Reforma da Previdência

José Horta Manzano

O grau de avanço de uma sociedade se mede pela proteção que ela oferece a seus membros mais frágeis. É tarefa de Estados organizados patrocinar serviços básicos. Cabe ao Estado proporcionar instrução pública, formação profissional, saúde pública, defesa do território, segurança pública. A lista não é exaustiva. Todas essas atribuições são, naturalmente, financiadas pela contribuição de todos através dos impostos.

Oferecer proteção aos que já não têm condições de ganhar o pão quotidiano pelos próprios meios é conceito relativamente recente. De fato, quando a grande maioria da população vivia da agricultura, o problema praticamente não existia. Na sociedade rural, famílias eram grandes, com duas ou três gerações debaixo do mesmo teto. A solidariedade familiar supria a incapacidade de sustento dos membros inválidos. Toda família tinha «agregados», «filhos de criação» e outras figuras hoje raras. Eram parentes ou conhecidos sem meios de sobrevivência.

A industrialização do país e a urbanização da população redistribuíram as cartas. Famílias diminuíram de tamanho. A solidariedade para com chegados e agregados se esgarçou. O Estado viu-se na obrigação de garantir amparo aos que, em virtude de idade avançada ou de saúde debilitada, já não podem prover ao próprio sustento.

Nas décadas de 1930 e 1940, grande parte dos países puseram de pé um sistema de arrimo para cidadãos que chegassem à velhice. O Brasil não foi exceção. Refletindo a sociedade da época, nossas regras levaram em conta que a expectativa de vida do cidadão girava por volta de 50 anos. Nos últimos 75 anos, muita coisa mudou. Avanços na medicina e nos cuidados alongaram a expectativa de vida. Projeções indicam que a humanidade tende a ter vida cada vez mais longa. Apesar das transformações, nenhum governo teve a ousadia de meter a mão nesse vespeiro. Nossas regras de aposentadoria não foram alteradas. Cada um empurrou a batata quente para o seguinte. Estacionamos num mundo simpático, mas distante da realidade.

Pirâmide etária do Brasil ‒ 1980, 2020, 2050
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A diminuição do número de jovens e o aumento de cidadãos idosos contribuem para a defasagem do sistema. Os problemas de financiamento foram se avolumando e chegaram a um ponto crítico. A continuar do jeito que está, o país perderá toda capacidade de investimento: a totalidade do dinheiro disponível será destinada a cobrir o rombo da Previdência.

O governo atual, com um presidente sem intenção de se recandidatar, decidiu peitar profunda reforma na Previdência. A atitude é louvável e necessária. Dado que o problema não foi enfrentado durante décadas, o salto é muito grande e tem assustado o povo e seus representantes.

A resistência da sociedade é forte, no entanto, queira-se ou não, o sistema terá de ser atualizado. Se não for agora, será no mês que vem ou no ano próximo. Não se pode mais esperar, que a situação é grave. Mais razoável seria fixar a meta que se quer atingir e, em seguida, escalonar as etapas, paulatinamente, sobre, digamos, um decênio. De chofre, como se está propondo, é paralelepípedo duro de engolir. Com ou sem apoio de base aliada, com ou sem apoio de oposição, alguma reforma, ainda que mínima, tem de ser feita. Melhor começar logo.

Aviso aos senhores deputados e senadores
Só entram para a história os que têm a coragem de enfrentar desafios. Os acomodados acabam tragados pelo esquecimento.

Os mi[ni]stérios brasileiros

Myrthes Suplicy Vieira (*)

by Lezio Jr, desenhista paulista

by Lezio Jr, desenhista paulista

Não escapa à sensibilidade de ninguém a má vontade e a acidez das críticas com que muitos de nossos concidadãos avaliam o desempenho do atual quadro ministerial, induzidos talvez por pura e simples má-fé ou movidos pela inveja da capacidade criativa de nossa atual mandatária. Nem mesmo a recente reforma ministerial escapou da negatividade da ótica dessas pessoas, que chegaram a alegar que ela se deveu a motivos espúrios que nada têm a ver com os interesses nacionais. Basta de tanto catastrofismo, chegou a hora de fazer justiça.

Hoje, ao ler o desabafo que nossa amada líder fez ao final de sua primeira reunião com a nova equipe ministerial, afirmando que está em curso uma tentativa de “golpe democrático à paraguaia”, não pude mais me conter. Desolada, decidi, por isso, estender a mão aos ilustres defensores da democracia à brasileira e ajudar a explicar aos não iniciados como funciona a versão tupiniquim desse sistema de governo.

Lingua 1Em primeiro lugar, é preciso destacar que nossos aguerridos democratas à brasileira justificam suas ações numa “novilíngua” que, embora guarde semelhanças com a língua portuguesa, tem conotações um tanto diversas para cada vocábulo. Já nos deparamos com preciosos exemplos desse novo idioma proferidos por nossa líder máxima, como “isso é uma panaceia que não vai funcionar” e “não vamos estabelecer uma meta e aí, quando atingirmos a meta, vamos dobrá-la”.

Eolienne 1Por estes dias, circula no Facebook um vídeo em que nossa estimada presidenta acrescenta mais uma pérola a esse inventivo dicionário. Lamenta ela, em um discurso, que ainda não se tenha descoberto um modo de “estocar vento”. Referia-se ela, obviamente, ao fato de que, embora seu governo seja a favor de transferir parte do investimento na matriz energética para a energia eólica, ainda está às voltas com alguns obstáculos incontornáveis.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Acompanhemos seu raciocínio: ao contrário da água que pode ser armazenada para enfrentar dias mais difíceis, disse ela, ainda não se descobriu um modo de estocar vento, dado o caráter oscilante dessa força da natureza. Como ela mesma fez questão de ressaltar, “tem hora que venta mais e tem hora que venta menos, às vezes venta mais à noite, por exemplo”. Talvez por uma questão de pudor, ela tenha omitido os apuros tecnológicos enfrentados pelos cientistas brasileiros para capturar o vento e aprisioná-lo em um contêiner, preservando ao mesmo tempo toda sua potência segundo a segundo.

by Geraldo 'Passofundo' Fernandes desenhista gaúcho

by Geraldo ‘Passofundo’ Fernandes
desenhista gaúcho

Foi tendo em mente tais exemplos que me ocorreu que é provável que tenham escapado à atenção da legião de detratores do governo outros sofisticados exemplares dessa nova forma de pensar – e nomear – a realidade nacional. Valho-me da ajuda de Lacan para apontar os mais recentes vocábulos:

Interligne vertical 16 3Ke● A reforma ministerial foi “legítima” porque feita às claras e no intuito de defender o ajuste fiscal, ainda que possa implicar aumento de despesas para garantir a tão necessária “fidelidade” da base aliada ao programa de governo;

● os cortes programados no Ministério da Educação, no da Saúde e em vários programas sociais representam apenas uma estratégia “temporária”, necessária para enfrentar a crise “internacional” com realismo – crise essa que está próxima do fim, uma vez que “já estou vendo luz no final do túnel”;

● o mesmo pode ser dito em relação à necessidade de reintrodução da CPMF, seja porque é o “imposto que menos impacta a inflação”, seja porque “vai valer só por uns quatro anos”, seja porque “ninguém vai sentir” o peso no próprio bolso, dado o “propósito nobre” de financiar a saúde, e seu caráter “democrático”. Para reforçar a confiança dos crédulos quanto ao último item, o governo até mesmo se dispõe a estudar “isenção” para os contribuintes de baixa renda;

● finalmente, as frases mais enternecedoras da novilíngua democrática brasileira, proferidas por nossos dois últimos mandatários: “Eu não sabia”, “Tomei a decisão baseada em dados incompletos”, “Nunca antes na história deste país se investigou tanto”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Corrupção com classe

Sebastião Nery (*)

Era cabo do Palácio Bandeirantes, sede do governo paulista, quando Adhemar era governador. Todo dia 30 do mês, de manhã cedo, recebia um envelope fino, fechado ― muito bem fechado ― para entregar a um senhor gordo e estranho nos subúrbios da capital. E trazia de volta, mandado pelo senhor estranho e gordo, um pacote grosso, fechado, bem fechado.

A ida...

A ida…

Um mês, dois meses, seis meses, todo dia 30, de manhã cedo, bem cedo, o cabo levando o envelope fino e trazendo o pacote grosso. Morria de curiosidade, mas não tocava o dedo. Estava ali cumprindo seu dever.

E o segredo era o preço primeiro do dever. Um dia, o cabo não se conteve. Abriu pela ponta, discretamente, o pacote grosso. Era dinheiro, muito dinheiro. Tudo nota de mil. Resistiu à tentação, entregou o pacote inteiro, intocado. No mês seguinte, dia 30, deram-lhe de novo o envelope fino. Abriu. Era um cartão, escrito à mão: “― 50 contos no bicho que der.” O cabo não resistiu. Pegou uma caneta num botequim e emendou: “― 50 contos no bicho que der. Aliás, 55”.

Nunca mais lhe deram o envelope fino e muito menos o pacote grosso. Foi demitido. Bons tempos aqueles em que a corrupção ia de envelope fino e voltava de pacote grosso. O caixa das maracutaias era desovado no jogo do bicho.

... e a volta

… e a volta

Depois que o PT inventou o “Presidencialismo de Corrupção”, criado por Lula e ampliado por Dilma, a rota das negociatas passa pelos cofres insaciáveis das empreiteiras, é garantido pelos gorduchos favores do BNDES e sangra as gavetas amanteigadas do Tesouro Nacional.

Lula chegou como o guerreiro dos sindicatos, Dilma como a mãe do PAC. Em dez anos os dois tiraram a máscara. O guerreiro virou lobista de negócios dos ditadores africanos e de Cuba. E o PAC da Dilma empacou. O “Presidencialismo de Corrupção” é a maior fonte de negociatas do país. Nunca houve coisa igual, nem no Império ou na República Velha. Corrupção sempre houve. O Poder é uma instituição voraz. Mas nos níveis em que o PT a instalou, aberta, escancarada, escrachada, jamais houve igual.

A desculpa é que a “base aliada” é insaciável, que quase 30 partidecos são incontroláveis, que, com mais de 30 ministérios, ninguém administra nada. Ora, quem alimenta, engorda, sova essa maquina infernal? Era Lula, hoje é Dilma. Os dois são a alma do PT. Vivem dele. Sangue do sangue.

Chegou a campanha eleitoral, o PT saltou no pântano. Vale tudo. São os “blogs de assalto”, os “colunistas de aluguel”. É a guerra suja. E o Palácio do Planalto comprando tudo com dinheiro público.

Já não bastam os asquerosos convescotes vespertinos em que a presidente da República distribui dinheiro e cargos aos partidos como banana a macacos. E Lula diz a Dilma, debochando, que senadores e deputados “não se dão ao respeito”.

Interligne 18g

(*) Excertos de artigo do jornalista Sebastião Nery.
http://www.sebastiaonery.com.br/

Frase do dia — 101

«O Brasil de hoje não é o mesmo de três anos atrás. Dilma Rousseff não tem nem de longe o carisma de seu antecessor ― embora desfrute de grande popularidade ― e enfrenta enormes dificuldades para administrar o insaciável apetite do PT pelo poder e a ganância por vantagens de uma base aliada tão ampla quanto infiel. (…) Isso tudo até a oposição já está conseguindo enxergar.»

Editorial do Estadão, 8 fev° 2014.

Dilma e a girafa

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 julho 2013

Faz vários anos, tive um funcionário, gente fina, pau pra toda obra. Às vezes eu tinha de confiar-lhe alguma tarefa mais ingrata, mais maçante. Com tato, eu pedia: «Então, Jorge, você não se importa de fazer isto?». E a resposta vinha, certeira: «Oh, imagine! Fazer isso ou pintar a girafa é a mesma coisa, tanto faz».

Até hoje estou sem saber que diabo era aquela história de pintar a girafa. Mas a mensagem era clara: ao velho Jorge, pago para trabalhar, pouco importava qual fosse a tarefa. Se era para fazer, arregaçava as mangas e fazia. Lembrei-me dele estes dias.

Girafa

Girafa

Dois anos e meio atrás, os brasileiros elegeram uma presidente para sua República. Iludidos ou conscientes, bem ou mal informados, ricos ou pobres, poderosos ou dominados, pouco importa a razão da escolha. Dilma foi ungida pelas urnas. Foi ela, mas, tivesse sido outra pessoa, no fundo, tanto faz. Os tempos absolutistas em que um único medalhão mandava e desmandava sozinho já sumiram na névoa do passado, junto com a guilhotina e a caixinha de rapé. A presidente que temos é essa, e com essa ficaremos. Mesmo poderoso, um presidente não é dono do País nem governa sozinho. Felizmente.

Pensando bem, mais vale ter no topo da República uma personagem menos brilhante, pouco exuberante, nada carismática. Se não é a melhor figura política que o Brasil já conheceu, a presidente atual tampouco é a pior. Tem suas carências, mas quem não as tem? Falta-lhe jogo de cintura, é verdade. Ainda assim, mais vale a rigidez de uma Dilma ― ainda que tisnada de rudeza e de rispidez ― que a exagerada plasticidade de seu antecessor, dono de uma indulgência que frisava a leniência e que abria caminho para toda sorte de desvios e «malfeitos».

Já vai para quase um mês que a sociedade brasileira está em efervescência. O que querem os manifestantes? O que dizem as ruas? Como deve o governo lidar com essa cena não prevista no roteiro original? Dizem que ninguém sabe ao certo por que os manifestantes manifestam. Não sejamos hipócritas. Sabemos bem o que querem. Querem o que queremos todos. Exatamente aquilo que está escrito bem no meio da bandeira verde-amarela: ordem e progresso.

Queremos um país em que os representantes do povo exerçam seu papel com seriedade. Queremos que a bandalheira deixe de ser a regra e volte a ser exceção. Queremos que malfeitores sejam punidos. Queremos que condenados cumpram suas penas. Queremos que enfermos sejam atendidos com dignidade. Não queremos ser república de bananas nem fazer parte do sinistro clube de países autoritários, sanguinários, populistas, irrelevantes. Queremos ordem. Uma vez instalada, o progresso fluirá naturalmente.

Não precisamos de plebiscitos para nos distrair. Nosso país reclama um gesto forte e imediato, um sinal claro que indique uma guinada real na governança. Nosso regime não permite à presidente destituir parlamentares. Mas ela pode, sim, demitir ministros. A nomeação (e a exoneração) de auxiliares diretos é prerrogativa pessoal da mandatária.

Sabem todos que Dilma Rousseff não faz parte do clube dos corruptos. Aliás, sua popularidade foi às alturas quando, de uma vassourada, mandou meia dúzia de ministros plantar batata.

Dilma Rousseff por Lezio Jr.

Dilma Rousseff
por Lezio Jr.

Para grandes males, grandes remédios. Se ela quiser resgatar sua imagem ― que se esfarela dia após dia ― só lhe resta um caminho: exigir que todos os titulares de seu inchado corpo ministerial apresentem sua demissão. Todos, sem exceção. Ninguém poderá dizer que foi demitido, as aparências serão salvas e estará feita a tábula rasa. O sinal enviado à nação será tremendo. Todos entenderão que, por fim, a presidente realmente ouviu a voz das ruas e está disposta a recomeçar com o pé direito.

Para seguir a lógica até o fim, Dilma deverá escolher os novos titulares não mais por afiliação partidária ou por apadrinhamento, mas pela competência. Pisará o pé de muita gente, mas, é certeza, mostrará sua coragem vencerá a parada.

E o Congresso? E a base aliada? Vão todos desertar? Ora, que bobagem. A grande massa de nossos representantes funciona na base da cooptação e de seu corolário, o medo. O pavor de não serem reeleitos é maior que qualquer ideologia. Todos se bandearão para o lado vencedor. Qual dos representantes ousará contestar a audácia da presidente?

Em vez de pintar a girafa ou de planejar plebiscitos, dona Dilma deveria assumir com firmeza as rédeas do governo. Pulso, intrepidez e energia não lhe faltam. Que diga adeus a gurus, marqueteiros e messias. Seguindo essa via sem tergiversar, apaziguará as ruas e garantirá sua reeleição.

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