Circo que não diverte

José Horta Manzano

Num país onde:

●  jovens saem da escola sem saber ler, escrever nem contar,

●  cinquenta mil pessoas são assassinadas a cada ano,

●  todos já foram assaltados ou conhecem alguém que já foi,

●  falta esparadrapo em postos de saúde,

by Ivan Cabral, desenhista potiguar

●  metade das casas não contam com saneamento básico,

●  quinze milhões estão desempregados (sem contar os que não aparecem nas estatísticas),

●  drogas ilícitas pululam enquanto enfermos morrem por falta de drogas lícitas,

●  secas e inundações ainda matam gado e gente,

●  gente honesta vive enjaulada em casa enquanto bandidos correm soltos,

●  a disparidade financeira entre ricos e pobres continua escandalosa,

●  multidões vivem em favelas ou ao relento,

perder tempo, esforço e dinheiro discutindo a suspensão da imunidade do presidente é, no mínimo, indecente.

São todos cúmplices nesse midiático crime de lesa-pátria: desde o procurador-geral da República até o mais obscuro deputado. Não ouvi nenhuma voz se levantar para exprimir revolta pelo absurdo da situação. A quase totalidade dos parlamentares valeu-se do minuto de glória em causa própria, como se num palanque estivessem. Apesar das palavras comoventes, não senti nenhuma reprovação contra o circo. Todos subiram ao picadeiro e aceitaram o papel de palhaço.

Crime de responsabilidade é uma coisa; crime comum é outra. Doutora Dilma, acusada de maquiar contas públicas, cometeu crime contra a nação, inclusive contra os que nela votaram. Foi julgada, condenada e destituída. Doutor Temer é acusado de crime comum. Dizem que é ladrão e corrupto, como tantos outros. Pode até ser. Assim mesmo, enquanto estiver na presidência, a lei o preserva. No dia em que passar a faixa ao sucessor ‒ e falta menos de ano e meio ‒ retornará à condição de cidadão comum. Será então chegado, para ele, o momento de responder pelas acusações.

Proponho que se institua um cursinho obrigatório, com duração de algumas semanas, destinado a deputados, senadores, procurador-geral & congêneres. Lá aprenderão o funcionamento básico das instituições. Só assumirão o cargo os que forem aprovados no exame de fim de aprendizado. Que tal?

Frase do dia — 234

«As obras não iniciadas ou atrasadas em 57% da rede de saneamento básico no Brasil passaram a ser a metáfora pronta ao alcance do nariz.»

José Nêumanne Pinto, escritor e jornalista, em artigo publicado no Estadão de 8 abr 2015. Em matéria de ironia, a frase é um primor.