Novilíngua ‒ 6

José Horta Manzano

A obra maior (magnum opus) do festejado escritor Fernando Sabino (1923-2004) é o romance O encontro marcado, lançado em 1956.

Fosse escrito hoje, o título teria de ser adaptado para os usos atuais. É que a expressão “encontro marcado” não se usa mais, entrou para a arqueologia da língua.

Atualizado para os usos modernos, o título seria traduzido para: “O encontro agendado”.

Hitou e flopou

Do jornal O Globo, 20 fev° 2023

José Horta Manzano

Confesso que precisei de alguns segundos de reflexão para entender o significado da chamada. É que este blogueiro é do tempo em que, em vez desses modismos estranhos, se dizia “o que foi sucesso e o que foi fiasco”.

Novilíngua ‒ 4

José Horta Manzano

Outro dia, o jornal contava a tristemente corriqueira história de um assalto. Estava lá, literalmente: «uma professora de 40 anos foi agredida e ‘teve o celular roubado’». Como se não bastasse, completavam: «teve a cara socada».

Ter a casa assaltada, ter o mandato cassado, ter a entrada proibida, ter a eletricidade cortada, ter a multa anulada, ter a candidatura negada, ter a carteira suspensa, ter a autorização prorrogada, ter o visto cancelado. Está aí uma coleção de expressões que se ouvem diariamente.

Errado, propriamente, não é, que cada um fala como lhe apetece. Mas soa esquisito. O uso do verbo ter + particípio passado para informar que o sujeito sofreu ação externa é moda relativamente nova. Foge ao espírito da língua. Até há pouco tempo, não era assim que se falava.

Essa construção, tomada diretamente do inglês, é anglicismo que pode ‒ e, a meu ver, deve ‒ ser evitado. Em português, temos a voz passiva, que dá o recado com elegância e naturalidade.

* Em vez de «ele teve o celular roubado», fica melhor «seu celular foi roubado» ou «o celular dele foi roubado» ou ainda «roubaram-lhe o celular».

* Em vez de «ele teve a entrada negada», fica melhor «sua entrada foi negada» ou «a entrada lhe foi negada» ou ainda «negaram-lhe a entrada».

* Em vez de «ela teve a cara socada», fica melhor «a cara dela foi socada» ou «socaram-lhe a cara».

Concedo que é difícil escapar ao que se ouve o tempo todo. A tendência a reproduzir o que dizem os demais é natural e compreensível. Mas… vamos, gente, um esforçozinho não mata ninguém! Vamos valorizar o que temos. Vale mais que sucumbir à facilidade.

Da próxima vez que o distinto leitor tiver de relatar que alguém sofreu ação externa, lembre-se da voz passiva. Fale sem sotaque.

Como é que é?

José Horta Manzano

Deu no Estadão

Não entendi, sem brincadeira. Acho que, desta vez, o estagiário se superou. Para decifrar o texto, pensei em três possibilidades:

    1. Ele se refere a aeroportos que, de tão bonitos, nos deixam sem ânimo de sair e apanhar um táxi.
    2. Ou talvez sejam aeroportos que, de tão assustadores, a gente vai evitar a todo custo.
    3. Quem sabe ainda ele tenha querido dizer que aeroportos “pelo mundo” são tão numerosos que a gente até perde a vontade de ir embora (de viajar).

Se você entendeu, parabéns pela argúcia. E não se esqueça de mandar carta para a redação. Agradecimentos antecipados.

Novilíngua – 3

José Horta Manzano

Foto publicada pelo Estadão, 14 dez° 2015

Foto publicada pelo Estadão, 14 dez° 2015

Este blogueiro é do tempo em que se tomava mais cuidado ao traduzir despachos chegados do estrangeiro.

Quanto aos vegetais comestíveis fotografados, faz oitocentos anos que têm nome genérico em nossa língua.

Quanto à metrópole indiana, foi batizada com nome próprio pelos primeiros portugueses que lá desembarcaram quinhentos anos atrás.

Revista e melhorada, a legenda da foto fica assim: “Vendedor de legumes espera por clientes em sua barraca num mercado de Bombaim, na Índia.”

Novilíngua – 2

Chamada do Estadão, 7 nov° 2015

Chamada do Estadão, 7 nov° 2015

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que árvores se plantavam. Aparentemente, hoje se instalam. Há de ser consequência do desmatamento desenfreado.

Os mi[ni]stérios brasileiros

Myrthes Suplicy Vieira (*)

by Lezio Jr, desenhista paulista

by Lezio Jr, desenhista paulista

Não escapa à sensibilidade de ninguém a má vontade e a acidez das críticas com que muitos de nossos concidadãos avaliam o desempenho do atual quadro ministerial, induzidos talvez por pura e simples má-fé ou movidos pela inveja da capacidade criativa de nossa atual mandatária. Nem mesmo a recente reforma ministerial escapou da negatividade da ótica dessas pessoas, que chegaram a alegar que ela se deveu a motivos espúrios que nada têm a ver com os interesses nacionais. Basta de tanto catastrofismo, chegou a hora de fazer justiça.

Hoje, ao ler o desabafo que nossa amada líder fez ao final de sua primeira reunião com a nova equipe ministerial, afirmando que está em curso uma tentativa de “golpe democrático à paraguaia”, não pude mais me conter. Desolada, decidi, por isso, estender a mão aos ilustres defensores da democracia à brasileira e ajudar a explicar aos não iniciados como funciona a versão tupiniquim desse sistema de governo.

Lingua 1Em primeiro lugar, é preciso destacar que nossos aguerridos democratas à brasileira justificam suas ações numa “novilíngua” que, embora guarde semelhanças com a língua portuguesa, tem conotações um tanto diversas para cada vocábulo. Já nos deparamos com preciosos exemplos desse novo idioma proferidos por nossa líder máxima, como “isso é uma panaceia que não vai funcionar” e “não vamos estabelecer uma meta e aí, quando atingirmos a meta, vamos dobrá-la”.

Eolienne 1Por estes dias, circula no Facebook um vídeo em que nossa estimada presidenta acrescenta mais uma pérola a esse inventivo dicionário. Lamenta ela, em um discurso, que ainda não se tenha descoberto um modo de “estocar vento”. Referia-se ela, obviamente, ao fato de que, embora seu governo seja a favor de transferir parte do investimento na matriz energética para a energia eólica, ainda está às voltas com alguns obstáculos incontornáveis.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Acompanhemos seu raciocínio: ao contrário da água que pode ser armazenada para enfrentar dias mais difíceis, disse ela, ainda não se descobriu um modo de estocar vento, dado o caráter oscilante dessa força da natureza. Como ela mesma fez questão de ressaltar, “tem hora que venta mais e tem hora que venta menos, às vezes venta mais à noite, por exemplo”. Talvez por uma questão de pudor, ela tenha omitido os apuros tecnológicos enfrentados pelos cientistas brasileiros para capturar o vento e aprisioná-lo em um contêiner, preservando ao mesmo tempo toda sua potência segundo a segundo.

by Geraldo 'Passofundo' Fernandes desenhista gaúcho

by Geraldo ‘Passofundo’ Fernandes
desenhista gaúcho

Foi tendo em mente tais exemplos que me ocorreu que é provável que tenham escapado à atenção da legião de detratores do governo outros sofisticados exemplares dessa nova forma de pensar – e nomear – a realidade nacional. Valho-me da ajuda de Lacan para apontar os mais recentes vocábulos:

Interligne vertical 16 3Ke● A reforma ministerial foi “legítima” porque feita às claras e no intuito de defender o ajuste fiscal, ainda que possa implicar aumento de despesas para garantir a tão necessária “fidelidade” da base aliada ao programa de governo;

● os cortes programados no Ministério da Educação, no da Saúde e em vários programas sociais representam apenas uma estratégia “temporária”, necessária para enfrentar a crise “internacional” com realismo – crise essa que está próxima do fim, uma vez que “já estou vendo luz no final do túnel”;

● o mesmo pode ser dito em relação à necessidade de reintrodução da CPMF, seja porque é o “imposto que menos impacta a inflação”, seja porque “vai valer só por uns quatro anos”, seja porque “ninguém vai sentir” o peso no próprio bolso, dado o “propósito nobre” de financiar a saúde, e seu caráter “democrático”. Para reforçar a confiança dos crédulos quanto ao último item, o governo até mesmo se dispõe a estudar “isenção” para os contribuintes de baixa renda;

● finalmente, as frases mais enternecedoras da novilíngua democrática brasileira, proferidas por nossos dois últimos mandatários: “Eu não sabia”, “Tomei a decisão baseada em dados incompletos”, “Nunca antes na história deste país se investigou tanto”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.