Myrthes Suplicy Vieira (*)
Uma notícia chamou ontem minha atenção, quando eu, já cansada com a rotina de traduções, me preparava para desligar o computador e relaxar.
Contava a história de uma mulher que havia ido buscar o filho de 5 anos na escola. O garoto foi ao encontro da mãe, alegre e saltitante como de hábito, e, mesmo diante da pergunta sobre como havia sido seu dia, negou que alguma coisa de especial houvesse ocorrido. A supervisora de ensino, que estava ao lado, decidiu então refazer a pergunta da mãe: “Tem certeza de que não tem nada mais a contar para sua mãe?”
O garoto abaixou a cabeça, constrangido, e acabou contando à mãe que naquela tarde havia desrespeitado a fila para entrar na sala de aula e, irritado com a demora, ao invés de pedir licença, havia empurrado uma coleguinha. Aturdida com aquele relato inesperado e sem saber ao certo como proceder, a mãe optou por não reagir de imediato. Manteve silêncio durante todo o trajeto de volta para casa, limitando-se a comentar que havia ficado muito triste com o comportamento do filho.
Ao chegarem em casa, a mãe sentiu que estava na hora de ter uma conversa franca com o filho. Colocou-o de pé em frente a ela e, olhando-o bem fundo nos olhos, apontou a inadequação de seu comportamento e discorreu brevemente sobre as consequências da agressividade infantil. Em tempos de discussão da cultura do estupro, adicionou a advertência de que “não se deve bater em mulher”. Não bateu nele, não gritou, não o desqualificou. Com voz calma, disse apenas que, como castigo, ele deveria ficar isolado em seu quarto por algumas horas.
O menino assentiu. Foi para o quarto e ficou até a hora de dormir. Quando a mãe o procurou mais tarde para o jantar, ele pediu desculpas, abraçou a mãe e prometeu nunca mais repetir aquele gesto. Enternecida, mas ainda não inteiramente convencida de que o aprendizado havia se completado, a mulher resistiu o quanto pôde à tentação de mimá-lo. Aceitou o pedido de desculpas e, com cara séria, foi dormir.
No dia seguinte, a caminho da escola, a mãe teve uma súbita inspiração para pôr um ponto final feliz naquele episódio. Parou em um mercado, levou o filho até a seção de floricultura e pediu que ele escolhesse uma flor para a coleguinha agredida. Orientou-o a entregar o presente, acompanhado por um pedido público de desculpas. O garoto assim fez. A menina, surpresa com a delicadeza do gesto, aceitou o presente, mas só concordou em abraçar o garoto e perdoá-lo quando autorizada pela própria mãe.
Mal consegui terminar a leitura da notícia. Uma onda forte de emoção tomou conta de mim, enchendo meus olhos de lágrimas. Por que uma história tão corriqueira como essa mexeu tanto comigo? Talvez por um motivo bastante singular: aconteceu no mesmo dia em que a presidente afastada enviou sua defesa por escrito à comissão do impeachment, alegando que “Herrar é Umano” ‒ ops, perdão ‒ errar é humano.
O vídeo educacional mais instigante a que já assisti abordava exatamente essa máxima. De forma criativa, um repórter interpelava uma mãe na antessala de um consultório médico: “A senhora concorda com a frase que diz que errar é humano?” A mulher respondia de chofre que sim. Na sequência, o repórter indagava: “Quer dizer que, se o pediatra de seu filho errar o diagnóstico ou a medicação, estaria tudo bem?“ A mulher, num pulo e com ar indignado, reagia com um sonoro não.

«A imaginação é uma faculdade fundamental de nosso psiquismo. O imaginário é tão velho quanto a humanidade. Nasceu e morrerá com ela.»
by Michel Barthélémy (1943-), artista belga
Em outra cena, o mesmo repórter entrevistava um praticante de voo de asa delta e repetia a pergunta. Mais uma vez, o jovem, concentrado na tarefa de verificar a correta colocação do cordame, dizia concordar com a máxima, mesmo sem muita reflexão. O repórter prosseguia: “Quer dizer que, se você ou outra pessoa se distraírem durante a checagem de segurança do voo, você vai entender?” Horrorizado com a possibilidade de um acidente, o rapaz balançava negativamente a cabeça atônito e se voltava com mais afinco à tarefa que estava executando.
Não é preciso agregar nenhuma conclusão moralista ou moralizante a essas duas histórias. Cada um deve saber onde lhe apertam os calos. Quanto a mim, não tenho cabeça para refletir sobre nenhuma moral edificante para histórias tão contrastantes. Ainda estou flutuando sobre uma nuvem cor-de-rosa, meus ouvidos ainda embevecidos com o som diáfano de um coral de anjos.
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.
A do menininho levando flores para o pedido de desculpas é perfeito enquanto a justificativa de que errar é humano trata apenas de disfarçar um erro cometido.
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