Madame e os frangos do Brasil

José Horta Manzano

Como lembrei anteontem, estamos entre os dois turnos das eleições presidenciais francesas. Ontem realizou-se o grande debate, o único organizado entre os dois finalistas. Foram duas horas e meia de perguntas, respostas, explicações, afirmações, aproximações, esgueiradas, maldades, dardos envenenados, sorrisos desajeitados.

Cada um dos candidatos – o atual presidente, Emmanuel Macron e a candidata de extrema-direita, Marine Le Pen – deu o que tinha pra dar, fez o que sabe fazer e representou o papel que costuma representar. Foi sem surpresa. O medidor de audiência marcou 15,6 milhões de telespectadores, aos quais convém acrescentar os que, em algum momento, deram uma espiada nas redes sociais, que também transmitiam ao vivo.

Pra se ter uma ideia de quanto tem baixado o interesse público por esse tipo de confrontação, é bom saber que o primeiro debate, travado em 1974 entre Mitterrand e Giscard d’Estaing, tinha reunido 30 milhões de telespectadores – o dobro da audiência de ontem.

Mas o diálogo entre os adversários, às vezes polido, às vezes ácido, sempre traz algum momento interessante. Uma passagem impagável surgiu quando Madame Le Pen criticava o funcionamento da União Europeia, cavalo de batalha que ela costuma montar com frequência. Adepta do fechamento de seu país para o mundo, ela deprecia a Europa dia sim, outro também.

Madame Le Pen (de estreita visão nacionalista-passadista) acusou Monsieur Macron (europeísta convicto) de ter intenção de “substituir o povo francês pelo povo europeu”. E continuou argumentando que há “uma série de políticas da UE com as quais não estou de acordo”. Citou “a multiplicação de acordos de livre-comércio que servem para vender carros alemães e castigam os agricultores franceses com a concorrência de frangos do Brasil ou bovinos do Canadá”.

Nesse ponto, Monsieur Macron percebeu que Madame – por ignorância ou má-fé – misturava alhos com bugalhos. Perguntou: “Que frango do Brasil?”. E lembrou à distraída adversária que ele tinha se oposto ao acordo da UE com o Mercosul, porque “quando impomos certas exigências aos agricultores nacionais, exigimos o mesmo dos de fora”. Diante do silêncio embaraçado da adversária, acusou Madame Le Pen de “tentar vender gato por lebre”.

É verdade que, enquanto Macron é dotado de uma inteligência superior à média, sua adversária se limita à esperteza dos populistas: diz o que a audiência quer ouvir. Mas uma coisa é falar num cercadinho qualquer para público cativo, e outra é argumentar diante de um homem que está há cinco anos lidando diariamente com esses temas. Não tem como.

Observação
A história dos “frangos do Brasil”, que Madame pôs à mesa, rendeu pano pra mangas e fez a alegria das redes sociais. Nos momentos seguintes, houve milhares de comentários, menções, tuítes, retuítes, likes & alia. A maioria dos comentaristas dizia não saber do que ela estava falando.

Le grand débat

José Horta Manzano

Nesta quarta-feira, os dois finalistas da eleição presidencial francesa se enfrentam no único debate televisivo a ser travado antes do segundo turno. Na França, o espaço entre o primeiro e o segundo turnos é de apenas 2 semanas. A votação final é domingo que vem.

Antes do primeiro turno, há alguns debates. No entanto, a grande quantidade de candidatos (12 ao total) transforma o ambiente em verdadeiro mercado persa. Todos falam e ninguém se entende. Aliás, o presidente Macron não quis participar de nenhum desses combates engalfinhados.

O debate organizado entre os dois turnos, unicamente com os dois finalistas, é um momento intenso na vida política do país. Entre 15 milhões e 20 milhões de eleitores devem escrutar com grande atenção o face a face entre o presidente Emmanuel Macron, candidato à reeleição, e Marine Le Pen, sua adversária de extrema-direita. Ninguém quer perder nem uma palavra.

O formato
O espetáculo tem duração de 150 minutos (2 horas e meia). A moderação é feita por dois apresentadores, um de cada um dos dois canais mais importantes do país. Até os dois campos chegarem a um consenso, diversos apresentadores foram descartados.

Os acertos prévios são negociados entre as equipes dos dois candidatos. Tudo é milimetrado e cada detalhe tem de ser aprovado pelas duas partes. Cada candidato vem com uma equipe de uma dúzia de pessoas. A quantidade de câmeras e o ângulo delas é discutido.

As duas equipes concordaram em regular a temperatura do estúdio em 19°C. A ordem dos temas é sorteada. É também a sorte que decide quem será o primeiro a falar. Cada equipe leva seu profissional experiente em direção de tevê, com a função de se instalar atrás do vidro e supervisionar as tomadas de cena. Nada é deixado ao acaso.

Não está provado que o debate defina o vencedor da eleição, mas, em anos como este, em que as sondagens preveem resultado apertado, todo cuidado é pouco. Um escorregão, um deslize, uma frase mal colocada, um gesto agressivo, um gaguejo, uma verdade aproximativa, uma gravata mal posicionada, uma maquiagem exagerada ou insuficiente podem ser fatais. O resultado das urnas será conhecido domingo às 20 horas em ponto.

Anti-europeísmo
Como muitos outros observadores, este blogueiro acredita que uma vitória de Madame Le Pen seria catastrófica para a Europa e, de tabela, para o resto do mundo. O nacionalismo da candidata é do tempo do Onça, cada país no seu canto, todos desconfiando de todos, todos com medo de todos. Seu anti-europeísmo é tão visceral que, se ela tomasse as rédeas da França, a Europa deixaria de existir tal como a conhecemos. Se isso acontecesse, os frágeis equilíbrios geopolíticos atuais estariam a perigo.

Não se sabe se essa senhora realmente acredita no que diz ou se procura apenas seduzir, com seu discurso populista, o maior número possível de descontentes. O fato é que ela defende valores anacrônicos, passadistas. Seu sonho final é ver a França fora da União Europeia. Ela não diz isso com todas as letras, mas as medidas que pretende tomar, se eleita, levam a esse desfecho.

Quer que a França abandone a moeda comum, o euro, e volte ao finado franco francês, uma absurdidade. Quer entravar a livre circulação dos cidadãos, uma conquista que levou décadas pra ser alcançada. Gostaria de ressuscitar fronteiras, cercar, murar, fechar, barrar, instalar postos alfandegários em torno do país. Outro de seus sonhos é implementar políticas de expulsão de estrangeiros. É bom lembrar que uma Europa sem a França vai ter dificuldade em seguir adiante, daí o abalo que o continente sentiria.

Putin sim, Bolsonaro não!
Madame é admiradora de Vladímir Putin. No passado, chegou a declarar que gostaria de ver a França fora da Otan, e aliada militarmente à Rússia – declaração que pega muito mal atualmente. É aliada do líder populista húngaro Viktor Orbán.

De Bolsonaro, porém, não quer ouvir falar; já declarou isso quando o capitão era ainda candidato à Presidência. Entrevistada naquela ocasião, Madame teve um raro momento de lucidez e desvencilhou-se da imagem de Bolsonaro. Quando lhe disseram que o então candidato à Presidência do Brasil era do mesmo campo político que ela, respondeu que não faz sentido etiquetar “de extrema direita” qualquer político que disser “coisas desagradáveis”.

Como se vê, a tradicional extrema direita não considera que o capitão faça parte de seu time. Já entenderam, lá atrás, que o homem é apenas rasteiro, oportunista, mal-educado e mal-intencionado. Muitas vezes quem está fora tem visão mais clara do que quem está dentro. Pra você ver.

São Benedito (Saint Benoît, em francês) é santo forte e não há de faltar. Nem a eles, nem a nós.

Eolianas

José Horta Manzano

Em 1898, quando um certo senhor Hand Hansen, cidadão dinamarquês, adquiriu um pequeno estabelecimento familiar de fundição, sua intenção era apenas continuar a usar a forja para fabricar pregos e ferraduras. De fato, numa época em que a eletricidade era novidade, ele não tinha como imaginar que, 120 anos mais tarde, sua minúscula empresa teria evoluído tanto, e justamente nesse novo e misterioso ramo.

Passando pela construção de guindastes, já em meados do século 20, o negócio foi crescendo até assumir as gigantescas proporções atuais. A empresa, que hoje se chama Vestas, é a campeã mundial no ramo de construção de turbinas eólicas, com faturamento anual que supera os 12 bilhões de euros.

Aqui cabe uma digressão linguística. A turbina eólica é conhecida como “wind turbine” (=turbina de vento) em inglês. Em italiano, recebe o nome de “pala eolica” (=pá eólica). Windkraftanlage (=instalação [que explora] a força do vento) é o nome alemão. Os franceses escolheram um nome simples e poético: “éolienne” (=eoliana).

A palavra eolina não serve porque já está ocupada. No campo musical, dá nome a um pouco conhecido instrumento de sopro, que lembra um pequeno acordeom, mas é acionado pela força dos pulmões. É raro, mas existe.

Com tanto vento à disposição (e com o petróleo cada dia mais caro), o Brasil está despertando para a urgência de instalar parques eólicos, tanto em terra firme, quanto ao largo da costa. Espero e acredito que essas decisões não dependam da sanção do capitão, se não, estamos perdidos. Ignorante, é capaz de não entender a ameaça que pesa sobre a dependência de combustível fóssil.

Esta semana, a Enel – antiga estatal italiana de eletricidade, hoje privatizada – anunciou a inauguração da primeira parte de um projeto eólico realizado no Rio Grande do Norte. São 50 turbinas que geram 206 megawatts, energia suficiente para suprir as necessidades de meio milhão de habitantes.

Por seu lado, a dinamarquesa Vesta, herdeira da pequena forja que Senhor Hansen comprou 120 anos atrás, anunciou estar projetando a maior turbina eólica jamais construída. O protótipo leva o pouco poético nome de V236-15MW.

Suas dimensões são impressionantes: culmina a 300 metros de altura, com 3 pás de 100m de comprimento cada uma (mais que um gramado de futebol padrão Fifa). A capacidade da instalação será de 15 megawatts/hora, quase cinco vezes superior ao de uma turbina comum.

Uma única dessas gigantescas “eolianas” será capaz de suprir o consumo de 20 mil lares (60 a 100 mil habitantes) e deixar de lançar na atmosfera 38 mil toneladas de carbono por ano, que resultariam da queima de combustível fóssil. A primeira já foi encomendada para funcionar ao largo da costa dinamarquesa.

O perigo
O distinto leitor certamente já ouviu falar em Madame Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen. A família domina a paisagem da extrema-direita  francesa há 40 anos. O pai já foi, mais de uma vez, candidato à Presidência. Numa das vezes, chegou ao segundo turno. A filha idem: nas últimas eleições, disputou o segundo turno e acabou perdendo para Emmanuel Macron.

Como todo extremista, tanto de esquerda como de direita, Madame tem certas deficiências de raciocínio. É curioso, mas é assim: nenhum extremista consegue alcançar um patamar razoável de bom senso. Ficam todos na vociferação improdutiva.

Desde os anos 1960, a França decidiu apostar na energia nuclear para a produção de energia. É um sistema eficiente, porém arriscado. Mais e mais vozes se levantam para pedir reorientação da filosofia nacional, a fim de que o nuclear seja pouco a pouco abandonado e o país dê preferência a energias renováveis.

Pois acredite quem quiser: Madame Le Pen já propôs que todas as turbinas eólicas francesas sejam desativadas e desmontadas. Só não explicou como fazer para substituir a energia que deixará de ser gerada. O vento vai acabar varrendo suas ilusões – é o que esperam os franceses de bom senso.

O Brasil está sendo governado por um capitão extremista, dono de tantos defeitos que seria cansativo repeti-los aqui. Já pensou se, amanhã, um desses gurus que o cercam inventa de convencer o bobão de que turbina eólica não serve, e que bom mesmo é usina térmica movida a lenha?

Bye bye, Amazônia!

Bolsonaro & Bannon no mesmo saco

José Horta Manzano

Nascido no início dos anos 1970, o Front National (Frente Nacional), partido francês de extrema-direita, foi presidido durante décadas por Jean-Marie Le Pen, um dos fundadores. Polemista e provocador por natureza, o patriarca imprimiu ao partido a marca da pópria personalidade. O dirigente nunca se preocupou em disfarçar o caráter extremista da agremiação. No fundo, não acalentava ambições presidenciais. Contentava-se com ser um partido destoante e livre de amarras que lhe tolhessem a liberdade de permanecer ad æternum na oposição.

Com a velhice batendo à porta, o velho dirigente concordou que era hora de passar o bastão. Em 2011, fez o que se costuma fazer em organizações de vocação autoritária e dinástica: passou a coroa à própria filha. Exatamente como costuma ocorrer em Cuba ou na Coreia do Norte. Madame Le Pen, a filha, tinha outras ambições para o partido. Não se conformava em continuar à margem do tabuleiro político. Queria tornar sua legenda respeitável e capaz de guindá-la um dia à Presidência da República.

Quando o pai se tornou incômodo, com suas declarações insolentes e provocadoras, madame não teve dúvida: expulsou-o do partido. No ano passado, dando continuação ao saneamento da imagem, mudou o nome da agremiação. Em manobra bastante utilizada no Brasil – e bastante eficaz, diga-se – o Front National tornou-se Rassemblement National (Agrupamento Nacional).

Marine Le Pen e Steve Bannon
Em 2018, ao tempo em que andavam aos beijos e abraços

No ano passado, quando doutor Bolsonaro ainda fazia campanha para a Presidência, madame foi entrevistada na televisão francesa. O assunto eram as relações entre seu partido e signor Salvini, vice-primeiro-ministro da Itália. A entrevistadora quis saber o que madame Le Pen achava do então candidato a presidente do Brasil. Sabedora de que Bolsonaro, já à época, dizia muita besteira e ofendia muita gente, ela tirou o corpo fora. «A cada vez que alguém diz coisas desagradáveis, é logo etiquetado como de extrema direita» – foi o que disse. E continuou, sutil, a insinuar que maus modos são coisa de gente subdesenvolvida. E que não compactuava com esse tipo de indivído. E tome!

Marine Le Pen deu surpreendente demonstração de coerência e de lucidez estes dias. Ela está envolvida até o pescoço na atual campanha de eleição de deputados ao Parlamento europeu. Steve Bannon – aquele teórico de extrema-direita que foi homenageado com um jantar por doutor Bolsonaro quando de sua primeira visita aos EUA – andou metendo o bedelho na campanha. Insinuou estar envolvido na luta para eleger deputados do partido de madame. Como já tinha feito com doutor Bolsonaro, madame Le Pen afastou esse cálice. Declarou, a quem quis ouvir, que Steve Bannon «não é seu conselheiro político». E tome de novo!

Como se vê, a dirigente de um dos principais partidos de extrema-direita da Europa (e do mundo) rejeita, com gesto decidido, tanto Bolsonaro quanto Bannon. Mostra que não os considera dignos de sentar-se à mesa com ela. Enquanto isso, os dois rejeitados se encontram, confraternizam e elevam o cálice à saúde. Saúde de quem mesmo?

Bando de cagão

José Horta Manzano

Tinha previsto algum escrito mais ameno pra este domingo. Mas certas notícias deixam de olho arregalado e pedem reação imediata. Não dá pra deixar esfriar.

É de conhecimento de todos que doutor Bolsonaro está de viagem pra Washington para visitar Mister Trump. Até aí, nada de extraordinário. Com as facilidades atuais de transporte, encontros entre chefes de Estado se multiplicam, o que só pode ajudar. O problema, desta vez, é que um dos primeiros-filhos viajou um dia antes pra participar de encontro com duas personalidades. Um deles é senhor Olavo de Carvalho, apresentado como seu guru. O outro é nada menos que Steve Bannon, sulfuroso personagem, um dos maiores desafetos de Donald Trump. Mister Bannon é figurinha carimbada da extrema-direita internacional, ligado a personagens racistas e supremacistas como a francesa Marine Le Pen e o holandês Geert Wilders.

Todos sabem que o clã Bolsonaro age e trabalha em uníssono. Na hora do vamos ver, o presidente tende sistematicamente a tomar o partido dos filhos contra todos os que se situarem ao exterior da família. Já aconteceu até com o superministro Moro, humilhado e obrigado a voltar atrás numa decisão que havia tomado, pra satisfazer ao capricho de um dos bolsonarinhos. Portanto, a presença do primeiro-filho na homenagem prestada a Mr. Bannon equivale à presença do próprio presidente.

Aproveitar da visita a Trump pra se encontrar com um de seus declarados inimigos é descortesia, pra dizer o mínimo. É atitude desajeitada, fruto da falta de traquejo social e político que caracteriza o clã que nos dirige. É um passo que nada agrega de bom. Pior que isso, lança uma sombra sobre a visita presidencial. Seria como se um chefe de Estado estrangeiro, em visita a doutor Bolsonaro, decidisse visitar antes Lula da Silva na cadeia. É tapa na cara que pega mal pra caramba.

Nos EUA com Steve Bannon.
A foto é sugestiva. Para o caso de o governo não vingar, a porta de saída já está preparada lá no fundo.

Nem Mr. Trump ‒ que ninguém acusaria de ser moderado ‒ guardou muito tempo Steve Bannon em seu entourage. Por que raios o clã Bolsonaro faz questão de adotar figura que o próprio ídolo deles já descartou? A pergunta complementar é: por que é que fazem isso em público e à luz do dia?

Agora vamos falar do estranho título deste artigo. Não é de mim, é citação naturalmente. Quem me conhece sabe que sou avesso a palavras de calão. Não fazem o estilo da casa. Citei, no título, uma frase elegante proferida pelo guru do clã Bolsonaro. Falo de senhor Olavo de Carvalho, descrito ora como professor, ora como filósofo, escritor ou pensador. Referindo-se à suposta inação de doutor Bolsonaro quando atingido por críticas, ele disse textualmente: «Ele não reage porque aquele bando de milico que o cerca é tudo um bando de cagão, que tem medo da mídia». Que distinção, não é mesmo?

Fico imaginando um linguajar desse jaez na boca de ilustres filósofos que antecederam senhor Carvalho. De Santo Agostinho a Leibniz, de Descartes a Schopenhauer, não dá pra cogitar algum deles tratando uma classe inteira de cidadãos de «bando de cagão». Em público! Isso está mais pra bêbado boca-suja em conversa de botequim depois das dez da noite.

Na entrevista concedida a jornalistas, o guru foi mais longe e deu diagnóstico taxativo. Disse que, a continuar do jeito que vai, esse governo não dura mais que seis meses. Se realmente o governo for pro espaço, senhor Olavo de Carvalho terá dado contribuição consistente para tal desfecho.

Esse aí não é dos nossos!

José Horta Manzano

Como outras emissoras de tevê, France 2 ‒ o segundo canal francês pelo critério de audiência ‒ apresenta todos os dias um programa matinal de variedades que vai das 6h30 às 9h30, entremeado por entrevistas e notícias.

O bloco de entrevistas se chama Les 4 vérités ‒ As 4 verdades, dura uma dezena de minutos e recebe um convidado por dia. Nesta quinta-feira, foi entrevistada Marine Le Pen, presidente do Rassemblement National, o principal partido da extrema direita francesa. Ela foi finalista nas últimas eleições presidenciais, perdidas no segundo turno para Emmanuel Macron.

O assunto central da entrevista eram as relações entre Madame Le Pen e Signor Matteo Salvini, político de extrema direita e Ministro do Interior da Itália. Assim mesmo, logo na abertura, a entrevistadora quis saber que olhar lança a figura política francesa sobre doutor Bolsonaro, político de extrema direita (segundo a condutora da entrevista) que acaba de passar ao segundo turno das eleições brasileiras.

Decepcionaram-se os que imaginavam que Marine Le Pen fosse saltar sobre a ocasião de agregar um membro a seu clube de extremistas. Num surpreendente momento de lucidez, Madame afastou esse cálice. Disse que não vê por que Monsieur Bolsonaro seria um candidato de extrema direita. E aproveitou para alfinetar a mídia francesa: «A cada vez que alguém diz coisas desagradáveis, é logo etiquetado como de extrema direita».

Marine Le Pen durante entrevista ao canal France 2

Acrescentou que as falas desagradáveis de doutor Bolsonaro não podem ser transpostas tal e qual à França porque são fruto de um povo diferente, de uma história diferente, de uma cultura diferente. Ainda deu um pito: «Procuramos sempre julgar e avaliar o que acontece no exterior segundo nossa própria cultura. É um erro». (Foi maneira sutil de dizer que maus modos são coisa de gente subdesenvolvida.)

Completou ensinando que os votos dados a doutor Bolsonaro são um sinal de que o que preocupa os brasileiros é a insegurança. Mencionou nossos 60 mil homicídios anuais e comparou com os 700 assassinatos que ocorrem na França.

Na política francesa, Marine Le Pen não é vista como um luminar. Antes, seu fracasso estrondoso nas últimas presidenciais é atribuído ao desempenho desastroso que mostrou durante o último debate na tevê, quando enfrentou Monsieur Macron. Eu assisti e posso confirmar que foi constrangedor. Confusa e perdida em suas anotações, Madame lembrava doutora Rousseff.

No entanto, foi uma surpresa a lucidez da análise que fez da figura de doutor Bolsonaro. Diferentemente do grosso da mídia europeia, ela não considera que o candidato seja de extrema direita. Por não estar devidamente familiarizada com a Operação Lava a Jato, só falou em problemas de insegurança. Assim mesmo, repeliu a (falsa) ideia de que uma «onda de extrema direita» está varrendo o maior país da América Latina. Enxergou em nosso presidenciável apenas um indivíduo grosseiro. Ponto pra ela.

Esse negócio de direita e esquerda

José Horta Manzano

«O povo, de maneira geral, não entende esse negócio de direita e esquerda.»

Numa síntese feliz, doutor Marcio França, governador em exercício de São Paulo, matou o coelho. A entrevista saiu hoje no Estadão. Tem razão, o doutor. Enquanto em outras terras é primordial colar na testa de cada político a etiqueta do campo a que pertence, no Brasil a coisa não é tão rigorosa. Nosso panorama pluripartidário é menos rígido, bem mais ameboide.

Entre nós, o conceito de fidelidade partidária passa ao largo do Parlamento. Político que, no percurso ‘profissional’, já tiver mudado três, quatro ou cinco vezes de partido não será menos considerado que outro que tiver permanecido fiel ao primeiro amor. A fidelidade não agrega valor ao currículo de nosso homem público.

Uma foto icônica tirada faz uns cinco anos mostra doutor Haddad, um dos atuais pretendentes à Presidência, ladeado por Lula da Silva e por doutor Paulo Maluf. Sabe-se que o Lula é o símbolo maior da ‘esquerda’ brasileira, tal como a torcida caviar a enxerga. Por seu lado, doutor Maluf é, desde os anos 1970, a encarnação da adesão à ditadura, aos generais, a tudo o que, em qualquer cartilha, constitui a ‘direita’. Assim mesmo, poucos se escandalizaram com a imagem, tanto que doutor Haddad foi eleito, logo em seguida, prefeito da maior capital do País.

Tenho constatado, nestes dias que se sucedem ao primeiro turno das eleições brasileiras, grande preocupação por parte da mídia europeia. Artigos de fundo, mesas-redondas, entrevistas, debates se organizam em torno do resultado do voto de domingo passado. É unânime a opinião de que uma «maré conservadora» está lambendo as praias do país e ameaça tragar o território inteiro. É voz corrente que o Brasil se inscreve na crescente lista de países que se deixam enfeitiçar pelo canto de sereia da extrema-direita. Doutor Bolsonaro vem sendo comparado à francesa Marine Le Pen, ao italiano Matteo Salvini e até ao perigoso Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria.

Os europeus andam assustados com o crescimento de movimentos identitários, separatistas e xenófobos que pipocam por toda parte. Catalunha, Países Vascos, Itália do norte, Bélgica de fala holandesa, Escócia são regiões onde boa parte da população anseia pela independência. Movimentos independentistas somados a governos de extrema-direita compõem coquetel explosivo. Daí a preocupação que muitos sentem ao ver o Brasil descambar ‒ na análise deles ‒ para a perigosa ladeira do extremismo.

Enganam-se os que analisam dessa maneira. Se tendências extremistas há entre os dois finalistas de nossa corrida eleitoral, são mais marcadas no campo de doutor Haddad que no de doutor Bolsonaro. Para convencer-se, basta dar uma espiada no programa de governo preconizado pelo Partido dos Trabalhadores, uma proposta autoritária, estatizante, corporativista, excludente, racialista, liberticida, retrógrada. A rechaçar absolutamente.

Mas não tem jeito. Cada um enxerga o mundo através dos próprios óculos. É perda de tempo tentar ensinar a um europeu que o Brasil não é exatamente como ele imagina. E vamos em frente, que atrás vem gente.

A imagem do Quixote

José Horta Manzano

Estes últimos tempos, em razão das eleições, a mídia estrangeira tem falado um bocado do Brasil. Nosso país, embora seja um anão político e diplomático, está entre as dez maiores economias do planeta. Ainda que haja desigualdades abissais entre os cidadãos, a massa de consumidores torna o país economicamente atraente.

Na tevê, tenho assistido a debates, mesas redondas e entrevistas. Nos jornais, leem-se longas análises. Parecem sinceramente preocupados com o que as pesquisas indicam, mas devo constatar que, via de regra, erram no diagnóstico. É interessante notar que, para um observador não iniciado, o momento político brasileiro é impenetrável.

O europeu está formatado para enxergar um mundo político dual. Na sua visão, o que não é de direita, é de esquerda. E vice-versa. Fala-se em política de esquerda, deputado de direita, atitude de extrema esquerda, visão de extrema direita. E assim por diante, tudo encaixadinho nos moldes. Acontece que, no Brasil, sabemos que não é bem assim.

Em nossa terra, o nome do homem sempre contou mais do que filiação partidária. Há deputados que já mudaram sete vezes de partido ‒ e tudo bem, que ninguém está nem aí. Lula da Silva, por exemplo, está aliado ao mesmo tempo ao Partido Comunista e a Paulo Maluf. E ninguém vê nada de errado nisso. Pra cabeça de um europeu, é noite sem lua.

Vai daí, na Europa, todos tendem a etiquetar o PT de Lula da Silva como partido de esquerda, enquanto encaixam Bolsonaro como político de extrema direita. É compreensível que, partindo dessas premissas equivocadas, não cheguem a lugar nenhum. Simplesmente não entendem como é possível que respeitável parcela de eleitores brasileiros se estejam preparando a votar num homem de extrema-direita.

Nós sabemos que a verdadeira razão da enxurrada de votos que o deputado campineiro está pra receber vem do fato de ele haver cristalizado a imagem do Quixote que nos há de livrar do mal lulista. Podia chamar-se Bolsonaro ou Eufrázio Bartolomeu, tanto faz. Podia ser do norte, do sul ou do meio, tanto faz. Podia ser boa-pinta ou caspento, tanto faz. Podia ser um ás da oratória ou um tartamudo, tanto faz. O está valendo é que foi visto como o mais bem posicionado para botar pra correr Lula e os maus e males que o acompanham.

Por aqui, comparam Bolsonaro a Trump, numa analogia estapafúrdia. Comparam-no ainda à francesa Le Pen ou ao italiano Matteo Salvini, ultradireitistas puros, cujo pensamento pouco tem a ver com o de nosso candidato. Não adianta. Enquanto não chegarem a perceber a verdadeira razão da ascensão de Bolsonaro ‒ e vai ser difícil que o consigam ‒ hão de perder-se em conjecturas e continuar patinando sem atinar com a lógica do movimento.

Façam como eu digo ‒ 2

José Horta Manzano

Os franceses, povo altamente politizado, não desdenham uma boa discussão política. Estamos no período que separa o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial, momento de alta tensão. O espaço de duas semanas é considerado demasiado longo por muitos. Acho que têm razão. O assunto é, de fato, objeto de todos os instantes. Só se fala nisso e acaba cansando.

Faz 40 anos que se faz um debate televisivo entre os dois finalistas. A tradição manda que se organize um único encontro, emoldurado por regras rígidas acertadas entre os assessores dos candidatos. Detalhes aparentemente insignificantes são levados em conta e regrados milimetricamente. Ambas as equipes têm de aprovar os entrevistadores, o formato do programa, se os candidatos se apresentarão de pé ou sentados, o formato da mesa, o horário, a cor e a eventual estampa do pano de fundo. Devem ainda concordar sobre os temas que serão abordados. Até a temperatura do estúdio será regulada conforme decisão comum.

O «grand débat» terá lugar nesta quarta-feira. Será transmitido pelos dois principais canais do país. Para quem estiver curioso: o termômetro do ambiente estará cravado nos 19 graus. Pode parecer meio fresquinho, mas evita que gotículas de suor possam brotar no rosto dos entrevistados em momentos mais acalorados. Calcula-se que 20 milhões de telespectadores devem beber as palavras dos postulantes. Sabendo que a população é de 67 milhões e eliminando crianças, anciãos, enfermos, surdos, trabalhadores noturnos e os que têm de ir cedo pra cama, pode-se dizer que o país inteiro estará grudado diante da telinha.

Imagina-se que cada candidato traga no bolsinho frases de efeito, golpes baixos, revelações comprometedoras, acusações inesperadas. Tudo o que cada um puder fazer pra puxar o tapete do outro será feito. Numa eleição atípica em que, a quatro dias do voto, um terço do eleitorado ainda não escolheu seu candidato, uma escorregadela pode ser fatal.

Hoje, os finalistas não põem o nariz na rua pra distribuir santinhos nem pra apertar mãos. Ficam ambos de molho, rodeados de assessores e marqueteiros, ensaiando frases, posturas, sorrisos. E encharcando-se de dados, estatísticas e números. O sorteio decidiu que Madame Le Pen será a primeira a falar, ao passo que Monsieur Macron fará o fecho. Não tive confirmação, mas imagino que ambos venham vestidos de azul, cor que se supõe transmitir paz e amor.

Fabricação nacional… pero no mucho

O interesse pela eleição extravasa os limites nacionais. Os países limítrofes, especialmente os de língua francesa, seguem com atenção. O Brexit aumentou o interesse de parceiros da União Europeia pela eleição francesa. De fato, a candidata Le Pen declara-se abertamente nacionalista e anti-europeia. Já declarou que, caso seja eleita, fará o que estiver em seu poder para tirar a França do euro e da Europa.

Madame Le Pen, que se apresenta como a candidata do «made in France», contrária a tudo o que vem de fora ‒ coisas e gentes ‒ foi apanhada em flagrante delito de contradição esta semana. Por ocasião de um comício em que camisetas de propaganda de seu partido estavam sendo vendidas aos participantes, uma jornalista mais curiosa procurou saber se a roupa tinha sido fabricada na França. Constatou que todas as etiquetas tinham sido cuidadosamente cortadas. No entanto, como gato que se esconde atrás da porta e esquece o rabo de fora, os cortadores de etiqueta tinham esquecido uma: justamente a do exemplar que vestia o manequim. Estava lá a prova: Made in Bangladesh.

Façam o que eu digo…

Os milagres de Photoshop

José Horta Manzano

O Photoshop substituiu o retoque que bons profissionais davam às fotos antigamente. Ninguém mais retoca foto na ponta do lápis. O negócio hoje é ‘photoshopar’.

Todos preferem mostrar ao mundo uma imagem próxima dos cânones de beleza e elegância, o que é compreensível. Repreensível é o exagero, quando a imagem se afasta demais do original. Mas… onde traçar a linha vermelha? Como estabelecer o limite entre o aceitável e o reprovável? Onde começa o ridículo? A resposta não é simples.

No Brasil, políticos em campanha aparecem em múltiplas fotos que acabam todas sendo usadas em santinhos. Na França, a coisa funciona de maneira diferente. É praxe cada candidato à presidência tirar uma única foto oficial que o representará durante toda a campanha. Essa imagem aparecerá em santinhos e em cartazes colados nos lugares apropriados.

Monsieur Macron e Madame Le Pen são os finalistas que disputarão o segundo turno das eleições, previsto para domingo 7 de maio. Cada um já divulgou a imagem oficial para a reta final. A de Monsieur Macron não foi alvo de muito comentário. Já a de madame está sendo bastante criticada. Os eleitores denunciam visíveis retoques que transformam uma senhora de quase 50 anos numa mocinha de trinta e poucos.

Esta é a foto oficial de campanha:

Choisir la France ‒ Escolher a França

As redes sociais se encarregaram de ridicularizar. Aqui, por exemplo, de «Escolher a França», o slogan foi transformado em «Escolher a franja».

Choisir la frange ‒ Escolher a franja

Esta outra é mais explícita. «Escolher a França» tornou-se «Escolher Photoshop».

Choisir Photoshop ‒ Escolher Photoshop

Mais venenosa, esta aqui compara o antes com o depois, mostrando o rosto verdadeiro e o «photoshopado». Lembra propagandas antigas do tipo «Eu era assim, passei óleo de peroba e fiquei assim».

Antes ‒ Depois

Os mais exagerados dizem que, no espaço de uma foto, madame perdeu 50 quilos e 30 anos. Maldade pura.

Nota
No sentido em que costuma ser usado por Madame Le Pen, o verbo escolher não traduz exatamente choisir, a palavra que aparece nos cartazes. Há uma nuance que vale destacar. Quando ela diz «choisir la France», melhor seria traduzir por «dar preferência à França».

Aliás, a «préférence nationale» ‒ preferência ao que é nacional ‒ é seu mote permanente. Combina com o ideário populista de extrema-direita, em que os males vêm necessariamente de fora.