P.P.P.

José Horta Manzano

Às vezes se ouvem inacreditáveis histórias de cubanos que padecem com salário mensal de 10 ou 20 dólares. São relatos que nos deixam de queixo caído e sem entender como é possível alguém viver com uma ninharia assim.

É verdade que, em qualquer lugar do mundo, ter de se virar com poucas dezenas de dólares por mês é andar na corda bamba. No entanto, há que relativizar. O dólar não é referência absoluta. Nenhuma moeda poderia servir de régua para medir realidades assimétricas.

Tradicionalmente, o PIB (produto interno bruto) tem servido de parâmetro para medir a riqueza de cada país. O cálculo é teórico, mas é o que temos. O problema é que um cubano, com o equivalente de 10 dólares, pode comprar mais mercadoria e mais serviços do que um norueguês que dispuser da mesma quantia. Portanto, simplesmente dividir o PIB pela população de um país pode levar a resultado distorcido, longe da realidade.

Para corrigir a distorção, utiliza-se a variante PPP (Purchasing Power Parity = Paridade de Poder Aquisitivo). Uma manipulação científica de indicadores permite a obtenção de resultado mais próximo da realidade. É aí que se vê que um ordenado mensal de US$ 5.000, considerado excelente no Brasil, é salário de fome na Suíça, país onde esse montante não chega para sustentar uma família de quatro pessoas.

Calculado pelo método PPP, o PIB brasileiro per capita aumenta 50%. O G7, o clube dos ricos, congrega as nações teoricamente mais ricas do planeta. Atualmente, os membros do clube são: os EUA, o Japão, a Alemanha, a França, o Reino Unido, a Itália, o Canadá – acompanhados da União Europeia. A Rússia, que fazia parte, foi excluída desde que suas tropas se apossaram da Crimeia, território antes ucraniano.

Algum tempo atrás, uma jornalista alemã esmiuçou dados do FMI e confrontou com a riqueza dos integrantes do G7. Chegou à conclusão de que, considerada a paridade de poder aquisitivo, os integrantes do G7 não seriam os mesmos. A ilustração mostra os países que, pelo método P.P.P., deveriam participar do clube, de 1980 a 2019.

Pode-se notar que, na década de 1980 (a chamada década perdida), o Brasil contava entre as sete maiores economias. Deu um escorregão no início dos 2000. Atualmente, é o oitavo da lista, ou seja, o primeiro dos que vêm depois. É interessante notar a ascensão fulgurante da China, o grande ausente. Não passava nem perto do clube em 1980 e, em 40 anos, assumiu o primeiro lugar. Mas continua de fora, que o clube não aprecia novos-ricos. Regras são regras, ora.

O valor de ‘pi’

Ruy Castro (*)

Uma notícia de jornal trouxe-me à memória um fantasma da adolescência: “pi”. “Pi”, para quem não sabe, tem a ver com matemática. É a resultante da razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo. Não sei o que isso significa —apenas copiei a descrição do jornal. Durante toda a vida escolar, fui atormentado por “pi”. Quando o professor tirava o giz do bolso do guarda-pó, enchia o quadro com números e falava em “pi”, eu já sabia que aquilo logo me renderia um zero.

“Pi”, com esse nome de esquilo de desenho animado, é um desafio para os matemáticos. Desde o grego Arquimedes, eles vêm travando sangrentas batalhas entre si, fazendo cálculos para determinar o valor do bicho. Um “pi” simples vale 3,14 —não me pergunte de quê. Mas, há milênios, esse número tem sido acrescido de decimais, a tal ponto que, pelos cálculos do suíço Peter Trüb, em 2016, “pi” já estava em 22,4 trilhões de dígitos —nem a inflação na Venezuela chegou a tanto.

Agora, a japonesa Emma Haruka Iwao acaba de estabelecer um novo valor: 31,4 trilhões de dígitos. E como ela chegou a isto? Operando, durante 121 dias, 25 computadores, que processaram 170 terabytes de dados. Um terabyte, para se ter ideia, armazena 200 mil músicas. Pois tente imaginar 31,4 trilhões de dígitos.

Devíamos chamar Emma ao Brasil. Só ela, usando sua intimidade com “pi”, poderia ajudar a Lava a Jato a calcular o total de dinheiro movimentado pela corrupção nos últimos 30 anos, envolvendo governantes, burocratas, empresários, políticos e partidos. Deve estar em níveis de “pi”.

Quando nos damos conta da naturalidade com que temos ouvido falar em milhões ou bilhões de reais roubados, e não distinguimos mais uns dos outros, é porque já nos tornamos cínicos ou indiferentes. E por que não? Afinal, como disse o juiz Ivan Athiê, aquele que soltou Michel Temer outro dia, “propina não é crime ‒ é gorjeta”.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Cela va de soi

José Horta Manzano

Ninguém gosta de pagar imposto. Não conheci, até hoje, quem sentisse prazer em entregar ao erário parte do que ganha. No entanto ‒ que fazer? ‒, é assim que toda sociedade funciona. Num casal, num condomínio, numa associação, num clube, as regras são semelhantes. O custeio das despesas comuns é rateado entre os membros. Se não fosse assim no cenário nacional, quem construiria estradas? Quem financiaria a polícia? Quem garantiria a rede de Educação e o sistema de Saúde Pública?

Faz tempo que sociedades civilizadas estabeleceram um sistema pelo qual cada cidadão contribui conforme suas possibilidades. Imposto não costuma ser um montante fixo, igual para todos. O pagamento de quantia fixa seria irrisório para quem é abonado e representaria peso enorme para quem tem pouco. Daí a criação de alíquotas e porcentagens.

Nas sociedades organizadas, ficou combinado que ‒ salvo raríssimas e justificadas exceções ‒ todos os ganhos de um indivíduo são adicionados para determinar a alíquota. Mais que isso: o imposto será cobrado sobre a integralidade do ganho. Em países onde a justiça fiscal é mais apurada, até vantagens in natura entram no cálculo dos ganhos. Por exemplo, o uso de um veículo posto à disposição do funcionário para uso pessoal é convertido em um montante e adicionado ao salário na hora de calcular o imposto devido.

Li, estes dias, que o funcionalismo público brasileiro goza de isenção fiscal sobre dez por cento do que recebe. Quanto maior for a importância do cargo ‒ juiz, procurador, ministro, conselheiro de tribunal de contas ‒, maior será a parcela dos provimentos isenta de tributação, podendo atingir trinta por cento do total.

«Penduricalhos» apelidados de auxílio-moradia, auxílio-transporte & congêneres escapam ao fisco, uma aberração. Está aí o fruto de raciocínio duplamente tortuoso. Pra começo de conversa, se alguém precisa receber ‘auxílio-moradia’ é justamente o assalariado que sobrevive com salário mínimo, não o alto funcionário cujos vencimentos são amplamente suficientes para bancar aluguel. Pra continuação de conversa, é escandaloso que o alto funcionário, além de ser aquinhoado com o ‘auxílio’, ainda escape ao pagamento de imposto.

Tem razão quem disse um dia que «o Brasil não é um país pobre, é um país injusto». Soltar frase de efeito como essa é fácil. Dar contribuição pessoal para corrigir distorções é outra coisa. A pérola é atribuída a um ex-presidente da República que, pelo que se sabe, não passou da palavra ao ato: não fez sua parte para mitigar a injustiça social que ele mesmo reconheceu. Não abriu mão dos mimos a que tem direito além da polpuda aposentadoria: dois veículos mais cinco funcionários ‒ sobre os quais, naturalmente, não paga imposto. Cela va de soi.(*)

(*) Cela va de soi é expressão francesa usada quando se quer dizer que alguma coisa é tão natural, tão evidente que não precisa nem ser mencionada.