Ômicron x oméga

José Horta Manzano

Uma das características dos vírus é ter mutações frequentes, até em ritmo diário. O corona, causador da atual epidemia, não escapa a essa realidade. Cientistas do mundo inteiro transmitem à OMS as informações sobre as novas cepas de covid-19. Elas são então catalogadas e recebem um nome. A denominação é geralmente um código complicado, difícil de memorizar, composto de letras e números, não apropriado para difusão entre o grande público.

Toda cepa de periculosidade maior, que representa ameaça importante para o homem, tem direito a receber um nome especial. No caso do vírus que causa a covid-19, ficou decidido dar, a essas cepas perigosas, nome seguindo o alfabeto grego. Isso evitou dar-lhes o nome do país onde haviam surgido, o que podia ser estigmatizante.

A variante B.1.1.7, que foi primeiro identificada na Grã-Bretanha e que estava sendo chamada de “variante britânica” tornou-se Alfa. A cepa B.1.351, que apareceu na África do Sul, virou Beta. A variante P.1, chamada no princípio de “variante de Manaus” ou “variante brasileira”, tornou-se Gama. E assim por diante.

A série de cepas preocupantes, que começou em Alpha, já correu boa parte do alfabeto (Épsilon, Zeta, Eta, Theta, iota, Kappa, Lambda, Mu, Nu, Xi) e acaba de chegar ao Ômicron, que é a 15ª letra.

É curioso notar que o alfabeto grego tem as letras Ômicron e Oméga (que é, aliás, a última da lista). Ambas são de origem antiquíssima: provêm do alfabeto dos fenícios e, procurando mais longe, desconfia-se que derivem de certos hieróglifos egípcios.

Ômicron, “o pequeno” ou “micro o”, é composto de o + micron. Oméga, “o grande” ou “mega o”, é composto de o + mega. Essas partículas gregas são usadas frequentemente em nossa língua com o mesmo sentido de “grande” ou “pequeno”: megaevento, megaestrutura, microempresário, microfibra.

Esperemos que Ômicron faça jus a sua partícula e não nos cause senão “microperigos”. Em matéria de “megaproblemas”, já temos um híper, incrustado lá no Planalto. Já basta.

Vírus brasileiro

 

José Horta Manzano

Os jornais televisivos desta terça-feira abriram todos com a notícia principal: a França fecha seus aeroportos para todo voo proveniente do Brasil. Dos países com os quais temos relações mais próximas, três já tomaram medida idêntica – França, Portugal e Reino Unido.

Não estou familiarizado com viagem em jatinhos executivos, mas imagino que a restrição lhes diga respeito também. Pelo jeito, deve ter por aí muita gente fina aborrecida por não poder mais dar um pulinho a Paris pra degustar um croissant fresquinho saído do forno de uma boulangerie.

Emissoras de rádio e de tevê têm feito programas especiais com entrevistas e mesas redondas em torno das quais se discute a periculosidade da variante brasileira do coronavírus e os meios de evitar sua propagação.

No Brasil, adeptos de teorias complotistas juram de pés juntos que essa variante mais peçonhenta do vírus veio direto da China, desenvolvida por comunistas malvados cuja única intenção é derrubar nosso presidente, para poderem em seguida dominar o mundo. Por seu lado, gente com a cabeça no lugar começa a considerar uma origem interna. A nova cepa teria conseguido desenvolver-se em nosso país justamente por encontrar aqui terreno propício.

Ainda é cedo pra apontar culpados. Vamos esperar que a pesquisa científica tire as devidas conclusões. (A não ser que a CPI o faça…) A tese de que a variante brasileira teria nascido no Brasil mesmo faz sentido. A contínua sabotagem com que o capitão nos brindou desde a chegada da pandemia – com recusa de distanciação social, de máscara e de confinamento – criou terreno fértil para mutações aceleradas do vírus.

Enquanto não se determina com exatidão a origem do novo patógeno, o que se percebe é mais uma picaretada na rápida destruição da imagem do Brasil no exterior. Essa descida de nosso país ao limbo dos ‘emergentes que não conseguem emergir’ é efeito secundário indesejável do ambiente tóxico que se instalou em terras nacionais.

Euclides da Cunha disse que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Tomando como gancho o pensamento do escritor, pode-se dizer que todo brasileiro conservou, lá no fundo do peito, a alma forte do sertanejo. Todavia, a conjunção Bolsonaro + pandemia é dose pra leão. Não sei se vai dar pra aguentar.

Observação
Está chegando a hora em que as redes devotas vão ter de se render à evidência. O “vírus chinês” se naturalizou e procriou. Os filhinhos, todos nascidos em território nacional, são gente de casa. Recusam-se a ser tratados como estrangeiros. Cada um deles é agora um legítimo vírus brasileiro.

Eles lá e nós aqui

José Horta Manzano

As variantes britânica, sul-africana e brasileira do coronavírus estão fazendo estrago feio na Europa. A Itália é bom exemplo do fenômeno. Em março-abril de 2020, sofreram a primeira investida da epidemia. Foi aquele caos que assustou o mundo, período em que caixões eram transportados em caminhões do Exército, de madrugada, que era pra não aterrorizar a população. (Ficou ainda mais sinistro.)

O confinamento (que também responde pelo charmoso nome estrangeiro de lockdown) durou mais de dois meses durante os quais todos tiveram de ficar trancados em casa. Lá pelo fim de maio, a doença deu uma trégua, veio o desconfinamento e todos pensaram que o pior tinha passado. Ilusão.

Com o verão, vieram as férias e, com elas, os ajuntamentos, os beijos e os abraços. Não deu outra: no mês de outubro, o bichinho mostrou que não morre tão fácil assim. Voltou com força. As autoridades hesitaram em reconfinar a população. O vírus aplaudiu de pé. A partir daí, a curva de contaminações oscilou, numa gangorra angustiante, hoje sobe, amanhã desce, depois sobe de novo.

As medidas de proteção – desinfecção das mãos, distanciação social, máscara de proteção – ajudaram. E assim foi indo, até que passou o Natal e o novo ano trouxe a vacina. Todos imaginaram que estava aparecendo a luz no fim do túnel. O que ninguém previu foi que a vacinação seria tão lenta e que surgiriam variantes bem mais contagiosas da doença.

Nestas últimas semanas, a contaminação tem se alastrado em alta velocidade. As UTIs estão de novo lotadas. Pacientes em estado grave estão sendo transferidos para outras regiões do país. Que fazer?

Depois de hesitar, não houve jeito. Aconselhado pelas autoridades sanitárias, o governo italiano decretou novo confinamento, válido para o país inteiro com exceção da Sardenha (que é uma ilha). As regras são as mesmas que no ano passado: liberdade de ir e vir fortemente entravada, comércio fechado, proibição de todo deslocamento que não seja por motivo de trabalho ou de saúde.

O período de penitência começa nesta segunda-feira 15 de março e vai até a Páscoa. É como se a população inteira tivesse de usar tornozeleira eletrônica – sem direito a habeas corpus.

Enquanto isso, numa terra chamada Brasil, continuamos a brincar com fogo. Atiçados por um presidente que é vítima de manifesta perturbação mental, cidadãos se apinham em praça pública para exigir abertura do comércio. Agem como se fosse possível espantar o vírus no grito. Vestem verde-amarelo como se isso lhes conferisse legitimidade. “Brasileiros somos nós; o resto são comunistas!”, parecem querer dizer.

Sinto tristeza ao assistir a esse tipo de espetáculo. Me dá muita pena ver que, em pleno século 21, ainda se encontra gente que acredita num salvador da pátria. Tanto esses que agora se esgoelam por Bolsonaro quanto aqueles que antes se engalfinhavam por Lula ou por Dilma são apóstolos de seitas que não combinam com nosso tempo. Essa gente devota, que engole tudo o que seu mestre mandar, mostra falta de discernimento, incapacidade de pensar com a própria cabeça e de captar a realidade.

Uma lástima. Graças a eles, continuamos firmes em nossa trilha para transformar o país no foco mundial de irradiação da covid. O distinto aceita um comprimido de cloroquina?

Reinfecção

José Horta Manzano

Enquanto nossos míopes e empacados terraplanistas tupiniquins persistem em desdenhar do coronavírus tratando-o de «vírus chinês», a nomenclatura internacional já se alargou.

A turma dos devotos, naturalmente, não ficou sabendo. Isso ocorre por eles viverem em comunidade fechada e terem como fonte única de informação as notícias falsas que circulam entre eles em circuito fechado. O único complemento de informação que lhes traz algum enriquecimento são as prodigiosas lives presidenciais. O empacamento fica, assim, explicado.

Além-fronteiras, a imagem da China como lugar de origem da epidemia já começa a se dissipar, substituída pela preocupação com as novas variantes surgidas de mutações do vírus.

Essas variantes já receberam nome. Como o vírus ‘chinês’ do ano passado (que, aliás, ninguém sabe até hoje como apareceu), estas novas cepas são conhecidas como ‘britânica’, ‘sul-africana’ e ‘brasileira’.

Para a variante britânica, já ficou acertado que as vacinas que estão sendo aplicadas na Europa (Pfizer, Moderna e Astra-Zeneca) são eficazes. Para as variações brasileira e sul-africana, no entanto, a eficácia das vacinas ainda está sendo estudada. O que se sabe é que ambas as mutações são mais contagiosas que o vírus originário. Suspeita-se que até quem já teve covid pode ser reinfectado por uma dessas novas variantes. Formidável problema.

Pode ser apenas coincidência, mas é interessante notar que as variantes se desenvolveram em países que, no início, desdenharam da epidemia e deixaram o vírus correr à solta. Reino Unido e África do Sul se emendaram, mas o Brasil oficial continua fazendo pouco caso. Vamos ver no que dá.

PT ou BR

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 jun 2015

Ortografia 2Dia 13 de maio, comemoramos a Lei Áurea, que pôs fim à escravidão oficial e entrou para a hagiologia nacional. Em Portugal, o 13 de maio celebra a Virgem de Fátima. Este ano, porém, um clamor quase empanou o fervor. É que, justamente nesse dia, entrou oficialmente em vigor, em terras lusas, a grafia determinada pelo Acordo Ortográfico alinhavado em 1990 pelos integrantes do clube lusófono.

No Brasil, a resistência ao AO90 foi pouca, não passou de protestos frouxos. O adiamento da entrada em vigor, programada agora para o fim deste ano, nem tinha razão de ser. Na prática, Inês é morta: a nova grafia já mandou a antiga às favas.

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

Mais do que pelo sol tropical, o brasileiro tem o couro curtido pelas lambadas que levou ao longo dos séculos. Revoluções, golpes de Estado, implantação e supressão súbita de leis, reviravoltas políticas repentinas e constantes, insegurança jurídica causam aflição crônica. Com paciência beneditina e resignação bovina, aprendemos a engolir pronunciamientos e a lidar com eles. Dançar conforme a música não é, entre nós, mera figura de estilo.

Calejados por sucessivas reformas ortográficas, não opusemos grande resistência a essa enésima modificação. O que mais nos incomoda é o pouco tempo que tem decorrido entre remodelações. Pessoas que, em 1990, tinham 55 anos ou mais viram-se obrigadas a aprender a escrever pela quarta vez! Alfabetizadas pela antiga grafia pseudoetimológica, já tinham sido forçadas a se adaptar à reforma de 1943 e à de 1971. A de 1990 amolava, sim, ainda que o desconforto não se tenha convertido em rebelião.

Orthographia 1Já em Portugal, a perspectiva de alterar hábitos de escrita encontrou oposição vigorosa. A resistência não se prendia aos mesmos motivos que provocavam mau humor no Brasil. O problema estava mais para orgulho ferido que para simples aborrecimento.

De um século para cá, houve numerosas tentativas de harmonização da escrita entre Brasil e Portugal. Nenhuma vingou. Em 1907, a Academia Brasileira de Letras propôs novas regras, que não foram seguidas nem mesmo no Brasil. Em 1911, Lisboa alterou profundamente a escrita – mas a novidade só valeu para Portugal. Em 1931, nova tentativa de aproximação gorou. O Brasil fez grande reforma em 1943, ignorada por Portugal. Em 1945, foi a vez de Portugal remodelar sua escrita, sem que o Brasil acompanhasse.

Placa 15O AO90 propunha-se a acertar o passo desse fado do linguista doido. Mas a medida – ressentida em Portugal como insuportável intromissão estrangeira na língua, um crime de lesa-pátria, um terremoto – mexeu com os brios da nação e levantou protesto maciço. Nem a finalidade explícita da reforma, a unificação da língua escrita, aplacou os ânimos.

Conceda-se que, em Portugal, a reforma desfigura uma batelada de palavras de uso frequente, o que explica a grita, os libelos inflamados e a objeção indignada. Gente de peso, figuras públicas, escritores, políticos, linguistas opuseram-se ostensivamente às novas regras. Blogues de resistência cívica continuam na luta ainda agora.

Peço ao distinto leitor a amabilidade de lançar uma vista a estes dois fragmentos.

Interligne vertical 12«Minha mulher a dias, que labuta asinha mas esbanja lixívia em sanitas e autoclismos, queixou-se do novo lanço com portagem que lhe cabe enfrentar, com a carrinha, na hora de ponta. Posto que o trecho tenha ficado giro, sabe a desperdício. Deixa a molesta sensação de cobres terem sido deitados fora.»

«O abaixo assignado promette aos seus freguezes que todas as encommendas effectuar-se-hão com a maior promptidão e exactidão. Tambem encarrega-se de n’ellas ageitar quaesquer eventuaes concertos.»

O primeiro parágrafo, que segue escrupulosamente as normas do AO90, foi escrito em português europeu. Qualquer cidadão luso o lerá sem perder uma palavra. O segundo trecho, calcado em anúncio publicado num jornal brasileiro faz 150 anos, foi grafado no estilo antediluviano da época – mas em português do Brasil.

by Alexandre Affonso, desenhista

by Alexandre Affonso, desenhista

Essas duas passagens mostram que, para a mútua compreensão, pouco conta a grafia. Ainda que se alcançasse a harmonização, o efeito seria o de emplastro em perna de pau. Por mais que se reforme a escrita, a variante europeia e a brasileira seguirão, impávidas, inexorável rota de afastamento.

Pragmáticos e despidos de exaltações nacionalistas, softwares continuam a oferecer ambas as variantes: português-pt e português-br, à escolha do freguês. O AO90 ilustra a desabusada tirada de Horácio: «Parturient montes, nascetur ridiculus mus» – a montanha pariu um ridículo camundongo.