
G20 em Roma
O isolamento do negacionista Bolsonaro: os outros líderes o evitam e o brasileiro se comporta como turista.
Il Messaggero, Roma
José Horta Manzano
Na escola, quando alguém fugia pra não assistir a alguma aula, a gente dizia que “fulano cabulou a aula”. Muito tempo depois, quando a escola tinha ficado no passado, aprendi que cabular é verbo intransitivo. Segundo o dicionário, não se deve dizer que “fulano cabulou a aula”, mas simplesmente que “fulano cabulou”.
Soa esquisito, concordo com o distinto leitor. Mas dado que são os falantes que fazem a língua, acho que já passou da hora de o dicionário registrar essa maneira nossa de falar.
Dito isso, chegamos aonde eu queria: Bolsonaro cabulou. Cabulou o quê, minha gente? Cabulou o miolo do G20, a cúpula que reúne os dirigentes dos países que respondem por 80% do PIB mundial. Não é coisa pouca.
Mas ele foi a Roma!, dirão vocês. É verdade, foi, mas não participou de todas as palestras. Tirando o encontro com o presidente da Itália – que, por ser o anfitrião, recebeu protocolarmente todos os dirigentes estrangeiros –, não aproveitou a proximidade física dos grandes do planeta para nenhum colóquio bilateral. Nenhum. Cabulou boa parte do encontro.
E o que é que o capitão foi fazer em Roma? Turismo. Aproveitando o bom tempo e o clima ameno destes dias de outono, visitou a Fontana di Trevi – aquela onde se joga uma moedinha. Mas evitou ir lá com os demais dirigentes, que foram todos juntos. Foi numa “excursão privada”, cercado por seus 20 ou 30 cães de guarda. Sentindo-se protegido, passeou por ruas e ruelas, comeu de balcão, fez o que todo turista faz. Vê-se que o G20 não passou de pretexto para a vilegiatura.
Il Messaggero, tradicional jornal romano com história de quase século e meio, reparou na solidão do negacionista Bolsonaro: “os outros líderes do G20 o evitam, e o brasileiro vai de turista”. Sublinha a “boa ação” da alemã Merkel que, condoída do isolamento a que o capitão estava sendo submetido, deu com ele algumas palavrinhas de cortesia. Me pergunto em que língua ele terá respondido à boa ação. Se é que respondeu.
O jornal lembra a seus leitores o pesadíssimo relatório da comissão do Senado brasileiro (CPI), um ato de acusação de mais de 1.200 páginas no qual 9 crimes e delitos lhe são atribuídos, entre os quais, crime contra a humanidade. Menciona ainda os mais de 600 mil mortos de covid no Brasil.
Il Messaggero ressalta ainda que, se Bolsonaro se mostrou inerte nos trabalhos do G20, esteve ativíssimo nos giros turísticos pela capital. É verdade que ninguém imaginava que, da noite para o dia, ele se transformasse em soldado engajado na luta contra o aquecimento global, mas é incompreensível que, ao não organizar nenhum encontro bilateral, tenha deixado escapar todas as ocasiões de se entreter com os colegas.
Mas Bolsonaro está em boa companhia. Dois grandes poluidores globais também esnobaram o G20: o chinês Xi Jinping e o russo Vladimir Putin. Só que os dois tiveram a decência de manter-se à distância de Roma, enquanto nosso capitão não resistiu a levar sua avantajada comitiva de dezenas de participantes para um alegre passeio turístico pela capital italiana, enquanto líderes mais civilizados discutiam o futuro da humanidade. Ir a Roma e não ver o papa, pode?
Diferentemente dos demais dirigentes, Bolsonaro negou-se a conceder entrevista coletiva à imprensa. Mas deixe estar, já está previsto um encontro dele com Matteo Salvini, o líder da extrema-direita italiana. Será esta terça-feira em Pistoia, cidade toscana que abriga o cemitério militar brasileiro. O capitão participará de cerimônia em memória dos quase 500 pracinhas da Força Expedicionária Brasileira caídos na Segunda Guerra.
O trágico da história é que os soldados brasileiros foram enviados à Itália em 1944 justamente para combater o nazi-fascismo, doutrina admirada por Bolsonaro, Salvini e respectivos devotos. Os gestos, os atos e as falas dos dois tendem a confirmar que teriam preferido que nazistas e fascistas tivessem vencido a guerra.
Como se vê, cá como lá, a hipocrisia não tem limites.
Não só cabulou (a maior parte do G-20 e também toda a COP-26) mas principalmente também encabulou mais uma vez a expressiva maioria dos brasileiros.
Mudando de assunto, não pude deixar de lembrar das inúmeras vezes que cabulávamos aulas para ir comer coxinha na galeria (Califórnia?) ou nos embriagarmos com as balas de licor da Dulca. Parece que as fomes não-resolvidas da infância dão sustentação para a ousadia. Bolsonaro saiu pelas portas do fundo da embaixada para ir comprar salames…
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Saíamos pelas portas da frente.
California, sim. Número 255 da Barão. Segundo street view, ainda está lá. Quem mudou não foram eles, mas os que se tornaram vegetarianos. Adeus, coxinha de galinha.
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O que percebo é que tratamos Bolsonaro e tantos outros políticos nefastos dessa democracia como “o outro”, “o distante”, “que não pertence” à essa civilização brasileira. Mas ele e os demais são sim, participantes e atores desse “todo” chamado Brasil. Não são homens e mulheres abomináveis que caíram de paraquedas no Brasil. São ervas daninhas dessa imensa floresta que todos cultivamos, direta ou indiretamente. Nasceram, tiveram uma educação familiar e escolar neste país. Captaram o modo de ser desta mesma sociedade. Temos que admitir que o político brasileiro é um reflexo da sociedade que os construiu. Existe uma ligação entre a sociedade e todas as instâncias de vida nesta sociedade. Tudo se interliga, tudo está conectado. Se Bolsonaro e os antecessores são caóticos, não seria um sinal da própria situação caótica da sociedade brasileira?
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Suas palavras estão carregadas de razão, prezado Toni. Eu também enxergo a coisa assim. Excluindo os que possam ter tomado o poder pela força, os demais foram postos lá com nosso voto.
Em princípio, o conjunto dos eleitos reflete a integralidade dos sentimentos do eleitorado. A julgar pelo desempenho escabroso de senadores, deputados, vereadores, prefeitos, governadores e presidente da República, fica a impressão de que o eleitorado não é tão imaculado quanto imagina ser. Em teoria, somos todos cúmplices.
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