmar que o primeiro lugar era dela, houve aquela história do salto. Certa feita, saíra de casa e dançara a noite toda sem se dar conta de que o pé esquerdo do sapato alto estava sem salto. Um desnível de 7 centímetros entre os dois pés! É verdade que havia sentido uma certa dificuldade para se locomover, mas não pensou em verificar o salto.

Era comum um deles chegar na hora do jantar com muita fome e só então se aperceber de que havia se esquecido de almoçar: “Bem que eu senti que faltava alguma coisa!”

Numa noite de sexta-feira, após um dia duro de muito trabalho, ele voltou para casa muito cansado. Carregava a nítida impressão de estar se esquecendo de alguma coisa mas não sabia de que era. Sempre acontecia assim.

Como já era meio tarde, não quis incomodar a Helena, que já dormia no quarto. Preparou-se para dormir. Tomou banho, vestiu pijama e foi para o quarto, sempre com aquela impressão de estar se esquecendo de alguma coisa. Mas como não havia grande novidade em estar se sentindo daquela maneira, foi em frente, fazendo tudo igual.

Apesar do cansaço, quando a Helena procurou por seus braços dando-lhe também abraços, parecendo esperar por ele já deitada no quarto escuro onde aparentemente dormia, o Dorival não resistiu e, esquecendo-se do cansativo dia de trabalho, entregou-se à esposa como poucas vezes o fizera.

cama-2Foi uma noite interminável, como poucas, só se comparando à já longínqua lua de mel. Por fim, adormeceram e só foram acordar com os raios do sol já invadindo o quarto na manhã do sábado.

Sábado! Era isso! Mas que coisa mais estranha! Ele deveria ter ido encontrar-se com a Helena na casa da praia, onde deveriam passar o fim de semana! Mas ele havia se esquecido da viagem e tinha voltado para casa!

Mas então… Quem era?!… Só então, quando olhou para o lado, viu a Márcia deitada, ainda dormindo. A melhor amiga do casal, solteira, que sempre se insinuava para ele. Claro! Sempre que viajavam nos finais de semana era ela quem dormia lá pra tomar conta da casa!

Bom, de qualquer forma, a costumeira falta de memória ajudaria a esposa a acreditar na história. Afinal, era mesmo verdade todo o acontecido.

Ele apenas omitiria que ainda acordou a Márcia para lhe dar um bom-dia todo especial. Ele tinha certeza de que logo se esqueceria daquela história toda. E, já que estava ali…

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Personalidades caninas

Myrthes Suplicy Vieira (*)

É estranho como um pet, principalmente se for um cachorro, é capaz de denunciar com seu comportamento a maneira de seu dono encarar a vida. Explico melhor: se o dono é uma pessoa esportiva, o cachorro será elétrico, propenso à ação. Se o dono é um intelectual, amante dos livros, o cão será capaz de permanecer horas a fio deitado aos pés da cadeira onde o dono está sentado em absoluto silêncio, dormitando (ou, quem sabe, até “filosofando”).

Já contei aqui que sou uma pessoa repleta de manias e hábitos arraigados. No entanto, percebo que meu espírito burocrático foi transferido de formas distintas para minhas duas cachorras. No caso da mais velha, ele parece ter sido absorvido integralmente, sem tirar nem pôr. Sempre me surpreendo ao vê-la circulando livremente, sem guia. Ela faz sempre o mesmo percurso, dia após dia, cheira os mesmos lugares e caminha sempre no mesmo ritmo, não importa se está chovendo, fazendo frio ou se é um esplendoroso dia de sol primaveril. Rói cada grãozinho de sua ração com a paciência de um chinês ou como se conhecesse os benefícios da mastigação saudável. Se está com um petisco na boca, é pura perda de tempo tentar atraí-la com outro ou chamá-la para outra atividade qualquer. Enquanto não terminar o que está fazendo, ela nem mesmo se digna a levantar os olhos. Sua humildade se revela nas coisas mais simples: ela não aceita nada que considere grande demais, seja alimento, petisco ou brinquedo.

Cachorro 7Já no caso da mais nova, é mais difícil perceber como a rotina se entranhou nela. Festeira e carente por natureza, ela sempre se mostra disposta a incorporar uma novidade, seja de que tipo for. Se está mordiscando um petisco e é apresentada a outro, ela rapidamente cospe fora o anterior e abre o bocão. Se for possível, come os dois ao mesmo tempo. Se está pacatamente entretida com uma bolinha e alguém mostrar outra, ela corre de um lado para outro tentando decidir qual das duas prefere abocanhar. Se está sonolenta, basta chamá-la para passear que ela se levanta e dispara, sem nem mesmo olhar para trás. Precisa de movimento, agitação e atenção em tempo integral.

Outra coisa que me intriga desde sempre é como a mais nova parece observar e copiar o comportamento da mais velha, especialmente se ele provoca uma reação positiva em mim. Se elogio a capacidade da Molly de conter impulsos, a Aisha imediatamente tenta refrear os dela. Se a Molly tem um lugar favorito para dormir, na primeira oportunidade a Aisha a expulsará sem nenhuma delicadeza (já chegou a se deitar por cima da pobre coitada). Se a Molly escolhe um lugar para fazer xixi, a Aisha a segue e faz o seu exatamente por sobre o dela.

Por estes dias me dei conta de que, todo dia de manhã, a mais nova me espera fazer o café e depois me segue, trazendo consigo sua indefectível bolinha. Tão logo eu me sente, ela senta à minha frente e encosta a cabeça no meu joelho, o rabo abanando feliz, à espera de um carinho ou de que eu aceite brincar com ela. Se a ignoro, ela se afasta e vai deitar em algum canto distante, com uma cara de amuada de fazer dó.

Se eu tivesse de fazer uma analogia da postura característica de cada uma com a de atrizes tradicionais do cinema, diria que a Aisha é certamente uma mistura de Mae West e Greta Garbo. Só quem já a viu deitada no sofá, com a cabeça recostada numa almofada, olhar lânguido e o rabo pendendo em suave curva para fora do sofá, pode testemunhar a favor dessa tese. Às vezes, chego a pensar que um dia ela vai me olhar e dizer com cara de enfado: “I’m no angel” ou “Leave me alone”.

Crédito: WaveMusicStudio

Crédito: WaveMusicStudio

Por outro lado, qualquer um pode perceber à distância que a Molly exala um ar de seriedade, tem a elegância de uma “lady” recatada como Audrey Hepburn, misturado a uma aura dramática de mistério, como Bette Davis. Muitas vezes, quando está deitada, cruza as patas da frente e me encara altiva, como se imperatriz ou esfinge fosse. Por vezes, tenho a impressão de ouvi-la dizer “Decifra-me ou te devoro”.

Não sei dizer se a raça ou a coloração do pelo interferem nessa avaliação. Aisha, uma Golden Retriever, tem a personalidade estereotipada das loiras fogosas: é extrovertida, exibicionista, explosiva e quer sempre ser o centro das atenções. Molly, uma Bernese Mountain Dog, traduz em tudo o padrão comportamental das morenas aspirantes ao esplendor espiritual: é tímida, assustadiça e desconfiada das pessoas que fazem muito estardalhaço. Ao mesmo tempo, quando se aproxima espontaneamente de alguém (o que acontece raríssimas vezes), pode-se apostar que ela encontrou uma alma gêmea.

santos-dumont-1De qualquer maneira, vejo-me forçada a admitir: tenho um lado defendido, de quem luta com unhas e dentes para preservar a própria intimidade, mas adoro também ser alvo de admiração. Pensando bem, talvez seja eu mesma uma combinação das tradições francesas e da malemolência insolente brasileira. Unindo os dois lados, só o meu desejo de fazer a Europa curvar-se ante o Brasil, como dizia a modinha que minha avó cantarolava.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Interligne 18cNota deste blogueiro
A modinha à qual a autora se refere é a cançoneta em homenagem a Santos-Dumont composta por Eduardo das Neves e gravada pelo cantor Bahiano no longínquo ano de 1902. Quem quiser ouvir um trechinho dessa preciosidade pode clicar aqui.

Crônica sem fadas

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Fada 1Era uma vez… Pronto, já está com jeitão de conto de fadas. Porém, isto não é um conto de fadas, nem ao menos um conto, mas sim uma crônica. E nunca se viu crônica de fadas. Mas… e a vontade que eu sempre tive de escrever alguma coisa que começasse com um “era uma vez”? É a minha oportunidade, desculpem. Pois bem, se você não tiver nada melhor para fazer nos próximos 3 ou 4 minutos, vamos lá então.

Era uma vez, em um lugar muito bonito e distante (as histórias desse tipo sempre acontecem em lugar bem longe de onde a gente as lê e todo lugar distante é sempre mais bonito do que aquele onde se está), uma moça que tinha uma grande amiga. E, por feliz coincidência, a outra moça também a tinha como grande amiga!

Esta história aconteceu no tempo em que ainda se tinha o salutar hábito de cultivar boas e grandes amizades. Logo depois, foi que pararam de escrever histórias de “era uma vez”. Foi justamente quando se acabaram as grandes amizades. Talvez as grandes amizades não passassem de conto de fadas, vai saber.

Às vésperas do aniversário de uma das duas amigas, já tarde, lá pelas 10 da noite, toca o telefone:

Sandalia 1– Alô (com voz de sono).

– Oi Cidinha! Tudo bem com você?

– Hermê! (Ninguém tinha coragem de pronunciar Hermengarda). Tudo bem. E com você?

– Pois é, amiga, eu estou ligando por causa de seu aniversário.

– Sério mesmo? Que legal! E daí?

Telefone 2– Sabe o que é? É que eu vi, numa loja, uma sandalinha que é a tua cara! Logo me lembrei de você e do aniversário, Cidinha.

– Ora, que bobagem, não se preocupe com isso, Hermê.

– Não é preocupação nenhuma. Eu só liguei pra saber qual é o seu número.

– Por favor, não se incomode não! Eu nem estou pensando em fazer nada no meu aniversário.

– Não tem importância. Não tô nem aí com festa nenhuma, amiga. Eu faço questão de dar um presentinho pra você. Coisa pouca, mas é de coração.

– Ah! Deixa disso! Não precisa se preocupar com nada, tá?

– Mas eu faço questão! É como eu falei, é coisinha à toa mas é muito sincera, viu, Cidinha? Me diz o número, vai.

– Você sabe que eu nunca vou poder retribuir.

– Mas quem está pensando em retribuição? Deixa disso, fala o número pra mim, vai.

– É, eu sei bem porque você faz questão de ficar me dando presentes, sua metida.

– Eu dou presentes porque gosto muito de você e quero demonstrar isso, Cidinha. Por favor, não pense nada errado.

– Que nada! Eu estou pensando o certo. Você quer é mostrar que pode mais que eu. O Olavo é humilde, não tem o suficiente pra me presentear, mas eu estou feliz assim mesmo, viu?

Telefone 1– Mas quem falou no Olavo, meu Deus!? Eu gosto muito do seu marido!

– E eu sei que gosta, eu sei muito bem o quanto gosta! Pensa que eu não percebi quando você começou a dar em cima dele? Pois saiba, minha amiga, ele é pobre mas ainda é meu, só meu, viu? Só meu.

– Acho que você está nervosa à toa. Eu nunca quis nada com o Olavo e agora eu só quero te agradar no aniversário, que coisa!

– Tá vendo só? Agora é “que coisa”, né? Olha só o seu jeito de falar.

– Foi só uma maneira de falar… Me desculpa, vai.

– Uma ova! Primeiro fica de olho no marido dos outros. O Olavo, pobre Olavo…

– Mas eu nunca quis nada com seu marido, Cidinha! Por favor…

– E além do mais, fica tentando me humilhar comprando sandalinhas que sabe que eu não posso ter.

– Eu não quero te ofender nem te humilhar! Que é isso, amiga?!

– E olha, não quero mais saber de conversa. E se quer me fazer um favor, não fale mais comigo, tá? Nunca mais!

O telefone é desligado.

– Alô? Alô? Cidinha?…

Castelo medieval 2Assim como a história começou com era uma vez, assim termina também: era uma vez uma grande amizade. Após o fim da conversa, o Olavo (marido da Cidinha, lembra dele?), que por coincidência estava ao lado da Hermê, no apartamento dela, pergunta:

– Hermê, o que foi que a Cidinha achou da idéia da sandalinha?

Interligne 18h

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Aplicação

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Bebida 3O Walmir sempre fora um sujeito boa-praça, simples e simpático. Era um brasileiro típico da chamada classe média, que tem esse nome justamente porque precisa fazer média com todo mundo pra poder se manter em equilíbrio. Principalmente com os credores.

Um dia foi até o banco onde mantinha uma conta. Lá chegando, foi direto procurar pelo gerente. Gerente era o que não faltava por ali. Ele procurava um para fazer aplicações. Pediram que aguardasse. Pacientemente aguardou.

O ponteiro grande do relógio ia quase completando sua volta quando lhe pediram que se sentasse em frente a um funcionário que já o aguardava do outro lado da mesa cheia de papéis. Ficava no saguão, junto a um monte de outras mesas, todas iguais, tipo vala comum, daquelas que servem para atender aos que têm cara de ter, no máximo, 3 ou – se muito – 4 dígitos na conta.

– Pois bem, seu…

– Walmir.

– Então, seu Walmir. De que o senhor está precisando?

A pergunta fazia sentido. O Walmir tinha cara de empréstimo.

– Bom, eu gostaria de fazer uma aplicação.

– Muito bem, uma aplicação. Escolheu o banco certo. Aplicação em quê? Poupança talvez?

– Na verdade, eu não sei dizer em quê. É justamente por isso que eu vim aqui. Para me aconselhar sobre o assunto.

– Bom, bom… Para aplicações pequenas, para quantias populares, aconselhamos mesmo a poupança. Rende bem e é fácil de lidar. O senhor vai ganhar sempre. Nosso banco certamente vai ajudar o senhor a lucrar sempre.

Banco 5O Walmir ajeitou-se melhor em sua cadeira. Prosseguiu:

– É que eu estou pensando em fazer uma aplicaçãozinha um pouco maior, sabe?

– Rã-rãnnn… Maior? Maior quanto?

– Bom, ainda não sei ao certo, mas é coisa por volta de uns 20 milhões talvez.

Reverência 2Nesta altura do campeonato, o gerente agitou-se todo em sua giroflex e imediatamente convidou o Walmir para acompanhá-lo até sua sala, no andar superior, onde poderiam conversar mais sossegadamente. Conforme subiam as escadas, o Walmir também ia sendo promovido. Chegou lá em cima e já era o doutor Walmir. O fato de ele nunca ter cursado faculdade e muito menos ter defendido tese era irrelevante. Uma pessoa que faz uma aplicação com um número tão robusto tem de ser tratada por doutor.

O gerente foi logo oferecendo água, café, ou, se preferisse, um uísque. Era só pedir. O Walmir preferiu o uísque, apesar de ainda ser de manhã. Foi logo servido.

– Bom, doutor Walmir, eu aconselharia aplicar esse dinheiro em CDBs ou em RDBs, mas não é bom colocar tudo num só tipo de aplicação, sabe como é. Não é seguro, sabe?

O Walmir deu um gole no uísque, enquanto pensava. O gerente prosseguiu:

– Aliás, quero que o senhor me desculpe pela sugestão da aplicação em poupança. Com essa correria do banco, num primeiro momento não percebi que falava com uma pessoa de tão alta estirpe. Espero que não esteja ofendido.

– Sei, sei… Se eu aplicar em CDBs, por exemplo, quanto me renderia?

O gerente tocou a fazer contas e mais contas, calculou e recalculou, passando o resultado ao doutor Walmir.

O Walmir pensou um pouco e aventou a hipótese de aplicar na bolsa. Queria saber, em tese, quanto lhe renderia.

O gerente imediatamente fez cálculos hipotéticos, levando em consideração o tipo de ações, o prazo da transação, a direção do vento, a pressão do ar, se iria chover ou não. Juntou um pouco de sal, passou tudo numa peneira fina e respondeu que ainda seria mais negócio investir nos CDBs ou nos RDBs mesmo. Mostrou todos os cálculos feitos no papel.

Jogo 2Indeciso, o Walmir indagou sobre a hipótese de aplicar metade num tipo de negócio e a outra metade noutro tipo.

– O senhor diz, assim, uns 10 milhões para cada uma?

O Walmir fez que sim com a cabeça. E lá foi o gerente refazer os cálculos enquanto o doutor Walmir bebericava o uísque.

O gerente tornou a mostrar todos os exaustivos planos traçados no papel. O doutor Walmir olhou atentamente cada um dos resultados, estudando qual o negócio mais vantajoso.

– Doutor Walmir, desculpe-me a pergunta, mas o senhor tem idéia de quando pretende efetivar o depósito para podermos fazer esse seu patrimônio crescer e crescer sem que o senhor tenha qualquer trabalho?

– Ainda não sei direito, mas provavelmente na semana que vem. Eu acabei de fazer o jogo da MegaSena acumulada ainda há pouco. Se eu ganhar, e com certeza desta vez eu vou ganhar, volto aqui e a gente vai fazer tudo do jeitinho que o senhor me explicou.

Jogo 1Dito isso, o copo de uísque foi discretamente retirado da frente do doutor Walmir, que agora voltou a ser tratado por seu Walmir mesmo e convidado a voltar ao banco quando – e se – tivesse o dinheiro.

“E me dá licença, que eu tenho outros negócios a tratar agora. Bom dia” – disse o gerente, apontando-lhe a porta, por onde o Walmir saiu desacompanhado.

Naquele mês constou em seu extrato um débito referente a “serviços extras”. Após investigação, revelou tratar-se do uísque servido.

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Corte moderno

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Lá pelos idos anos 70, eu não poderia ser considerado exatamente um fã de visitas ao barbeiro, a quem hoje chamam cabeleireiro. Nos dias de hoje, moderninhos toda a vida, ainda existem os salões de barbearia, que só atendem a homens e os salões de beleza, que dão atendimento a mulheres. Há ainda os chamados unisex, que eu não imagino a quem atendam. Coisas dos tempos.

Naquela época, eu ia a um salão de barbeiro lá muito de vez em quando, geralmente quando minha mãe ameaçava me deserdar, ameaça que só fui descobrir muito tempo mais tarde não ser verdadeira, pois nunca houve herança nenhuma. Mas, na época, funcionava sempre.

Enfim, era até interessante quando eu ia cortar o cabelo. As más línguas diziam que eu ia, na verdade, podar os cabelos. Intriga apenas. Eu ia cortá-los mesmo. Mas era, de fato, interessante. Meus sobrinhos, pequenos àquela época, ficavam ansiosos esperando por minha volta, na esperança de ter sido encontrado algum dos carrinhos de brinquedo deles em meio a minha longa e farta cabeleira enfim cortada (ou podada, se preferirem).

Barbeiro 3Mas os tempos mudaram. Hoje eu vou frequentemente ao barbeiro e desconfio que ele só trocou de carro este ano graças a minhas repetidas visitas. Agora ando torcendo para que ele troque a tesoura, que já não corta mais nem água. O pente ainda é um daqueles Carioca, banguela de alguns dentes. Calculo que deve datar de quando ele (o barbeiro) ainda era mocinho. Agora ambos são velhinhos, o barbeiro e o pente.

Ainda na semana passada, fiz minha mais recente visita ao salão. É um salão antigo, tradicional. O barbeiro é velhinho, já sofreu derrame e treme muito, justamente com a mão direita, o que, para quem não o conhece, pode assustar um pouco, uma vez que ele é destro. Mas, por hábito, após frequentar o mesmo lugar por anos e anos, confesso que me afeiçoei ao profissional e talvez até sentisse falta dele se um outro mexesse em meus cabelos sem que a mão tremesse. Acharia muito estranho.

O salão é uma festa permanente com todo aquele pessoal que vai apenas para conversar, contar piadas, contar mentiras, fazer hora. Uma opção inclusive para aqueles que querem chegar um pouco mais tarde em casa, fugindo da sogra. E eu lá, ajudando o seu Antenor a trocar de carro. Assim é o salão O Pente de Ouro. Luxuoso, não se pode dizer que seja, mas pelo menos nome pomposo, isso com certeza ele tem.

Barbeiro 2Em minha mais recente aventura (é literalmente uma aventura) n’O Pente de Ouro, cheguei, cumprimentei todos os presentes, um a um, e levei certo tempo até descobrir quem realmente esperava para ser atendido e quem apenas se escondia da sogra.

Depois de algum tempo, consegui finalmente sentar-me na cadeira para ser atendido. Tirei meus óculos e meu aparelho de surdez. As pernas não tirei porque, por enquanto, ainda são minhas mesmo. (E procuro aproveitar bem enquanto elas ainda o são!) Estava pronto para ser atendido. Eu disse que queria que ele desse apenas uma aparadinha. Ele perguntou se eu não gostaria de um corte mais moderninho, uma coisa assim mais ou menos entre Ronaldinho e Chico César quem sabe. Eu agradeci pelo oferecimento, mas insisti que queria apenas uma aparadinha.

Já sem meus óculos, portanto, sem ter como enxergar a mim mesmo no espelho, ainda tive a cadeira virada de tal forma que fiquei de costas para o dito. Cá entre nós, comecei a sentir um certo temor naquela hora.

Ele me perguntou alguma coisa sobre como deveria cortar na parte de trás da cabeça, mas eu, já sem aparelho para surdez, não entendi direito e, antes que eu pedisse para repetir a pergunta, ele empurrou minha cabeça para a frente, forçando o pescoço para baixo, de forma que eu não consegui mais falar. Mesmo que falasse, não seria ouvido daquele jeito.

Barbeiro 1E ele continuava a cortar, fazendo pequena pausa a cada duas ou três tesouradas para olhar para o lado, segurando o pente e a tesoura no ar, enquanto fazia algum comentário em voz muito alta e animada com o pessoal que estava por lá. Ele conversava, a prestação, sobre futebol, mulher, sogra, política. E fofocava, coisa que a gente acha que só ocorre em salão de mulheres. Assim continuou até que eu percebi que ele se afastou um pouco de mim, foi até perto do colega, barbeiro da cadeira ao lado, e cochichou alguma coisa enquanto os dois olhavam para mim. Percebi um movimento negativo da cabeça de um dos dois, não soube definir qual deles – os dois eram apenas vultos para mim, sem óculos naquela hora. Aquilo me causou um mau pressentimento. Mesmo assim, continuei firme em meu lugar.

Quando ele voltou para continuar o corte moderninho, percebi que não falava mais com o pessoal do salão. Agora se concentrava no trabalho como deveria ter feito desde o início. Apenas dava algumas tesouradas, assim meio no ar, como se tentasse aparar um pouco mais aqui e ali, parecendo não saber mais onde deveria cortar.

Não demorou muito até que ele fez minha cadeira voltar à posição inicial, de frente para o espelho. Quando finalmente consegui pôr meus óculos, dei-me conta de que minha cabeça estava com uma aparência muito semelhante a, eu diria, uma pizza calabresa com orelhas…

Pizza 1Só após reposicionar meu aparelho de surdez consegui ouvir a voz dele, agora baixinha, meio sem jeito, me dizendo que, com aquele sol todo de verão, seria aconselhável eu usar um chapéu bem grande para me proteger. Considerando o corte que ele havia feito, ficou patente que a sugestão do chapéu era para me proteger, sim, não do sol mas do ridículo. Com certeza.

Era uma daquelas situações em que você percebe logo que o melhor que tem a fazer é resignar-se e ficar quieto, pois não vai adiantar nada dizer ou fazer o que seja. Definitivus est.

Despedi-me e ainda agradeci. Tive dificuldade em fazê-lo aceitar o pagamento. Ele deve ter achado injusto deixar-me pagar por aquilo. Para minha tristeza, eu estava a pé e assim voltei para casa. Agradeci a Deus por não ter encontrado nenhum conhecido pelo caminho.

Agora, caso precisem de mim, continuo em casa tentando descobrir onde foi que guardei o chapéu que usei no último baile do cafona a que compareci, muitos anos atrás, mas que agora vai ficar até bonitinho em meu cocuruto. Pelo menos até eu conseguir consumir um pouco da cobertura da pizza. Aceita uma linguicinha?

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

O vaso e o cachepô

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Flor 1Uma crônica com um título desses fica até com cara de fábula. Mas não é. Trata-se de caso que realmente aconteceu.

Contaram-me essa história como verdadeira e não tenho por que duvidar, pois a relatar-me foi o próprio dr. Venâncio Prates, homem de meia-idade (que já teve, com certeza, 1/4 de idade e um dia ainda há de ter idade inteira), sujeito boa-praça, que leva muito a sério seus cabelos grisalhos – os que ainda lhe restam e que agora observam, lá do alto, a barriga um tanto volumosa a comprometer um bocado a estética do conjunto.

Disse-me que a esposa, dona Ilda, à semelhança de tantas outras, adorava plantas. Frequentava exposições, admirava e elogiava o capricho da natureza na feitura das flores, umas mais belas que as outras, o que sempre a deixava sem saber definir qual a sua predileta, tantas as cores e as formas. Tamanha beleza e tanta variedade enchiam-lhe os olhos.

Foi num Dia dos Namorados que o dr. Prates teve a infeliz idéia de comprar um pequeno vaso com florezinhas muito delicadas, até bonitinhas mesmo. Tinha bom gosto para escolher, e não havia de existir melhor presente para a esposa.

Pois bem, deu-lhe o tal vaso. A mulher ficou radiante e passou uns 5 ou 6 dias agradecendo de tanto que gostou. Mas (e quase sempre há um “mas” para fazer a coisa desandar)… e o cachepô? Um recipiente desses melhoraria e muito o vaso, faria com que as flores ficassem ainda mais bonitas – achava dona Ilda. Um vaso sem cachepô está fadado ao insucesso, ao abandono, ao esquecimento.

Como de costume, dr. Prates atendeu logo ao desejo de sua amada. Um ou dois dias depois, apareceu em casa com um cachepô que, de fato, valorizou mais ainda o presente.

Um “mas” bastava? Claro que sim, se se tratasse de pessoa, digamos, normal. Já dona Ilda, com tanto tempo disponível para conjecturar, conseguia elaborar idéias mais profundas a partir de um simples vaso, agora reforçado pelo cachepô.

by Ewa Helzen, artista de Malta

by Ewa Helzen, artista de Malta

Achou que talvez fosse a cor da sala que não estivesse lá combinando muito bem com as flores, que, aliás, continuavam muito bonitas, embora parecessem já não ornar tão bem com o ambiente.

O dr. Prates não demorou a tomar a decisão de pintar a sala de estar. Claro que, logo em seguida, descobriu que a sala de jantar não podia ficar com a pintura velha e logo deu-lhe nova pintura também. Acatando sugestão da amada esposa, os quartos também foram pintados, o que obrigou, por conseqüência, a aplicar pintura nova ao resto da casa, sem esquecer, naturalmente, o lado de fora.

Feito tudo isso, dona Ilda, que continuava a cuidar muito bem das flores (que bem poderiam ser chamadas de Eva, pois foi por onde tudo começou), a sra. Prates – dizia eu – que tinha tempo de sobra para observar as coisas, após longa, acurada e minuciosa observação dos tons, do tamanho e do formato das flores do vasinho predileto, chegou à conclusão que, na verdade, era a casa que não combinava com a elegância e distinção das flores. Flores tão únicas, como jamais vira em sua vida. E depois, não era só isso, havia também que considerar o valor sentimental que elas representavam.

Não demorou muito e o dr. Prates, apesar das frustradas tentativas de demover a esposa da nova idéia (sem sucesso apesar de alentada argumentação), procurou nova casa, mais ampla, espaçosa (e mais cara também, claro) mas que, enfim, estaria perfeitamente apta a acolher, numa das salas, aquele vaso de flores dentro do cachepô.

Agora era hora de sossegar, mas (olha o “mas” aí de novo…) alguma coisa ainda inquietava o pobre dr. Prates (a esta altura, literalmente mais pobre mesmo, depois dos gastos consentidos). Conhecendo a esposa de longo relacionamento, ou seja, de muitos outros carnavais, pressentia ele que algo mais ainda estava por vir.

Flor 2O dr. Venâncio Prates me confiou, depois de longo e profundo suspiro, que, preocupado com o conforto da esposa, comprou na semana passada uma almofadinha nova, para ela se sentar no banco do automóvel quando for dirigir.

A almofadinha até que ficou muito legalzinha, mas… (quem diria, hein, outro “mas”!), ele me disse que esta semana estão procurando um modelo novo de carro para comprar. Zero, é claro. E a almofadinha vai ter que ficar uma graça no carro novo.

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

O padeiro

Rubem Braga (*)

Campainha 2Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento – mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um ‘lockout’, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

– Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?

“Então você não é ninguém?”

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…

Padeiro 1Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina – e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Campainha 1Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”

E assobiava pelas escadas.

Interligne 18b

(*) Rubem Braga (1913-1990) é por muitos considerado o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis.