Inelegibilidade

by Kleber Sales

José Horta Manzano

Talvez o distinto leitor e a encantadora leitora se recordem de um caso escabroso, ocorrido uns dez anos atrás, envolvendo um médico que acabou condenado a quase 300 anos de prisão por abusar sexualmente de pacientes. Paralelamente, o Conselho de Medicina decidiu anular seu direito de exercer. Seu registro de médico foi definitivamente cassado.

Um caso mais recente envolveu outro médico, um anestesista, filmado enquanto estuprava uma paciente anestesiada – uma história abjecta. Também esse perdeu definitivamente o direito de continuar a exercer. Pode até sair da cadeia um dia (certamente sairá), mas terá de procurar outra profissão.

É longa a lista de profissionais, não só da área médica, que perderam o direito de exercer em consequência de terem desonrado a profissão.

Jair Bolsonaro está sendo julgado por flagrante desvio de conduta cometido enquanto exercia a Presidência do país. O caso mais notório foi aquele “brienfing” para o qual convocou dezenas de embaixadores lotados em Brasília para “revelar-lhes” que o sistema eleitoral brasileiro era um jogo de dados viciados, verdadeira roleta fraudada.

O veredicto ainda não saiu no momento em que escrevo, mas observadores acreditam que o ex-presidente será julgado culpado, e que a pena será a perda de seus direitos políticos. Trocado em miúdos, talvez continue a ter o direito de votar, mas não poderá ser votado. O curioso é que a pena é limitada no tempo: vale somente por 8 anos.

Esse homem deu provas, durante quatro longos anos, de não estar apto para exercer a Presidência do país. Se está recebendo essa pena, não é por castigo – é o país que se protege contra um indivíduo que atentou durante seu inteiro mandato contra as instituições. O capitão não é culpado por ter escorregado uma vez, quiçá sob efeito de uma qualquer medicação. Seu problema é incrustado, permanente e incurável.

Sabe-se que, ainda nos longínquos tempos de capitão da ativa, já planejava explodir instalações do Exército. Durante seus anos na Presidência, fez o que pôde para explodir o Estado brasileiro. Seu caso não tem solução. Afastá-lo por 8 anos dá alívio temporário mas não resolve. Ele periga voltar para chacoalhar o coreto em 2030.

Imagine você se, no caso dos médicos indignos, fosse dado um “castigo” de 8 anos. Seria apenas uma suspensão temporária. Findo o prazo, eles voltariam à carga com todo o risco que isso comporta. A cassação do direito de exercer não deve ser vista como punição, mas como medida de proteção da sociedade.

No caso de um ex-presidente, permitir que ele um dia possa voltar ao lugar do crime para cometer as mesmas barbaridades pelas quais foi condenado é temeridade. Seus direitos políticos teriam de ser cassados definitivamente. Para sempre. Em seu caso, não há esperança de remissão.

Mercenário

José Horta Manzano

Domingo passado, a Rússia levou um tremendo susto por causa de um golpe de Estado que não foi. É verdade que gorou, mas deve ter dado um nó nos miolos da cleptocracia instalada há décadas no Kremlin. De quebra, trouxe inquietação ao planeta inteiro.

Se a Rússia não fosse dona de imenso arsenal atômico, suas brigas intestinas não mereceriam mais que três linhas de rodapé. No entanto, vista a coleção de mísseis e bombas que entopem seus depósitos de armas, é melhor andar na pontinha dos pés e procurar não irritar o autocrata que controla o país. Mormente porque, como todo líder autoritário, Pútin é paranóico e imprevisível.

O episódio do golpe fracassado trouxe às manchetes uma daquelas palavras que não se usam todos os dias: mercenário. Vindo de um remoto indo-europeu, o étimo desembocou no termo latino merx, e de lá formou numerosa família que se espalhou por línguas de todo o globo.

Mercenário designa o combatente que se engaja por dinheiro. É o profissional que não escolhe causa; defende qualquer uma, desde que lhe paguem o soldo. O Grupo Wagner é uma organização paramilitar (um exército bis) que recruta mercenários para defender os interesses da Rússia. Seu campo de ação preferencial é o continente africano, destino de múltiplos investimentos russos em negócios nem sempre confessáveis.

Ao longo dos anos, o grupo tem sido acusado de violências, roubos, estupros, sequestros, crimes de guerra e até crimes contra a humanidade. Muitos de seus integrantes foram recrutados em prisões russas. Evguêni Prigôjin, o fundador, frequentou durante décadas o círculo mais próximo a Vladímir Pútin. O ditador, aliás, foi quem incentivou a formação do Grupo Wagner. O golpe fracassado de domingo é interessante exemplo de monstro que se volta contra seu criador.

Mercenário, como se vê, não é flor que se cheire. Um outro exemplo de mercenário é o matador de aluguel, aquele que executa mediante contrato. Mas respire: a numerosa família (etimológica) à qual pertence o mercenário também conta com parentes de respeito. Veja abaixo outros membros ilustres.

Mercado
mercadoria, mercador, mercadista, mercadeiro, mercadologia, mercadejar, mercadante, mercadinho

Merce
mercenário, merceeiro, mercearia, merceólogo, mercerização, merceologista

Comércio
Comercial, comerciante, comerciário, comercialista, comercialismo, comercializar, comerciar, comercinho

Mercar
mercancia, mercantil, mercante, mercantilístico, mercantismo, mercantista, mercantilice

E muitos outros.

Na república mercantil em que vivemos, onde leis são votadas contra favores em espécie, um vigoroso mercenarismo está presente por toda parte. Principalmente na cobertura (top floor).

Infância e celular

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 24 junho 2023

Uma cidadezinha irlandesa chamada Greystones, situada não longe de Dublin, foi recentemente palco de uma decisão conjunta entre prefeito, vereadores e pais de alunos. De comum acordo, resolveram proibir o uso de celular para crianças antes da escola secundária. Isso significa que, antes dos 12 – 13 anos, nenhum aluno escolarizado no município terá acesso ao aparelho. Não há penalidade prevista, visto que o cumprimento da resolução será de responsabilidade dos próprios pais.

Entre os objetivos principais, está a proteção dos pequeninos que sofrem atos de humilhação (bullying) provocados por alunos maiores ou mais fortes. Esse acosso, como se sabe, é amplificado pelo uso das redes sociais e pode chegar a perturbar gravemente a saúde mental das pequenas vítimas. Com a proibição de celular, esse problema diminui drasticamente. De quebra, fica também banido o acesso dos mais jovens a redes do tipo TikTok, que os enfeitiçam e os tranformam em robôs. As autoridades irlandesas estão propensas a adotar a medida de Greystones como política nacional.

Neste mês em que Paradas LGBT são organizadas mundo afora, o instituto Ipsos anunciou os resultados de uma pesquisa sobre o tema. É bom lembrar que Ipsos é o terceiro maior instituto de pesquisa de mercado do mundo, com 18 mil funcionários e presença em 90 países.

Para essa análise, mais de 22 mil entrevistas foram feitas em 30 países incluindo o Brasil. O objetivo era apurar a visibilidade dos integrantes da comunidade LGBT em cada país individualmente, assim como seus índices de aceitação (ou rejeição) nas diferentes sociedades. O relatório final traz muitas informações interessantes, algumas já esperadas, outras surpreendentes.

Uma constatação é curiosa: o Brasil é o campeão da sinceridade. À pergunta “Em qual das seguintes categorias você se encaixa”, seguida de diversas opções não hétero (homossexual, bissexual, pansexual, omnissexual, assexual), 15% dos brasileiros entrevistados declararam se encaixar em categoria não hétero e não cis. Nenhum outro país tem tanta gente que se autodeclara nessa categoria. Na França, são 10% da população e na Argentina, 8%. Na Polônia são 6% e no Peru apenas 4% dos habitantes.

Essa disparidade entre países deixa uma interrogação no ar. Pessoalmente, não acredito que possa haver tanta diferença, com um Brasil que conta com três vezes mais LGBTs que um Peru, um Japão ou uma Polônia. Não vejo por que razão seriam tantos aqui (ou tão poucos lá). Acredito que boa parte da discrepância deva ser posta na maior ou menor dificuldade que os nativos de cada povo sentem na hora de revelar a própria sexualidade. É possível que no Brasil, apesar dos pesares, nos sintamos menos reprimidos, logo, mais despachados.

Uma constatação é, no mínimo, inquietante. O estudo ventila o total de indivíduos autodeclarados LGBTs e os classifica por faixa etária. O quadro mostra que 4% dos Baby Boomers (nascidos entre 1948 e 1964) estão na categoria LGBT. Na Geração X (1965-1980), há 6% de LGBT. Nos Millennials (1981-1996), são 10%. Finalmente, entre os jovens da Geração Z (1997+), espantosos 18% se declaram LGBT.

Não sei para você, mas para mim parece discrepância exagerada. O estudo informa que há, entre os menores de 25 anos, quase 5 vezes mais LGBTs que entre os mais velhos. A divergência é tão grande que faz supor efeito tribal fomentado por veículos tais como TikTok & semelhantes. A pré-adolescência é idade complicada, em que a personalidade está se construindo. Os muito jovens não estão necessariamente preparados para resistir ao canto da sereia.

Talvez fosse boa ideia acompanhar com atenção a aplicação da política irlandesa e cogitar sua eventual implementação em nosso território. É verdade qie o brasileiro é por natureza indisciplinado e propenso a burlar regulamentos. Assim mesmo, não custa tentar. A proibição geral, no fundo, ajuda os pais, que deixam de ser aqueles “chatos” que negam celular ao filho. A desculpa é incontornável: “Não posso te dar. É a lei!”.

Que tal adotar a ideia irlandesa para preservar a evolução mental de nossa criançada?

O discurso

Cúpula de Paris – 23 junho 2023
Foto de família

José Horta Manzano


“Depois de tudo o que ouvi ontem, mudei o discurso que tinha preparado. Não vou ler.”


Foram as palavras iniciais do pronunciamento que Lula fez hoje na cerimônia de encerramento do Novo Pacto de Financiamento Global, cúpula realizada em Paris e ciceroneada pelo presidente Emmanuel Macron. Ninguém jamais saberá o que havia no discurso que nosso presidente descartou.

Assim que Lula informou que falaria de improviso, seu entourage deve ter começado a empalidecer e suar frio. Até este escriba se mexeu na cadeira: “Ai, o que é que vem por aí?”. Todo o mundo sabe que Luiz Inácio, quando cata um microfone, é capaz do melhor, mas também do pior.

Não houve nenhuma catástrofe. A invasão da Ucrânia não estando na pauta, o risco de novo escorregão feio amainou. Mas nosso presidente nunca perde ocasião de se distinguir, seja pelas declarações sensatas, seja pelas inquietantes.

Lula falou por mais tempo que qualquer outro participante à cerimônia. Discursou por quase 40 minutos. Esquecido de que não cabe a cada governante criticar seu antecessor, disse que o Brasil tinha tido um “governo fascista” estes últimos quatro anos. Faz coro à declaração que Bolsonaro deu um dia na ONU, quando informou ao mundo que ele “tinha salvado o Brasil do socialismo”. Como se vê, os dois dirigentes jamais perdem a elegância.

Cúpulas desse tipo são organizadas para discutir o que virá, não o que já foi. Incorrigível, Lula continua a culpar terceiros pelas dificuldades que ele tem de enfrentar. Em 2003, chamou a herança recebida de FHC de “maldita”. E agora reincide, ao avaliar seu predecessor como “fascista”. Pode até ser verdade, mas roupa suja se lava em casa, não no exterior, diante de um palco iluminado e pouco interessado nessas rusgas.

Com a Ucrânia fora da pauta, ressurgiu o Lula “pai dos pobres”, o defensor perpétuo dos pequeninos. Ele discorreu sobre as insuportáveis desigualdades (financeiras, religiosas, raciais, de gênero) que mancham a imagem do planeta.

Falou de Amazônia. Prometeu reunir-se com os demais países amazônicos para, juntos, porem de pé uma agenda comum para o desenvolvimento sustentável das florestas tropicais. Descreveu as diversas ameaças que pesam sobre a região, como garimpo e desmatamento ilegal. Prometeu esforçar-se para pôr ponto final, antes do fim de seu mandato, ao desmate fora da lei.

Falou da fome no Brasil e no mundo. Disse que os governos de seu partido (dele e de Dilma) tinham tirado o Brasil do mapa da fome. E queixou-se de ter encontrado, ao assumir o Planalto pela terceira vez, um país de novo mergulhado no desonroso elenco dos esfomeados. Naturalmente, acusou o governo “fascista” que lhe precedeu.

Luiz Inácio lembrou que está com 77 anos, mas vigor de um jovem de 30. Convidou todos os presentes a comparecerem à COP30, a realizar-se em 2025 em Belém do Pará. Prometeu mostrar a todos o resultado de sua política de desmatamento zero.

Houve um ponto em que a fala de Lula pareceu surreal. Foi quando ele insistiu no advento de uma “governança mundial”. Em sua visão, isso se traduz pela criação de um organismo supranacional que toma decisões aplicáveis a todos os países sem necessidade de ratificação pelo Parlamento de cada país.

Essa afirmação é muito surpreendente. Entra em choque com outro cavalo de batalha de Luiz Inácio – aliás repetido no mesmíssimo discurso de hoje. Como tem feito em outras ocasiões, nosso presidente aproveitou essa cúpula para mostrar-se irritado de ter de utilizar o dólar americano como moeda internacional de trocas comerciais.

Como se vê, o desprendimento de quem está disposto a abrir mão de uma parte da soberania nacional para entregá-la a uma hipotética “governança mundial” entra em conflito com o ressentimento encruado de quem se sente humilhado por ter de utiliizar a moeda americana na hora de comerciar com o mundo.

Lula disse que se sentiria à vontade de comerciar em yuan com a China, em peso com a Argentina, em libra com a Inglaterra, desde que não tivesse de “comprar dólar” para fechar as mesmas operações. É puro antiamericanismo.

Antes de concluir, Lula foi esperto e disse considerar a União Europeia um “patrimonio democrático da humanidade”. Afirmou que gostaria de ver uma réplica na América do Sul.

Da primeira à última palavra, Luiz Inácio foi Luiz Inácio. Não chegou a chorar ao falar em pobreza, mas fez aquele tipo de discurso impecável, que, se não agrada, não chega a desagradar ninguém. As inconsistências passam despercebidas.

O pronunciamento foi daquele tipo que, décadas atrás, a gente chamava de “diálogo flácido para acalentar bovinos” – conversa mole pra boi dormir.

IPVA

José Horta Manzano

Os adjetivos automotor, automotivo e automóvel são sinônimos. Veículo automotor (ou veículo automotivo ou ainda veículo automóvel) é aquele cujo movimento é gerado por motor próprio. Sendo assim, com a exclusão de patinete tradicional, bicicleta sem motor, barco a vela, triciclo infantil e mais alguns outros, os veículos que povoam nossas estradas, nossas águas e nosso ar são todos automotores.

IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) é, como seu nome indica, o imposto que deve pagar todo proprietário de um veículo automotor.

Li outro dia que o projeto de reforma tributária que está atualmente em discussão propõe que jatinho (private jet) e barco a motor entrem para a lista de veículos sujeitos ao pagamento de IPVA.

Perdi o fôlego. Como é que é? Quer dizer então que, até esta data, proprietários de private jet e de jet ski sempre estiveram livres de pagar o boleto do IPVA?

Tudo indica que sim. Vê-se que essas normas foram estabelecidas pelos do andar de cima, os que fazem as leis do país. Todos, por coincidência, grandes entusiastas de jatinho privado e de lancha veloz.

E assim vai o Brasil, uma república em busca de leis republicanas.

Burrice?

José Horta Manzano

Advertência
Este artigo foi escrito antes do pedido de desculpas feito no domingo pelo capitão.


 

Quando a burrice é demais, a gente desconfia que alguma coisa está errada.

Bolsonaro passou seus quatro anos de mandato escancarando sua ignorância e sua lentidão mental. Em certos momentos, sua lerdeza de raciocínio pareceu tão exagerada que muita gente acreditou que ele estivesse forçando a caricatura. Não estava. As revelações sobre sua trama de dar golpe de Estado para permanecer no poder provam o contrário: não havia intenção de parecer mais burro do que era; o que ele desejava ardentemente era tomar as rédeas do país à força.

Só que, como diria o outro, aquilo foi o “antes”, e agora estamos no “depois”.

Com parte da curriola atrás das grades e generais varridos do primeiro plano, a realidade aparece em sua crueza: golpe, não haverá. O ex-presidente poderá se considerar premiado se conseguir escapar à Papuda. Não há mais motivo para se fingir de bobo.

Ora, bem. A cinco dias de um julgamento crucial para ele, o capitão continua surpreendendo adeptos e detractores. Numa cerimônia partidária realizada em Jundiaí (SP), Bolsonaro declarou:

“Agora vocês vão cair pra trás. A vacina de RNA tem dióxido de grafeno, tá. Onde ele se acumula segundo a Pfizer que eu fui lá ver aquele trem lá, no testículo e no ovário. Eu li a bula.”

Esclarecimento
A vacina de RNA da Pfizer é uma das que estão sendo utilizadas no Brasil. Sua bula não menciona nenhum composto de grafeno.

Logo, a declaração é mentira cabeluda, daquelas de fazer o nariz crescer daqui até a esquina. Qual é a intenção do capitão? O julgamento da semana que vem tem por objeto aquele malfadado dia em que Bolsonaro convocou embaixadores do mundo todo para contar-lhes uma baciada de mentiras sobre o funcionamento das urnas brasileiras. Se o tribunal concordar com a tese de que o então presidente espalhou feiquiníus que causaram dano à imagem do país, a pena será a cassação de seus direitos políticos (não poderá votar nem ser eleito por 8 anos).

Sua burrice, por mais arraigada que seja, não o impede de perceber que está na corda bamba. Se ainda tem esperança de escapar à condenação, o mínimo a fazer seria não provocar os magistrados que vão julgá-lo.

Em vez disso, Bolsonaro deu mais um giro na morsa que lhe estrangula o futuro político. Por quê?

Tenho cá minha ideia. Talvez o capitão esteja se projetando nas eleições presidenciais de 2026. Talvez entenda que, com as correntes que arrasta, será quase impossível ser de novo eleito. Pra não passar vergonha, prefere que lhe cassem o direito de ser candidato desde já, assim permanecerá como eminência parda de seu partido, sem ter a obrigação de passar pelas urnas para demonstrar força.

Se for isso, até que não é má ideia. Vai continuar recebendo polpudo salário do partido (mais as aposentadorias que acumula), vai continuar residindo em palacete protegido e vigiado, vai continuar usufruindo as regalias de ser ex-presidente. E não precisará provar que é bom de voto. Não é um futuro de paxá?


Nova conclusão
No dia seguinte à declaração, Bolsonaro veio às redes pedir desculpas pelo que disse. Alegou que, sendo ele entusiasta do grafeno, acordou com um nó na cabeça. Acabou misturando algo de que gosta (o grafeno) com algo que odeia (a vacina). E deu no que deu.

Com a ressalva de o ex-presidente ter feito seu pronunciamento sob “efeito de medicamentos”, como já alegou no passado, a nova conclusão é inescapável: o homem é burro mesmo. De uma burrice profunda, congênita, paralisante e afligente.

Eu não imaginava que seu déficit de raciocínio chegasse a esse ponto, mas sinto que não tem jeito. O homem é de uma burrice irremediável.

O boleto

Parlamento suíço

José Horta Manzano

A firmeza de opinião não está entre as qualidades maiores do brasileiro. Em detalhes do dia a dia e em acontecimentos importantes, gente simples e gente complicada tem reações semelhantes.

Vivendo há décadas longe de Pindorama, aprendi que sim é sim, e não é não. Só que isso pode valer em determinadas regiões do mundo. No Brasil, a afirmação e a negação não são necessariamente antagônicas.

Nunca lhe aconteceu de oferecer um favor ou uma simples gentileza a alguém e receber em troca um “Ah, não precisa!”? Na verdade, é um “não” que quer dizer “sim”, o que me deixa desconcertado. Para mim, parece simples: quando a gente quer, responde que sim; quando não quer, diz que não. Ficar no meio do caminho me soa estranho.

O fenômeno permeia toda a sociedade e atinge os altos círculos das “pessoas politicamente expostas”, que é a nova denominação da classe política. Habituados a flutuar entre opiniões, políticos trocam de partido como trocam de camisa. Abrem a boca pra soltar bobagem, na certeza de que, dia seguinte, poderão consertar, deixar o dito por não dito. E segue o barco.

Acredito que Lula, ao proferir disparates sobre a Ucrânia invadida pela Rússia, estava exercendo seu direito ao arrependimento posterior: toda asnice proferida pode ser consertada mais adiante, caso seja mal recebida. Tanto é assim que suas falas se “suavizaram”, sem todavia se encaixarem nos trilhos que o mundo civilizado esperava dele.

Com essas poucas falas calamitosas, Luiz Inácio destruiu a própria imagem, aquela que lhe tinha custado anos para construir e que era admirada e respeitada no planeta. A confiança que o mundo desenvolvido depositava no velhinho “pai dos pobres” foi-se embora pelo escoadouro.

A expressão que Lula usou – Clube da Paz – pode até tornar-se realidade daqui a algum tempo, dependendo de como os combates evoluírem. Só que ele, Lula, não será chamado a organizar nem a chefiar as tratativas. Talvez nem o aceitem no Clube.

A prova? Pois ontem às 14h (hora da Europa Central), os parlamentares suíços se empertigaram para ouvir o discurso de Volodimir Zelenski, que falava ao vivo, diretamente de Kiev, por vídeo em telão.

A Suíça é país tradicionalmente neutro. Assim, o presidente ucraniano evitou tocar em temas militares (armas ou munições). Em vez disso, agradeceu pelos bons serviços que a Suíça tem prestado (acolhida de refugiados, assistência médica aos feridos).

E aproveitou para detalhar seu próprio plano de paz. Sua ideia é reunir a expertise de diferentes chefes de Estado, cada um contribuindo com sua experiência em áreas como: questões nucleares, remoção de minas, proteção de crianças (milhares de crianças ucranianas foram deportadas para a Rússia contra sua vontade).

Zelenski fez um único pedido. Convidou a Suíça a organizar “uma cúpula sobre a paz mundial”. E acrescentou: “É justamente nesse ponto que a Suíça é especializada”. Foi ovacionado de pé.

Como o distinto leitor e a graciosa leitora podem perceber, Lula e seu “Clube da Paz” estão desde já descartados. A língua ferina e principalmente o raciocínio de Luiz Inácio, aprisionado em ressentimentos que lhe cristalizaram a alma, já fez seu efeito e já passou fatura. Não dá mais pra voltar atrás. Agora, o jeito é pagar o boleto. Sem chance de mudar de ideia.

Mais um privilégio

José Horta Manzano


Em princípio, o que não for proibido é permitido, concorda?


Vamos aos fatos. Na calada da noite de ontem para hoje, a Câmara Federal votou e aprovou um projeto de lei que estabelece punição para quem discriminar políticos. Especificamente, a nova regra coloca instituições bancárias num sapato apertado.

Cometerá crime todo aquele estabelecimento que recusar abrir conta bancária, negar concessão de empréstimo ou ainda bloquear a prestação de outros serviços financeiros a políticos e pessoas “politicamente expostas”. Contraventores arriscarão condenação a penas privativas de liberdade. Dado que não se pode mandar banco para a cadeia, seus diretores sofrerão as consequências do novo crime.

Por um lado, é óbvio que os parlamentares estão legislando em causa própria, o que, em si, já é uma indecência. Por outro, a nova lei quebra a igualdade de tratamento a que todos os brasileiros têm direito, sejam eles políticos, agricultores, doutores ou mascates.

Difícil será demonstrar que, na hora de abrir conta em banco, “pessoas politicamente expostas” tenham mais necessidade de amparo que profissionais de outros ramos. Pelo contrário, o bom senso ensina que um político está mais preparado que um sorveteiro a enfrentar qualquer problema na hora de se entender com a diretoria do banco.

A lei cria uma categoria especial de cidadãos, os “politicamente expostos”, que têm direito a proteção legal para enfrentar estabelecimentos bancários. É mais um privilégio para uma categoria que já tem tantos outros. Nesse sentido, pode-se afirmar sem medo que o novo regramento é discriminatório. Se bancos são obrigados a abrir conta para esses cidadãos, têm de ser obrigados a fazer o mesmo para qualquer cidadão.

Talvez seja pedir muito, mas as excelências que põem regras em nossa vida bem que podiam, por um instante, esquecer conchavos e falcatruas, e pensar no bem do povo e na felicidade geral da nação. No próprio âmbito bancário, há muita lei que está pedindo para ser criada.

Na França, é proibido pagar salário em dinheiro. Todo salário tem de ser depositado na conta do funcionário. Isso descarrega a Justiça. Desaparecem querelas do tipo “Ele não me pagou!”, “Paguei sim, foi em notas de R$20!”. Por que não implementar sistema idêntico no Brasil? Como? Nem todo o mundo tem conta bancária? Ué, mas se a nova lei obriga estabelecimentos bancários a abrir conta para políticos, por que razão não os obrigaria a fazer o mesmo para todos os que solicitassem?

Outra esquisitice brasileira: pagamentos em “dinheiro vivo”. Experimente, em qualquer país europeu, fazer um pagamento de montante importante em “dinheiro vivo”. Dependendo da situação, o distinto pode terminar na delegacia dando explicações: origem, dono do dinheiro, destino, razão do pagamento. Com toda certeza, um inquérito seria aberto. Pagar imóvel com dinheiro vivo? Nem em sonho!

Por que nossas excelências não introduzem essa prática entre nós? He, he… Acho que a resposta é tão evidente, que dispensa explicação.

Conversa de surdo

Ursula von der Leyen & Luiz Inácio da Silva

José Horta Manzano

O funcionamento das instituições da União Europeia é complexo, totalmente diferente do sistema vigente em cada um dos 27 países membros. Cada uma das instituições tem sua própria organização e colabora com as demais instituições segundo um esquema bem definido.

As instituições da UE são sete:

  • O Conselho Europeu
  • A Comissão Europeia
  • O Conselho da União Europeia (ou “o Conselho”)
  • O Parlamento Europeu
  • O Tribunal Europeu de Contas
  • O Tribunal de Justiça da União Europeia
  • O Banco Central Europeu

Como em qualquer governo, cada instituição é independente, mas todas trabalham em harmonia.

O presidente Lula recebeu ontem a visita de Ursula von der Leyen, 14ª presidente da Comissão Europeia, com mandato de 5 anos. Essa comissão é o órgão executivo da UE. Para esclarecimento, o cargo da senhora von der Leyen equivale ao de Lula da Silva, dado que ambos são chefes do Executivo.

Não sei se Luiz Inácio foi avisado (espero que sim) que ele e a visita estavam falando de igual para igual, sendo ambos chefes do Executivo. Lula não recebeu a visita de uma funcionária qualquer.

A julgar pela foto, von der Leyen parece sentir-se mais à vontade do que Lula. Ela exibe um sorriso resplandecente enquanto ele faz cara de quem comeu e não gostou. Talvez excessos cometidos no almoço lhe tenham provocado engulhos. O paletó desabotoado poderia ser a confirmação dessa tese.

Quanto ao debate entre os dois, há de ter sido conversa de surdo. A visitante veio tentar, pela enésima vez, explicar a Lula que ficar em cima do muro, no caso da invasão russa da Ucrânia, é opção furada, que, além de não o enobrecer, o coloca como cúmplice de ditadores sanguinários. Isso pode trazer-lhe consequências inesperadas e desagradáveis.

Lula, não tendo apreciado voltar a esse assunto, preferiu cobrar a conclusão do tratado entre UE e Mercosul. Quem sabe von der Leyen tenha até se comprometido a mexer os pauzinhos. Só que ela não tem nenhum poder nessa decisão, que depende de ratificação do texto em cada um dos 27 parlamentos nacionais da UE. Mas talvez Luiz Inácio nem esteja a par desse detalhe.

Na minha visão, teria sido melhor que a presidente da Comissão Europeia tivesse conversado com Celso Amorim, o assessor especial de Lula para assuntos externos. Em matéria de relações exteriores, o posicionamento de nosso presidente tem trazido as digitais de Amorim.

Luiz Inácio nasceu dogmático, e há de morrer dogmático. Para ele, posicionar-se no campo oposto ao dos EUA é ponto de honra, coisa que não se discute. Que remédio?

Avenida Paulista

clique para ampliar

José Horta Manzano

Que é isso? Viva Lula? Viva Bolsonaro? Marcha para Jesus? Viva Getúlio? Abaixo Dilma? Estamos todos com Putin? Greve dos metalúrgicos? Estou com o Congresso e não abro? Queremos o passe livre? Abaixo o STF? Exigimos uma terra plana? Não tomamos vacina nem a porrete? Viva o Imperador?

Não, nenhuma das anteriores. É a Parada LGBT. De memória de paulistano, nunca se viu a Paulista tão coalhada de gente. Melhor assim.

Pra que serve um ministério?

Reunião ministerial

José Horta Manzano

Nossa Constituição não é específica ao falar de ministérios e de seus titulares. Parece partir do princípio que as funções desses auxiliares do presidente da República são de conhecimento de todos, portanto não vale a pena se estender em explicações detalhadas.

Vivemos num país de forte tradição cartorial. Já reparou nas intermináveis linhas de palavrório que aparecem na escritura de um lote de 10m x 10m situado num grotão qualquer? É um blablá tão comprido que te dá a impressão de estar comprando um castelo.

O fato é que essa fixação em dar a volta completa, abarcar um tema inteirinho e trancar a porta, sem deixar brecha para interpretações divergentes, acaba sendo perniciosa. Quando uma lei ou um regulamento não vem já esmiuçado, os cidadãos acabam raciocinando de forma extravagante: “Se não é proibido, forçosamente é permitido”.

Pela Lei Maior, a única condição para atribuir a chefia de um ministério é que o titular seja brasileiro. Explicitamente, não há limite de idade, não há exigência de notório conhecimento da área, não há proibição de nepotismo, não há imposição de reputação ilibada, não há obrigação de apresentar certidão negativa de antecedentes criminais.

Segundo nossa percepção, o que não está explicitamente proibido, só pode ser permitido. A razoabilidade não está entre as qualidades principais de nosso andar de cima. Eis por que o ministério do presidente – não só de Lula, mas de todos os predecessores – lembra mais um amontoado de figuras díspares, saídas não se sabe de onde, manifestamente incompetentes para assumir o encargo que lhes foi confiado.

A escolha de ministros não segue um padrão lógico, que vise a colocar o melhor especialista em cada área. Lula, como Bolsonaro, tem distribuído cargos de ministro segundo critérios que pouco têm a ver com qualificação do titular. Amizade pessoal, cumprimento de promessa de campanha, “indicação” de alguém, afiliação a este ou àquele partido – esses são os parâmetros. Como resultado, o conjunto dos ministros dá contribuição importante para que o país continue bloqueado e parado no tempo.

Lula tem ministro encrencado com a justiça, ministro incompetente, ministro apadrinhado por figurão, ministro que requisita avião da FAB para ir a leilão de cavalos. É uma pilha de figurinhas repetidas, daquelas que não têm valor. Há muita figura decorativa com título de ministro.

Como consertar a situação? A solução mais rápida e certeira só pode vir do Congresso, afinal são os parlamentares que fazem as leis. Teriam de ser especificados (e gravados na pedra) os critérios obrigatórios para a nomeação de ministro de Estado. Em país cartorial, as regras têm de ser explicitadas tim-tim por tim-tim.

O grande ditado

Megaditado nos Champs-Elysées

José Horta Manzano

Todos nós hesitamos, às vezes, na hora de escrever certas palavras complicadas. Exceção, docente, discente ou displicente, por exemplo. O traço de união, então, é praga de Deus, como diz o outro. Cor-de-rosa ou cor de rosa? Cor-de-chumbo ou cor de chumbo? Há ainda quem se enrosque nas duplas cauda/calda, mau/mal & companhia.

No entanto, comparadas com as hesitações dos franceses, nossas dúvidas são como paçoquinha comparada a pé de moleque. Ambos os doces são feitos de amendoim, mas nossa paçoca é macia e derrete na boca, enquanto o pé de moleque deles é um verdadeiro quebra-queixo.

Isso vem do fato de a grafia da língua francesa ser baseada na etimologia. Há uma quantidade de consoantes duplas imperceptíveis na língua oral. Há profusão de ípsilons, de tê-agás e de pê-agás herdados do grego. Há irregularidades, como erros de transcrição que perduram há séculos e já fazem parte da língua.

Apesar disso – ou talvez por causa disso –, impressiona o amor que os franceses têm pela própria língua. Mais que amor, sentem respeito, orgulho, veneração. Um dos esportes nacionais mais populares são os concursos de ortografia. Volta e meia, alguma instituição organiza um. Não são para crianças, não, mas para marmanjos. Os participantes são adultos e idosos. Às vezes a final passa na televisão.

Domingo passado, 4 de junho, realizou-se um desses certames. Foi disputado ao ar livre, numa ensolarada avenida dos Champs-Elysées (que os franceses garantem ser “a mais bela avenida do mundo”), fechada para a ocasião. De manhã cedinho, já estavam lá dispostas 1.700 carteiras e um telão de 102 m2. As carteiras preencheram a distância entre duas estações de metrô.

Organizado pela Prefeitura de Paris, o gigantesco ditado recebeu 50 mil inscrições de cidadãos interessados. Na impossibilidade de atender a todos, foram sorteados 5.100 participantes, que se submeteram à prova divididos em três turmas de 1.700. Às 13 horas começou a prova da primeira turma. Cada candidato recebeu uma caneta e uma folha de exame. Cada turma teve direito a um texto diferente, lido três vezes, uma em leitura normal, outra devagar e a terceira para revisão. Os raros candidatos que entregaram uma prova sem nenhum erro receberam um prêmio simbólico. Os demais ficaram felizes de ter participado.

Não consigo imaginar o fechamento da Esplanada dos Ministérios, do Aterro do Flamengo ou do Vale do Anhangabaú para um ditado gigante. Aliás, em matéria de língua, nosso maior problema não está na grafia. Mas bem que seria uma boa ideia ensinar aos aluninhos que a língua é um tesouro. Que ela é o traço de união que nos abraça a todos e que, por isso, merece ser bem tratada.

Post scriptum
O megaditado dos Champs Elysées já foi homologado pelo Guinness Book of Records como o ditado lido para o maior número de participantes.

A destruição dos destroços

Virginia, EUA

José Horta Manzano

Volta e meia, grandes jornais publicam artigos saídos no New York Times ou no Washington Post, grandes diários dos EUA. A ideia é boa, dado que nem todo leitor brasileiro costuma acompanhar a imprensa internacional.

No original, os textos são escritos em inglês, fato compreensível. Para publicação no Brasil, têm de passar por uma tradução. Nos tempos de antigamente, esse trabalho era entregue a profissionais de verdade, que caprichavam em tornar o original perfeitamente compreensível ao leitorado brasileiro. Aos poucos, porém, essa prática parece estar sendo abandonada.

Os textos apresentados ao público nacional já não são esmerados como antes. Não sei bem qual é a causa. Será que profissionais da tradução escasseiam? Será que, mal pagos, deram um apegrêide na função e passaram a traduzir só artigos científicos? Será que, com a necessidade de postar imediatamente todo artigo novo na edição online, o tempo concedido aos tradutores, muito exíguo, já não permite trabalho de qualidade? Será talvez que os tradutores automáticos à disposição na rede são responsáveis pelo trabalho malfeito?

Não tenho a resposta, só me cabe constatar. Vi hoje no Estadão um relato traduzido do Washington Post. Traz esclarecimentos daquele caso do jatinho particular que, perseguido por caças das Forças Aéreas dos EUA, rodopiou e caiu numa região desabitada do estado da Virgínia. Traduzido para o português, o artigo soou realmente estranho. Vejam.

“O local do acidente levará muito tempo para chegar”, disse o chefe da investigação. Confesso que não entendi essa frase. O local do acidente levará muito tempo para chegar aonde?

Outro exemplo: “Os destroços estão altamente fragmentados.” Ora é normal que destroços estejam fragmentados. Se o objeto estivesse inteiro, não seriam destroços, mas uma carcaça.

Mais adiante, o artigo informa que o avião continuou a voar a cerca de 34 mil pés. Gentilmente, o tradutor explica para o público tupiniquim que essa medida equivale a 103 mil metros de altura. Só que nenhum avião comercial tem capacidade de atingir essa altitude. Cem quilômetros de altura? Só satélite artificial. O tradutor se enganou de uma vírgula. Na verdade, o avião voava a 10.300 metros, na faixa de velocidade utilizada por aviões civis.

Há outros deslizes que, se não bloqueiam a compreensão, causam ruído aos ouvidos. Fala-se da “destruição dos destroços”, sequência infeliz de palavras, quando se sabe que os destroços já são, por definição, o que sobrou de uma destruição.

Outro trecho pontifica que “a altitude é um local crítico para perder a pressurização”. Avião no solo não precisa de pressurização. Ela só costuma ser acionada durante o voo, ou seja, em altitude. Portanto, essa última frase ficou parecendo um truísmo. Perda de pressurização só pode ocorrer em altitude.

Se você tiver um amigo cujo cunhado tem um vizinho que conhece alguém dentro da redação de um grande cotidiano nacional, mande a dica que dou a seguir.

Para ganhar tempo – e qualidade de tradução – esqueça o Google translation. Prefira o DeepL. Tem uma oferta de línguas menos extensa do que o concorrente, mas sua qualidade está próxima da perfeição.

Mofo nobre

Sauternes de diferentes produtores

Você sabia?

José Horta Manzano

Mofou, tem de jogar fora. Tem mesmo? Nem sempre. Há males que vêm para bem.

Na Idade Média, uma das atividades favoritas dos senhores feudais era a guerra. Por um sim, por um não, juntavam seus vassalos e partiam para medir forças com um outro senhor. O século XVI já anunciava outros tempos, mas certos hábitos antigos continuavam arraigados.

Conta uma lenda que, por aqueles tempos, um proprietário de terras da região de Sauternes (perto de Bordeaux, no sudoeste da França) foi à guerra. Como imaginava estar logo de volta, deixou ordens claras: fazia questão de que esperassem sua chegada para iniciar a vindima, a colheita das uvas.

As coisas não correram exatamente como ele imaginava. A contenda se prolongou e não lhe foi possível voltar a tempo para a colheita. Temerosos, seus camponeses não ousaram tocar nas uvas antes do retorno do patrão.

Quando finalmente voltou a suas terras, o proprietário constatou que as uvas, ainda não colhidas, estavam já meio mofadas. Perdido por perdido, decidiu que a vindima se fizesse assim mesmo.

As uvas foram colhidas, pisadas, e o processo de vinificação foi lançado. Alguns meses depois, a abertura da primeira barrica trouxe uma surpresa muito agradável: o vinho, habitualmente medíocre e bastante ácido, desta vez parecia um néctar feito no céu. Licoroso, docinho, frutado, um luxo!

Os proprietários da região logo se deram conta de que o fato de haver esperado que as uvas mofassem tinha provocado aquela magia. Não entenderam como era possível, mas adotaram a nova técnica assim mesmo.

Passaram-se os séculos, e se manteve a técnica de só colher as uvas depois de engrouvinharem, adquirindo aspecto de uva-passa. Os enólogos têm hoje explicação científica para a miraculosa transmutação de um vinho à toa em delícia rara. Descobriram que, sob certas condições de umidade e temperatura, colônias de fungos microscópicos do gênero Botrytis Cinerea podem se formar. O microclima da região de Sauternes se caracteriza justamente por nevoeiros úmidos no início do outono, um pouco antes da época da vindima.

O mofo nobre

Esse fungo, quando afeta outras frutas, é catastrófico: toda a colheita pode estar comprometida. No entanto, quando ataca as vinhas, faz que a água dos bagos se evapore, aumentando a concentração de açúcar. Provoca o chamado mofo nobre. O resultado é um vinho naturalmente doce e ligeiramente licoroso. A cor da bebida também se altera, tornando-se um elegante amarelo alaranjado – ambré, como dizem os franceses.

Como acompanhamento de um queijo roquefort, um gole de Sauternes é uma dádiva. O sabor ligeiramente açucarado suaviza a aspereza do queijo de ovelha. É um fecho excelente para uma refeição de réveillon.

A consumir com moderação, naturalmente.

Quem te viu, quem te vê ‒ 3

José Horta Manzano

Saiu hoje no Diário Oficial a indicação de Cristiano Zanin para preencher a vaga aberta pela aposentadoria de Ricardo Lewandowski. Como é de conhecimento geral, Zanin é amigo pessoal do presidente Lula da Silva. Vem defendendo o atual presidente desde há muitos anos, tendo notadamente enfrentado o auge dos processos da Lava a Jato. Um amigo valioso.

O jornalista Lauro Jardim lembrou, em sua coluna n’O Globo, da declaração feita por Lula durante a campanha eleitoral de seis meses atrás. Quando de um debate na Band, o ora presidente foi veemente:

“Estou convencido que mexer na Suprema Corte para colocar amigo, para colocar companheiro, para colocar partidário é um atraso, um retrocesso que a República brasileira já conhece muito bem. Eu sou contra.”

Não diga! É contra mesmo?

O distinto está surpreso? Pois não devia. Nesse particular, Lula é reincidente. Durante seus primeiros mandatos, já tinha incorrido no mesmo pecado ao indicar para o STF seu amigo Ricardo Lewandowski.

Na época, muitos criticaram a escolha, não tanto pelo nepotismo explícito como pelo fato de o indicado não ser dono de notável saber jurídico como exige a Constituição. Passou na sabatina assim mesmo.

Zanin, o atual indicado, tampouco é personagem carregado de diplomas. Vai passar do mesmo jeito.

Afinal, estamos no Brasil, país onde a palavra de um figurão público vale menos que um bilhete corrido.

A língua portuguesa, mesma no Brasil e em Portugal, é bifurcada

Ricardo Araújo Pereira (*)

Como é que isto não é um milagre? Um bicho nascido há milênios, em algum lugar da Itália, atravessou um oceano, mudou de continente e de hemisfério, e vive ainda hoje no Brasil.

O bicho chama-se língua portuguesa. Tem evoluído, como todos os bichos, e tal como eles vai se transformando na nova versão do mesmo bicho.

O bicho habita várias regiões do globo —não apenas o Brasil. Mas que o bicho permaneça vivo tão longe e tanto tempo depois de ter nascido não deixa de ser notável.

Serei só eu que me comovo com o fato de, há uns milênios, nas margens do rio Tibre, falantes da língua que se transformou nesta usassem, por exemplo, a palavra “grátis”, como hoje continuam a usar outros falantes, nas margens do rio Amazonas?

Mais ninguém se emociona com isto de várias palavras terem desaparecido, ou terem ficado quase irreconhecíveis, mas a palavra “grátis”, logo ela, ter sobrevivido impecável?

Há quem assinale que a língua portuguesa no Brasil já tem muitas diferenças em relação à que se fala em Portugal. Eu me espanto que mantenha tantas semelhanças.

Às vezes, algumas pessoas perguntam se ainda é a mesma língua, ou se já é outra. Parece que a resposta é óbvia: o português é uma língua bífida. Como a da cobra. Também tem um longo tronco comum e uma pequena parte divergente. E também é perigosa.

Você sabe que, quanto mais exibe os seus músculos, mais demonstra que é um rato? Desculpe, talvez você se orgulhe da sua musculatura, mas o parentesco dos seus músculos com os camundongos é indesmentível. Músculo vem do latim mus, que significa rato. E tem o sufixo “-culo”, que indica diminutivo, como nas palavras minúsculo, quadrícula e cubículo.

Milênios antes de você frequentar afincadamente a academia alguém achou que os músculos lembravam um ratinho, movendo-se dentro do corpo. Daí a palavra músculo. Boa sorte quando voltar a contemplar os seus bíceps e tentar não imaginar o rato empoleirado no braço. Eu avisei que isto era perigoso.

Caetano Veloso declarou celebremente que gostava de sentir a sua língua roçar a língua de Luís de Camões. Eu gosto de sentir a minha roçar a de Machado de Assis. E é óbvio que a língua de Machado também roçou a de Camões. É uma felicidade que desejo que continue. Espero que peguemos herpes todos juntos.

(*) O português Ricardo Araújo Pereira é jornalista e escritor.