As qualidades do capitão

José Horta Manzano

A (longínqua) infância deste blogueiro foi povoada de capitães. Cada um, a seu modo, era herói.

O Capitão Nemo, que conduzia o submarino das 20.000 Léguas Submarinas, era sério, pouco dado a sorrisos, mas rigoroso e certeiro nas decisões.

Tinha também o Capitão Haddock, que aparecia nas aventuras do garoto Tintim e do cãozinho Milu. Com sua paixão pela bebida, estava mais pra anti-herói. Quando sóbrio, era rabujento mas não fazia mal a ninguém; bêbado, tornava-se irresponsável.

Popeye, embora não fosse capitão, tinha as qualidades que se esperam de um chefe: a retidão, a lealdade e o destemor. Nestas alturas, já deve ter subido de patente: terá sido nomeado capitão de longo curso.

O Capitão América, criado para encarnar os ideais americanos na Segunda Guerra, era portador das melhores qualidades do herói sem defeito. Faz tempo que a guerra acabou, mas o personagem continua por aí, ora eliminado, ora ressuscitado. Há sempre alguma guerra nalgum ponto do globo.

Tintim, Milu e o Capitão Haddock

Havia ainda o temido Capitão Gancho. Era capitão de verdade, comandante de galeão. Tirando a feiura e o jeitão assustador, não tinha grandes qualidades. Aquele gancho que lhe servia de mão era de tirar o sono dos pequeninos.

Nunca imaginei que um dia veria um capitão na Presidência do Brasil. Generais, vi desfilar vários. Civis puros e sem mistura, também. Mas nunca tinha visto, no trono maior, um senhor que se reclama de ambos os lados – militar e civil. E que, ainda por cima, não combina com nenhum deles. Como militar, é esquisito um simples capitão deter as atribuições (constitucionais) de comandante supremo das Forças Armadas. Como civil, é esquisito ver esse qualificativo aplicado a personagem tão incivil.

Pra dizer a verdade, não precisava nem o Capitão Nemo, nem o Capitão América no Planalto – seria pedir muito. Eu me contentaria até com um desajeitado Capitão Gancho, que só assustava criancinhas. Mas, que falta de sorte, fomos cair logo com o Capitão Cloroquina. Mon Dieu!

O fator humano ‒ 3

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Preocupado com as constantes quebras e alto custo de manutenção, o síndico apresentou em assembleia um projeto de reforma dos elevadores do condomínio. Fascinado por tecnologia, ele propôs que a reforma não se limitasse à troca de cabos e reforço da estrutura das cabines, mas que se adotasse um sistema computadorizado de acionamento, definido pelo fabricante como “elevador inteligente”.

Através desse sistema, o elevador mais próximo do piso em que o usuário está é enviado, independentemente de qual dos elevadores seja acionado primeiro. Com isso, afirmava o síndico, empolgado, seria possível não só economizar na conta de energia elétrica, mas também diminuir o tempo de espera. Isso sem contar o benefício de evitar que crianças e adolescentes ‘engraçadinhos’ brincassem de acionar os botões de todos os andares, como costumava acontecer. Até mesmo os condôminos mais renitentes deixaram-se sensibilizar e a proposta foi aprovada por vasta maioria.

Não se passaram nem quinze dias desde a implementação para surgirem os primeiros conflitos. Acostumados com antigos privilégios, alguns moradores passaram a se ressentir com a presença de empregados domésticos e de funcionários do condomínio no elevador social. No entanto, como não dependia mais da vontade destes usar este ou aquele elevador ‒ e a discriminação é vetada por força de lei ‒, perceberam que não havia o que fazer a não ser engolir o próprio desconforto.

Por outro lado, a insatisfação ganhou ares de rebelião incontrolável quando moradores se viram forçados a conviver com cães dentro do elevador. Marcou-se, então, uma nova assembleia para decidir como contornar o problema. Argumentos irados pipocavam de ambos os lados: os donos de cães alegando que era legítimo usufruir dos mesmos benefícios que os demais condôminos e estes protestando contra os “riscos” a que estavam expostos. Se você pensou que o único risco apontado era o de ser mordido ou lambido, enganou-se. Senhoras da fina flor da classe média paulistana chegaram a argumentar, angustiadas, que se sentiam expostas a riscos mais prosaicos, como o de terem suas roupas de festa contaminadas com “cheiro de cachorro” ou ainda a “má impressão” que visitantes mais bem posicionados financeiramente poderiam ter ao se depararem com um cachorro no elevador social.

Depois de horas de discussão acalorada, o próprio síndico acabou apresentando a contragosto uma solução conciliatória: o dono do cão deveria entrar no elevador, apertar o botão do último andar, sair e chamar o outro, de serviço. Mesmo sabedor de que a estratégia acarretaria aumento na conta de energia – o principal benefício alegado e aprovado para a implantação do sistema – ele a apresentou como saída temporária até que, como disse, encontrasse outra forma de tornar o elevador “menos inteligente”.

Teve início, então, a “revolta dos pet lovers”. Capitaneada por esta que vos fala, admito, a rebelião mirou a parte mais sensível do corpo dos condôminos cinofóbicos: o bolso. Ameaçamos depositar o valor mensal do condomínio em juízo até que a causa fosse julgada em definitivo, uma vez que a convenção do condomínio previa que o condômino que provocasse aumento de custos gerais deveria arcar com contribuição mensal maior. Foi o que bastou. Em poucos minutos, começaram a pipocar novas sugestões de como lidar com o conflito de interesses.

A solução vencedora revelou-se um primor de sensatez, uma obviedade tão explícita que ninguém ousou refutar: negociação caso a caso. Ou seja, sempre que, ao entrar no elevador, o dono de um cão encontrasse um morador já em seu interior, deveria perguntar se ele aceitava compartilhar o espaço com um cachorro. Caso recusasse, bastaria fechar a porta e aguardar pela chegada do seguinte.

Até hoje, passados já alguns anos, nunca mais se teve notícia de incidentes ou reclamações.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Prêmio à honestidade

José Horta Manzano

Hoje de manhã, fiquei sabendo da história de um rapaz chinês que acaba de virar notícia como exemplo de virtude e honestidade. O moço vive na China, numa cidade cujo nome não me lembro. Ao manobrar seu carrinho, um erro de apreciação o levou a abalroar um carrão estacionado. Não chegou a destruir o veículo alheio, mas deixou uma marca.

Considerando-se culpado pelo estrago, o jovem escreveu um bilhete pedindo desculpas. Tomou um envelope, pôs dentro o escrito e todo o dinheiro que tinha no bolso, pouco mais de cem reais. Acrescentou nome e endereço e prendeu o envelope entre o limpador e o para-brisa do automóvel acidentado.

Mais tarde, ao ler o escrito, o dono do carrão, pessoa abastada, comoveu-se com a honestidade do jovem. Fez um gesto. Não somente devolveu a centena de reais, como ainda recompensou o rapaz com bela quantia equivalente a uns quatro mil reais.

Sem querer ser desmancha-prazeres, considero que o rapaz agiu exatamente como tinha de agir. Faz tempo que aprendi que aquele que causa dano a terceiros tem a obrigação de reparar o estrago. É um dos princípios básicos de funcionamento de sociedade civilizada. A repercussão do caso chinês mostra que, naquele país, respeito à regra é exceção. O Brasil, infelizmente, tampouco é exemplo de civilidade.

carro-17Isso lembrou-me uma história ‒ verdadeira ‒ que se passou aqui na Suíça muitos anos atrás e que me foi contada pelo protagonista. Ao sair com o carro que havia deixado rente ao meio-fio, um amigo meu atingiu de raspão o carro que estava estacionado à sua frente. Parou, desceu e examinou. Nessas horas, o causador do estrago costuma deixar um cartão de visita, com nome e número de telefone, preso ao para-brisa do veículo atingido. Mais tarde, o proprietário liga de volta e combinam um jeito de resolver o problema.

Acontece que meu amigo estava sem cartão de visita. Deu a partida e foi para casa. Lá chegando, ligou imediatamente para a polícia para identificar-se e informar o que tinha acontecido. Ouviu do policial: «Ainda bem que o senhor ligou, porque já tínhamos recebido três denúncias de testemunhas que viram o que aconteceu e anotaram a sua placa.»

Se faltasse uma prova de que o medo da sanção é motor do bom comportamento, aí está ela. Cidadãos mostram-se honestos e comportados não tanto porque sejam bonzinhos, mas antes porque temem as consequências de toda incivilidade. A quase certeza da punição mantém as pessoas no bom caminho.

A certeza da impunidade está na raiz de grande parte dos males do Brasil. Está aí a Lava a Jato que não me deixa mentir. Imagino que, se Sergio Cabral, Eike Batista, José Dirceu & companhia tivessem imaginado que acabariam atrás das grades, teriam roubado menos.

Coisa do Cartola

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que educação e boas maneiras se levavam de casa. De um malcriado, dizia-se que não tinha tido berço. A afirmação continha um bocado de exagero e um tantinho de maldade. O fato é que, com berço ou sem ele, era natural que as pessoas fossem aprendendo, ao longo da vida, regras básicas de convívio em sociedade.

Gente de origem humilde se esforçava para melhorar a aparência, o palavreado, os gestos, o comportamento. Ganhar dinheiro, fato naturalmente bem-vindo, não era o objetivo único da ascensão social. Eliminar toda grosseria também estava na mira.

cumprimento-1Para profissionais de maior prestígio, era importante, acima de tudo, mostrar-se à altura do cargo ocupado. Diretores, chefes, administradores, homens públicos, políticos procuravam ‒ às vezes desajeitadamente, é verdade ‒ mostrar-se à altura do cargo ocupado. Era importante que o comportamento não contrastasse com o título.

Os tempos mudaram. Fica a desagradável impressão de que a humanidade, pelo menos nesse aspecto, em vez de andar pra frente, deu um passo atrás. Coisas que se traziam «de berço» ou que se aprendiam com o tempo têm de ser ensinadas hoje à força. O fenômeno é internacional. Se duvidar, observe feitos e gestos de gente como o recém-eleito presidente dos EUA, homem cujo comportamento primitivo embasbaca.

Um certo senhor Cartola, recém-empossado presidente da Câmara de Vereadores de São Bernardo do Campo, nos entornos de São Paulo, sentiu que era chegada a hora de pôr ordem no desleixo. Acaba de apresentar um guia de boas maneiras destinado a vereadores e a funcionários da Casa. Não me cabe discutir mérito nem propriedade de cada tópico. Deixo essa tarefa para os eleitos municipais.

cumprimento-2Por minha parte, quero registrar surpresa com o fato em si. Que se ensinem rudimentos de boa conduta a pessoas simples, sem estudo e sem traquejo, me parece normal, natural e necessário. Afinal, ninguém nasceu sabendo. Na outra ponta, quando vejo que atualmente o beabá da civilidade tem de ser ensinado a eleitos de um município de quase um milhão de habitantes, fico pasmo.

Desde criança, aprendi que todo aperto de mão deve ser dado com firmeza e não com mão mole. Percebo que eleitos do povo não sabem disso ‒ razão pela qual o ensinamento faz parte do manual de senhor Cartola.

Bom, antes tarde que nunca. Vamos torcer para que, depois de ler o guia, nenhum vereador compareça à Câmara de bermuda e chinelo de dedo.

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Para quem tiver curiosidade de conhecer alguns conselhos do manual, aqui está um florilégio:

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Conselhos às mulheres
● Prefira batom e esmaltes claros, saias na altura do joelho. Cuidado com babados e rendas; nunca deixe roupas íntimas visíveis.

● Decotes e transparências devem ser abolidos.

● Não exagere no perfume.

● Prefira colônias frescas ou lavanda.

● Não use saltos altíssimos, roupa manchada, amassada ou com bainha malfeita, maquiagem excessiva, cabelos despenteados, unhas longas, meias desfiadas, bijuteria em excesso, roupas justas demais.

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Conselhos aos homens
● Não use meias claras nem brancas com trajes escuros. A meia é uma extensão da calça e prolongamento do sapato.

● Nada de bermudas, calça caindo e camisa para fora da calça(sic).

● Não use perfumes fortes.

● Em clima quente, é ideal o uso de camisas sociais de mangas curtas ou compridas que combinem com a calça.

● Evite sandálias franciscanas.

● Evite gravata de bichinho, de crochê ou frouxa no colarinho.

● Barba deve ser feita todos os dias ou aparada regularmente.

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Telefone 3Para cumprimentar
● Jamais cumprimente com a mão mole ou tocando somente nas pontas dos dedos. O aperto de mão deve ser firme com três sacudidas. A intenção não é estraçalhar a mão do outro. Sorria e olhe nos olhos da pessoa.

● Tapinha nas costas e beijinhos devem ser evitados, a menos que haja grande intimidade.

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Ao telefone
● Procure atender no máximo até o terceiro toque. Quando o interlocutor estende demais a conversa, uma saída educada é interromper e dizer que alguém está chamando e que é necessário desligar.

● Não tussa, não espirre nem assoe o nariz quando estiver ao telefone.

Crime e castigo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Uma notícia chamou ontem minha atenção, quando eu, já cansada com a rotina de traduções, me preparava para desligar o computador e relaxar.

Contava a história de uma mulher que havia ido buscar o filho de 5 anos na escola. O garoto foi ao encontro da mãe, alegre e saltitante como de hábito, e, mesmo diante da pergunta sobre como havia sido seu dia, negou que alguma coisa de especial houvesse ocorrido. A supervisora de ensino, que estava ao lado, decidiu então refazer a pergunta da mãe: “Tem certeza de que não tem nada mais a contar para sua mãe?”

O garoto abaixou a cabeça, constrangido, e acabou contando à mãe que naquela tarde havia desrespeitado a fila para entrar na sala de aula e, irritado com a demora, ao invés de pedir licença, havia empurrado uma coleguinha. Aturdida com aquele relato inesperado e sem saber ao certo como proceder, a mãe optou por não reagir de imediato. Manteve silêncio durante todo o trajeto de volta para casa, limitando-se a comentar que havia ficado muito triste com o comportamento do filho.

Briga 6Ao chegarem em casa, a mãe sentiu que estava na hora de ter uma conversa franca com o filho. Colocou-o de pé em frente a ela e, olhando-o bem fundo nos olhos, apontou a inadequação de seu comportamento e discorreu brevemente sobre as consequências da agressividade infantil. Em tempos de discussão da cultura do estupro, adicionou a advertência de que “não se deve bater em mulher”. Não bateu nele, não gritou, não o desqualificou. Com voz calma, disse apenas que, como castigo, ele deveria ficar isolado em seu quarto por algumas horas.

O menino assentiu. Foi para o quarto e ficou até a hora de dormir. Quando a mãe o procurou mais tarde para o jantar, ele pediu desculpas, abraçou a mãe e prometeu nunca mais repetir aquele gesto. Enternecida, mas ainda não inteiramente convencida de que o aprendizado havia se completado, a mulher resistiu o quanto pôde à tentação de mimá-lo. Aceitou o pedido de desculpas e, com cara séria, foi dormir.

Flor 8No dia seguinte, a caminho da escola, a mãe teve uma súbita inspiração para pôr um ponto final feliz naquele episódio. Parou em um mercado, levou o filho até a seção de floricultura e pediu que ele escolhesse uma flor para a coleguinha agredida. Orientou-o a entregar o presente, acompanhado por um pedido público de desculpas. O garoto assim fez. A menina, surpresa com a delicadeza do gesto, aceitou o presente, mas só concordou em abraçar o garoto e perdoá-lo quando autorizada pela própria mãe.

Mal consegui terminar a leitura da notícia. Uma onda forte de emoção tomou conta de mim, enchendo meus olhos de lágrimas. Por que uma história tão corriqueira como essa mexeu tanto comigo? Talvez por um motivo bastante singular: aconteceu no mesmo dia em que a presidente afastada enviou sua defesa por escrito à comissão do impeachment, alegando que “Herrar é Umano” ‒ ops, perdão ‒ errar é humano.

O vídeo educacional mais instigante a que já assisti abordava exatamente essa máxima. De forma criativa, um repórter interpelava uma mãe na antessala de um consultório médico: “A senhora concorda com a frase que diz que errar é humano?” A mulher respondia de chofre que sim. Na sequência, o repórter indagava: “Quer dizer que, se o pediatra de seu filho errar o diagnóstico ou a medicação, estaria tudo bem?“ A mulher, num pulo e com ar indignado, reagia com um sonoro não.

«A imaginação é uma faculdade fundamental de nosso psiquismo. O imaginário é tão velho quanto a humanidade. Nasceu e morrerá com ela.» by Michel Barthélémy (1943-), artista belga

«A imaginação é uma faculdade fundamental de nosso psiquismo. O imaginário é tão velho quanto a humanidade. Nasceu e morrerá com ela.»
by Michel Barthélémy (1943-), artista belga

Em outra cena, o mesmo repórter entrevistava um praticante de voo de asa delta e repetia a pergunta. Mais uma vez, o jovem, concentrado na tarefa de verificar a correta colocação do cordame, dizia concordar com a máxima, mesmo sem muita reflexão. O repórter prosseguia: “Quer dizer que, se você ou outra pessoa se distraírem durante a checagem de segurança do voo, você vai entender?” Horrorizado com a possibilidade de um acidente, o rapaz balançava negativamente a cabeça atônito e se voltava com mais afinco à tarefa que estava executando.

Não é preciso agregar nenhuma conclusão moralista ou moralizante a essas duas histórias. Cada um deve saber onde lhe apertam os calos. Quanto a mim, não tenho cabeça para refletir sobre nenhuma moral edificante para histórias tão contrastantes. Ainda estou flutuando sobre uma nuvem cor-de-rosa, meus ouvidos ainda embevecidos com o som diáfano de um coral de anjos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.