O extremista caolho

José Horta Manzano

Não sei por onde andavam os extremistas de direita quando os de esquerda explodiam estações de estrada de ferro, sequestravam artesãos e matavam indiscriminadamente nos anos 70 e 80. Isso foi na Europa, mas até no Brasil, num tempo em que a vida andava muito vigiada e reprimida por aqui, esquerdistas extremados empreenderam ações ousadas e mataram gente.

Calada naqueles anos, a extrema direita só deu o ar de sua graça a partir dos anos 2010, coincidindo com a subida ao poder de Trump, Bolsonaro, Orbán e outros colegas europeus. Veio tarde, mas veio com força. Como prova disso, vejam o estrago que tem provocado no Brasil e no mundo. Bem tudo isso mostra que, independentemente da ideologia, a violência pode estar presente, basta cutucá-la com vara curta.

Direitistas extremos têm traços comuns com seus contrapontos da extrema esquerda. O desinteresse pelas grandes causas do país é um deles. O tarifaço de Trump dá mostra interessante. Para efeito de argumentação, vamos passar por cima dos capítulos iniciais da novela. Vamos direto ao capítulo mais recente, o encontro entre Lula e Trump.

O sucesso das tratativas, pelo menos até o momento atual, trouxe um alívio a inúmeros brasileiros. Muitos de nós estávamos assustados e apreensivos com o que estava acontecendo, cada um por um motivo. Uns temiam que sua pequena empresa exportadora fosse à falência, outros receavam perder o emprego, outros ainda se sentiam profundamente incomodados com o ataque intolerável à soberania nacional. Todos se sentiram aliviados de saber que as negociações iam no bom sentido.

Todos, não! A reação de bolsonaristas e de outros integrantes da direita extrema foi esquisita. Calaram-se e submergiram. Pior: tentaram (e continuam tentando) menosprezar e minimizar o que aconteceu na Malásia, que não lhes parece importante.

Ora, esse comportamento demonstra que certas pessoas não têm capacidade de enxergar além da ponta do nariz. Este escriba, que não é petista nem nunca foi, percebe que as tratativas entre EUA e Brasil estão indo no bom sentido. E festeja, porque, do jeito que as coisas vão, o final deve ser bom para brasileiros e americanos.

Não vejo por que razão eu deixaria de aplaudir iniciativas tomadas por políticos com quem nem sempre concordo, mas cuja ação me parece boa para todos. Infelizmente, parece que os extremistas, engessados por uma visão caolha, não têm capacidade de vislumbrar a grandeza de uma visão alargada do mundo. É pena.

Lula & Trump: os discursos

José Horta Manzano

A 80ª Assembleia Geral da ONU abriu hoje com o discurso dos dois. O Brasil antes, porque assim manda uma tradição não escrita. Em seguida, Trump, por ser o anfitrião.

Quem se acostumou com os discursos de nossos presidentes nos últimos anos, de Bolsonaro e do próprio Lula, se surpreendeu com a fala deste ano. Parece que o Lula andou frequentando aulas de “estadismo”, se é que essa disciplina se ensina nalgum lugar. Falou como estadista. Não tivesse feito menção, no finalzinho, a Pepe Mujica e ao papa Francisco, – citação que me pareceu fora de lugar –, eu diria que o discurso foi perfeito.

Em vez de fazer como um infantil Bolsonaro, que se gabou um dia de “ter salvo o Brasil do socialismo”, o Lula fez um discurso digno de chefe de uma potência regional, que se respeita e que respeita o mundo. Mencionou, por alto, alguns feitos de seu governo, mas gastou bom tempo acentuando os ataques que o Brasil vem recebendo. Não mencionou o nome do agressor, mas insistiu na natureza do ataque.

Falou da carnificina que vem sendo praticada na Faixa de Gaza e deu nome aos bois: chamou a ação de Israel de genocídio, que é a descrição correta. Seu discurso foi interrompido uma meia dúzia de vezes por palmas. Não são todos os discursantes que fazem tanto sucesso.

Em seguida, veio Trump. Quem esperava ouvir Trump não se decepcionou: Trump se comportou como… Trump. Como se estivesse acima das regras do jogo, ultrapassou folgadamente os 15 minutos alocados a cada discursante. Veio com uma maquiagem de assustar. A pele do rosto estava escura, puxando para o alaranjado do cabelo. Ouvi dizer que ele usa um spray facial. Deve achar bonito.

Na primeira metade da fala, teceu elogios a si mesmo. Lançou à plateia um rosário de números inverificáveis referentes a inflação, desemprego, índice da Bolsa e inúmeros outros índices. Todos os números estão no melhor patamar desde que o mundo é mundo. Um verdadeiro milagre.

Me lembrou o Lula de outros tempos, quando dizia “nunca antes na história desse(sic) país”. O Trump de nossos dias vai pelo mesmo caminho “never before” nunca antes, etc. Mencionou o presidente anterior (Biden) uma meia dúzia de vezes, sempre para criticá-lo ou ridiculizá-lo. Chegou a mencionar o “sleepy President”, presidente sonolento.

Já na reta final, falou do Brasil. Me deu a impressão de estar desconfortável, de estar falando só pra dar uma resposta ao discurso do Lula. Pode ser só impressão minha. Começou a dizer que os EUA tiveram de agir (mas não disse de que ação se tratava) porque o Brasil estava exercendo pressões sobre firmas e cidadãos americanos, principalmente com censura, exercida por um “judiciário corrupto”. (O STF há de ter apreciado.)

Nessa altura, para não se enrolar ainda mais, fez uma digressão. Contou que, nos bastidores, antes de discursar, cruzou com o presidente do Brasil, Disse que os dois se cumprimentaram e se abraçaram(!). Revelou ainda que achou o Lula muito simpático e que tinha gostado dele. Acrescentou: “Ainda bem, porque, quando não simpatizo com uma pessoa, não faço conversa nem negócio”.

Trump não voltou mais a discorrer sobre as tensões com o Brasil. Por seu lado, explicou que, nos poucos segundos em que se encontraram, já tiveram tempo de marcar um encontro para a semana que vem.

Vamos cruzar os dedos para que essa simpatia mútua dure até a semana que vem, que se encontrem realmente e que a tensão se desanuvie. O Brasil está precisando.

Fux: desonesto e desleal

STF
Por fora, protegido contra pessoas mal-intencionadas
Por dentro, mal-intencionados estão soltos

José Horta Manzano

O escritor Sérgio Rodrigues argumentou que, no julgamento de Bolsonaro e sua gangue, o combate dos que detestam os carecas tem a oportunidade rara de despertar consciências para o valor de uma cabeça lustrosa, com sua linguagem pelada, em comparação com o dumping de juridiquices pilosas de uma peruca.

Convenhamos que o escritor soube deitar no papel, em letras claras, o que todos comentam à boca pequena.


É raro ver o voto de um magistrado, fosse ele do STF, provocar a unanimidade que a cachoeira de palavras de Luiz Fux provocou. Todas as críticas que li – e li muitas – mostram jornalistas, em maior ou menor grau, indignados.

A estas alturas, vosmicê já deve ter tido acesso a alguns comentários. Excluindo algum bolsonarista puro sangue, todos os brasileiros pensantes estão, se não indignados, espantados e/ou desorientados.

O STF é um colegiado de magistrados, senhores, não um cortiço de analfabetos. Decisões de tamanha envergadura, como a absolvição ou a condenação dos autores de nossa mais recente tentativa de golpe de Estado, devem ser avaliadas pelo colégio de juízes antes da apresentação ao público. O que aconteceu ontem é a prova de que essa fase foi zapeada.

Estivéssemos em tempos normais, as dez horas de fala de Luiz Fux seriam olhadas com condescendência e seriam consideradas um esforço de “ser estrela por um dia”. Uma exaltação da vaidade. A meia hora de glória que seria comentada pelo mundo todo no dia seguinte.

Mas acontece que não estamos em tempos normais – e doutor Fux sabe disso muito bem. Temos o presidente do país mais poderoso de olho nesse julgamento, ameaçando-nos até com sua força militar caso o processo não seja truncado imediatamente. Temos, no banco dos réus, um ex-presidente da República e seus áulicos, entre eles, generais.

Não é num julgamento desse quilate que Fux havia de rodar a baiana e pisar no pé dos colegas na contradança. Se o fez, foi por razões imperiosas. Não é pecado conjecturar.

Na minha visão pessoal, o inesperado refugo de Fux tem outra explicação. Não é fruto do desejo de épater la galerie, de impressionar a distinta plateia. Algo me diz que Sua Excelência agiu assim para sair da mira de Donald Trump.

Por algum motivo, o ministro faz questão de conservar seu visto americano e seu direito de visitar aquele país quando e por quanto tempo desejar.

    • Talvez tenha depositado suas economias numa caixa econômica do faroeste e queira continuar tendo acesso à grana.
    • Talvez esteja planejando uma viagem à Disneylândia em dezembro, no intuito de cumprimentar o Pateta e deixar os netinhos andar de xícara.
    • Talvez tenha dado entrada num apartamento em Miami, como tantos brasileiros, e tenha agora medo de perder o investimento.

Imagino que Fux será cobrado, por seus pares, sobre a razão da guinada. Uma boa explicação vai-lhe evitar ser mandado para a geladeira por alguns anos.

Bolsonaro, Trump e o teatro da prisão domiciliar

Clã Bolsonaro

José Horta Manzano

A prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, longe de ser um acidente político ou uma mera consequência judicial, parece ter sido provocada de forma deliberada. Tudo indica que o ex-presidente, em conjunto com membros do seu clã familiar, esticou a corda conscientemente, de caso pensado, e “cavou” essa prisão domiciliar como parte de uma estratégia que vai além das fronteiras nacionais. O objetivo? Despertar a atenção – e a ação – de Donald Trump.

Trata-se de uma jogada desesperada, mas alinhada com a lógica que rege o bolsonarismo desde o início: a crença de que a realidade pode ser moldada a partir de narrativas delirantes e alianças simbólicas. Essa movimentação, por mais absurda que soe (pode até ser confundida com roteiro de novela), segue um raciocínio próprio da bolha em que o bolsonarismo se aninha. É, em essência, a ingenuidade bolsonarista levada ao paroxismo.

Nesse contexto, até Donald Trump – com todo seu histórico de absurdos – passa a parecer um dirigente equilibrado, se comparado à atuação tresloucada dos Bolsonaros. A família revela um egoísmo sem limites. Ao que tudo indica, não haveriam de hesitar em ver o país ruir se isso significasse a salvação pessoal do patriarca. Se a única saída fosse um bombardeio atômico que destruísse o Brasil, a escolha seria óbvia para eles: que se dane o país, desde que o pai se salve.

O que parece estar em curso, neste momento, é uma tentativa explícita de provocar Trump. Os Bolsonaros querem ser vistos como vítimas de um sistema judicial “perseguidor”, esperando que isso alimente o discurso populista e conspiratório do ex-presidente americano. Com isso, esperam que Trump amplie as sanções contra o STF e contra o Brasil.

O problema dessa estratégia é que ela desconsidera uma realidade simples: nem o STF, nem o governo brasileiro, estão dispostos a se curvar diante de pressões externas. As instituições brasileiras seguem com firmeza o caminho que lhes traçou a Constituição de ‘88. Para um grupo que passou anos governando o país sem demonstrar qualquer apreço por valores como brios, pudor ou responsabilidade, há de ser incompreensível descobrir que ainda existem líderes com vergonha na cara.

Em certas cabeças, a esperança bolsonarista de escapar das consequências jurídicas depende menos de fatos e mais da construção de uma narrativa internacional de martírio político. O plano, no entanto, está fazendo água e parece cada dia mais deslocado da realidade.

Enquanto isso, o Brasil segue seu curso, enfrentando as turbulências deixadas por um governo que jamais colocou os interesses nacionais acima dos seus próprios.

A bordoada

José Horta Manzano

A soberania nacional não se mede apenas pelo controle das próprias fronteiras, mas também pela capacidade de um Estado de fazer valer sua autoridade interna sem interferência externa. Quando se trata de comércio internacional, por exemplo, cada país estabelece suas próprias regras tarifárias. O imposto de importação é um instrumento legítimo de política econômica, ajustado conforme os interesses nacionais. Trata-se, portanto, de um campo soberano e consensualmente reconhecido na diplomacia global.

Bem diferente é o caso de leis com pretensões extraterritoriais, como a chamada Lei Magnitsky, praticamente desconhecida até poucos dias atrás. Criada nos Estados Unidos como resposta a casos de corrupção e violações de direitos humanos em outros países, essa legislação confere ao Executivo norte-americano o poder de sancionar estrangeiros – indivíduos que, vale frisar, não vivem sob sua jurisdição. Em tese, seu uso já suscita questionamentos quanto ao respeito às normas do direito internacional. No caso concreto que nos atinge, a aplicação dessa lei a um ministro da mais alta Corte do Brasil é uma bordoada que ultrapassa todas as fronteiras da razoabilidade.

O que vimos foi um ataque frontal à soberania brasileira. Não se trata de uma crítica isolada a um magistrado, por mais influente que seja. O que se tem é uma tentativa de deslegitimação institucional – um gesto que, por sua gravidade, ecoa momentos históricos de verdadeira afronta à dignidade nacional. Não é exagero lembrar que, desde os tempos em que o ditador Solano López invadiu nosso território, dando início à Guerra do Paraguai, o Brasil não era alvo de uma ação externa tão agressiva e humilhante.

No pacote em que nos foi entregue essa sanção, vieram também o escárnio contra nosso sistema de justiça, o desdém pela separação de Poderes e um desprezo mal disfarçado pela ordem jurídica brasileira – que, em muitos aspectos, é mais avançada que a dos Estados Unidos. É irônico, por exemplo, recebermos sanções morais e jurídicas provenientes de um país que ainda mantém em vigor a medieval pena de morte, resquício de um tempo em que o castigo físico substituía o Direito.

Diante desse cenário, surgiram sugestões de que o próprio ministro atingido – ou mesmo o Supremo Tribunal Federal, como instituição – deveria reagir formalmente, em nome da própria honra. Essas propostas, embora bem-intencionadas, carecem de ponderação estratégica. Reagir diretamente pode parecer defesa pessoal ou, pior, tornar o episódio um embate entre magistrados e governos, o que só aumentaria o desequilíbrio do gesto original. A serenidade que se espera de um tribunal deve prevalecer mesmo diante da provocação. O silêncio, neste caso, não seria omissão, mas expressão de compostura.

A resposta, se houver, deve vir do lugar institucionalmente competente: o Poder Executivo. É o presidente da República, como representante legítimo do povo brasileiro, quem deve se posicionar diante dessa afronta à Nação. Não se trata de solidariedade a um indivíduo, mas de um dever de Estado: defender a autoridade e a dignidade das instituições do país perante o mundo.

É pouco provável que uma nota diplomática mude a política externa dos Estados Unidos. Mas há ocasiões em que o gesto, mais do que o efeito prático, carrega uma lição. Um país menos poderoso pode, sim, ensinar civilidade ao mais forte.

Às vezes, um pito bem dado dói mais que um cascudo.

Aula de línguas

José Horta Manzano

Com boa vontade, se consegue encontrar o lado bom de coisa ruim – e vice-versa. Até da crônica policial dos jornais, espremendo bem, algum ensinamento bom às vezes sai.

As aventuras de nosso horrível capitão já estão cansando. Tanto problema mais importante no Brasil, e só se fala dele. Agora até o Trump resolveu dar seu pontapezinho no formigueiro nacional. Uma canseira.

Donald deve imaginar estar tratando com Zambeze, Tanganika ou Bechuanalândia (pra não ofender ninguém, são países que, se existiram um dia, já sumiram). Só faltava agora o Brasil modificar suas leis para satisfazer aos caprichos daquele ogro ignorantão. Só cretinos acreditariam nessa possibilidade. E parece que houve gente que acreditou firme. Cretinice não paga imposto. Tsk, tsk…

Bom, eu dizia que as notícias policiais abrem as portas do aprendizado de dezenas de línguas estrangeiras. Duvida? Pois é como lhe digo. Tome, por exemplo, a sugestiva expressão tornozeleira eletrônica. Já é poética em si, mas há línguas que preferiram adicionar-lhe charme e a chamam de bracelete eletrônico. Um encanto, pois não? Não corresponde à realidade, mas… quem se importa com a licença poética? A conhecida “caixa preta” do avião é cor de laranja e ninguém reclama.

Aqui abaixo vai um apanhado de manchetes que colhi na mídia. Em cada uma, grifei em vermelho a expressão tornolezeira eletrônica. Algumas são facilmente reconhecíveis; quanto a outras, precisa afiar os olhos e procurar bem.

Então? Pronto para aprender o nome do cobiçado acessório que Bolsonaro já começou a portar? Antes disso, só uma observação. Dizem do ex-presidente que ele é um “quase-presidiário”. Pois eu diria que é mais que isso: já é um presidiário. Se não, vejamos:

é vigiado 24h por dia

está proibido de entrar nas redes

está proibido de sair de casa das 19h às 7h

está proibido de sair de casa nos fins de semana

está proibido de passar perto de embaixadas

está proibido de entrar em contacto com os corréus

está proibido de falar com o filho que sabe inglês

E então? Não lhe parece um verdadeiro regime de presidiário? Deveriam até descontar estes meses dos quarenta anos de sentença que deve receber.

Agora vamos às manchetes e a nosso curso “Aprenda 14 línguas em 7 minutos!”.

 

Em francês: bracelet électronique

 

 

 

Em catalão: braçalet electrònic

 

 

 

Em alemão: Fußfessel (Fussfessel)

 

 

Em tcheco: elektronický náramek

 

 

Em inglês: ankle monitor

 

 

 

Em espanhol: tobillera electrónica

 

Em italiano: braccialetto elettronico

 

Em letão: piešķirts potītes


Em lituano: apykoję

 

Em polonês: elektronicznej bransoletki

 

Em húngaro: elektronikus nyomkövetőt

 

Em romeno: brățară electronică

 

Em sueco: fotboja

 

Em finlandês: nilkkapanta

 

 

Brainstorming

José Horta Manzano

O destrambelho de Trump repercutiu longe. Até o jornal falado da rádio pública suíça, noticiário que costuma ser morno e sem-sal, reservou um bloco à agressão que o Brasil sofreu por parte do presidente dos EUA.

Trump deu, como pretexto, os ataques que o Brasil vem fazendo contra a liberdade de expressão (?). Mencionou ainda um misterioso “déficit” americano na balança comercial binacional. Esse tal déficit é imaginário, visto que, de 16 anos pra cá, são os EUA que registram superávit, ano após ano. Ou Trump não sabe o que diz ou sabe muito bem mas faz esse discurso para sua base eleitoral, composta de gente semiletrada que engole cru sem jamais conferir nem que fosse na Wikipédia.

Toda moeda tem duas faces. O aumento de 50% nos impostos de importação decretado por Trump vai prejudicar exportadores brasileiros. Mas ao mesmo tempo, afetará consumidores americanos, que pagarão preço extorsivo pela carne, pelo café, pelo chocolate, pelo suco de laranja – produtos de origem brasileira. Sem falar em mercados de nicho como frutas amazônicas e nordestinas (açaí, castanha de caju, castanha do Pará) e insumos vegetais preciosos para a indústria farmacêutica.

Agora, ó companheiro Lula, preste bem atenção, que o que vem agora é especial pra vosmicê!

Certas desgraças, se exploradas com inteligência, podem virar um trunfo. A estultice de Trump é daquelas chicotadas que merecem ser tema de uma boa ‘tempestade cerebral’ – em bom português: brainstorming. Junte o que houver de melhor à sua volta, não digo a turma do sim senhor, mas gente realmente esperta, ponderada, de visão. Como? Sim eu sei que é mercadoria rara no entorno de vosmicê, mas procure. Bote anúncio no jornal, se for o caso.

Parta do princípio que, neste momento, tem um mundaréu de eleitores brasileiros desconsolados com as medidas de Trump, que os afetam como uma bofetada nas fuças. Com poucas exceções, são bolsonaristas. Não deixe o malho esfriar. Há que bater enquanto está quente. O objetivo é dar guarida a esses órfãos desamparados: abrir os braços e mostrar que, do lado de cá, há mais compreensão, mais simpatia e, sobretudo, mais constância. Do lado de cá, eles não perigam ser bofeteados com sanções estúpidas vindas de um estrangeiro ignorante.

Se vosmicê conseguir reunir uma boa turma para o brainstorming e se ele for feito com inteligência, não tem com dar errado: uma parte dos desiludidos hão de abandonar o barco dos desenganos. A recolha dos náufragos tem de ser feita com grandeza, sem rancores, sem acusações, de bom grado e bom coração.

Bem organizada essa fase, é só continuar atacando o capitão, mas mantendo o espírito de fraternidade para com os recolhidos. Até o dia das eleições. Antes de tomar qualquer decisão, tem de pesar bem os prós e os contras. Tudo há de dar certo. Ah, um conselho importante a nosso presidente!


Fora das declarações oficiais e dos discursos lidos, faça o possível e o impossível para guardar a língua no bolso, companheiro Lula! Não vá dar alguma daquelas declarações precipitadas que põem tudo a perder! O silêncio é ouro! Tome exemplo no companheiro vice-presidente, mudo como um peixe.


É a única oportunidade que vosmicê terá de aparecer dois palmos acima dos fanáticos do lado de lá. Suba os degraus que se apresentam à sua frente, abra seu melhor sorriso e… vamos em frente.

No palanque, pode demolir Bolsonaro, esporte que o Brasil aprendeu a amar. Fora dele, fuja daquelas obscuras transações, de que todos acabam ficando sabendo um dia, e que corroem sua imagem.

Seguindo a receita direitinho, não há como errar. É com este que eu vou! E nunca esqueça: guarde a língua no bolso, guarde a língua no bolso, guarde a língua no bolso.

 

Outra coisa: é bom ficar de olho no capitão.
Esta manchete é da Folha de S.Paulo, 10 julho 2025.

Se benzer

José Horta Manzano

A sabedoria popular ensina que ‘cão que ladra não morde’. Com variantes regionais, esse ditado ecoa em todas a línguas. ‘Os cães ladram e a caravana passa’ é uma variante.

Isso dito, tenho observado a atitude de Donald Trump com relação ao Irã. Já faz dias que ele ameaça sem morder. Abandonou a reunião do G7 antes do fim, dizendo que tinha decisão iminente a tomar. A “decisão” não passou de um ultimátum lançado ao Irã ordenando que se rendessem imediatamente e sem condições. Em resposta, os aiatolás deram-lhe uma banana.

Trump voltou a ameaçar lembrando que está cogitando destruir o sítio onde os iranianos enriquecem urânio. Acontece que essas instalações estão enterradas longe do alcance de bombas tradicionais. Trump, por enquanto, continua ladrando sem morder. Por que será?

Há quem diga que está aplicando nos iranianos a estratégia do pavor. Procura atormentar os habitantes com a iminência dos ataques, lembrados diariamente. Pode ser, mas não é o que me parece. A meu ver, o que está emperrando um ataque fulminante é outra coisa.

O Irã é supermontanhoso. Sua orografia acidentada, que percorre praticamente o território inteiro, conta com elevações que ultrapassam 4.000 metros. Ao construir suas instalações subterrâneas, os iranianos sabiam que os EUA possuem esse tipo de bomba perfurante, que pode atravessar 60m de terra, rocha ou até concreto antes de explodir.

Assim sendo, com tanta montanha à disposição, não me parece que tenham optado por cavar uma cova rasa para colocar as centrífugas. É mais simples abrir um túnel no flanco de uma montanha bem alta e, lá no fundo, alargar a galeria e instalar a maquinaria. Dado que a bomba perfurante fura na vertical (e não na horizontal), as instalações estão protegidas pela própria montanha. Quero crer que tenham escolhido esta última solução.

Isso explicaria a longa hesitação de Trump em lançar um ataque. Sacou, tem de atirar – olhaí outra expressão conhecida. Se a tal bomba perfurante for lançada sem sucesso, isto é, se não destruir completamente o sítio nuclear, como é que fica? Trump não pode dar de ombros, virar as costas e tirar o pé fora. Terá de dar continuidade ao ataque. Terá de se meter numa guerra, sem esperança de vencê-la rapidamente.

Entre as promessas de campanha, Trump garantiu que, como adepto da paz, não envolveria mais os EUA em guerras. Uma nova guerra no Oriente Médio desmoralizaria o personagem. Ele perderia o apoio de muitos de seus fãs. Portanto, ele só interviria no Irã se tivesse certeza de vencer em poucos dias e, sobretudo, sem que nenhum soldado americano tenha de pisar o solo persa.

Outro fator pode ajudar a explicar a hesitação trumpiana. Faz muito tempo que o Irã deixou de permitir a entrada de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica. Ninguém é capaz de dizer com exatidão a quantas anda, neste momento, o enriquecimento de urânio. Na última inspeção estava a 60%, mas como estará agora? Sabe-se que, para o fabrico da bomba, o urânio tem de estar enriquecido a 90%.

Assim sendo, supondo que o urânio enriquecido esteja próximo do teor necessário para explosão atômica, quais seriam as consequências de uma bomba perfurante explodindo no recinto em que o urânio enriquecido está estocado? Fica por isso mesmo? Quem garante que a poeira contaminada não vai escapar e se espalhar pela atmosfera? Tendo em mente que o Irã tem uma população de 90 milhões, quem vai assumir a responsabilidade de ter contaminado, pelo ar e pela água, toda uma nação?

Aí estão, a meu ver, as razões da demora de Trump. Em conclusão:

    • Se simplesmente abandonar, ele será visto como pusilânime.
    • Se atirar a bomba perfurante e não conseguir atingir o alvo, será ridicularizado, ele e seu exército.
    • Se lançar a bomba e contaminar milhões, será considerado um genocida de galocha.
    • Se entrar em guerra tradicional, com desembarque de tropas e de tanques, estará abrindo conflito para uma década, com milhares de americanos mortos, sem garantia de vitória.

É um drama em que todas as saídas são ruins. A sinuca é de bico. De bico entortado, com penas pretas por cima. Trump precisa se benzer.

As derrotas de Trump

Tambores rufando

José Horta Manzano

Apesar de ter descido à arena com passos duros e rufar de tambores, Donald Trump, personagem grandioso e teatral, está murchando estas últimas semanas.

Prometeu expulsar 11 milhões de imigrantes clandestinos. Fiz as contas: com aviões de 200 lugares, seriam necessários 55 mil voos. Suponhamos uma frota de 10 aeronaves dedicadas exclusivamente à missão, cada uma fazendo um voo de ida e volta por dia, de domingo a domingo, feriados e dias santos incluídos. Seriam necessários 5.500 dias – cerca de 15 mandatos presidenciais. Mesmo os menos afeitos à matemática (como este escriba) percebem que a meta é uma miragem. Uma promessa de palanque que não resistiu à aritmética. Derrota, portanto.

Depois veio o plano mirabolante de quebrar a espinha dorsal da economia chinesa com pesados impostos de importação, como se a China fosse uma loja de esquina em crise. Imaginou que o “Império do Meio” se ajoelharia. Não se ajoelhou. Em um país de governo centralizado, acostumado a ordens verticais, a população seguiu em silêncio. Quem cedeu foi Trump, que engoliu em seco e aceitou a mediação suíça. O leão rugiu, mas acabou se afinando. Mais derrota, portanto.

A bufonaria de entregar pastas de governo a Elon Musk, um parvenu com aspirações a Messias digital, teve vida breve. O corte em instituições, o descontentamento geral e a gritaria nas redes dissolveram rapidamente a “grande aliança”. Musk está fora – ou quase. Mais uma derrota para o currículo.

Há outras, menores, internas, administrativas, que se acumulam como entulho. Mas o quadro geral é claro: por trás do gestual arrogante e da retórica grandiloquente, o messianismo de Trump está em processo de derretimento. A cada bravata, nova fissura. A cada promessa não cumprida, fiasco mais evidente.

A verdade é que o presidente, que se pinta como salvador do mundo, parece hoje mais um personagem trágico de ópera bufa: ruidoso, solitário e, sobretudo, declinante.

Putin quer mesmo o fim da guerra?

José Horta Manzano

Dizer que Vladimir Putin deseja o fim da guerra é uma falácia, uma ideia que não resiste à menor análise. Desde o início da invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, o objetivo do Kremlin foi muito além de uma mera operação militar. Para Putin, a guerra não é um acidente de percurso, mas um instrumento essencial de sua estratégia de enfraquecer a Europa e impor-se num novo equilíbrio de forças no continente, quiçá no mundo.

Interessa ao líder russo que o conflito se prolongue indefinidamente – ou pelo menos até que os Estados Unidos se cansem de financiar e apoiar Kiev. Em sua lógica, trata-se de um jogo de paciência: enquanto a Rússia, acostumada a resistir a longos períodos de privações e adversidades, segura o terreno, ele aposta que o Ocidente, sujeito a pressões internas e a ciclos políticos curtos, acabará desistindo.

O cálculo é cínico, mas não desprovido de realismo: sem o respaldo militar, financeiro e diplomático dos EUA e da União Europeia, a Ucrânia se verá sozinha diante do colosso russo. A partir daí, Putin acredita que a resistência ucraniana acabará por desmoronar e que Kiev, isolada e exaurida, terá de se render – ou aceitar a paz nos termos impostos por Moscou.

by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Cada trégua aparente, cada discurso em favor da paz vindo do Kremlin deve ser entendido como parte de uma estratégia maior: ganhar tempo, dividir o Ocidente, sem nunca perder de vista o objetivo final. Para Putin, a guerra não é algo a ser encerrado; é uma ferramenta a ser utilizada até a exaustão do adversário.

Enquanto houver esperança de ver o apoio ocidental à Ucrânia enfraquecer, a paz naquela região continuará sendo apenas o que é: uma linda palavra, útil para discursos diplomáticos e “tréguas” de ocasião, mas distante da realidade.

Levar a breca

José Horta Manzano

O mundo está numa encruzilhada, balançando entre antigas certezas e novas dúvidas. A chegada de Donald Trump à presidência dos EUA deu o pontapé inicial a essa turbulência civilizacional. Como acontece em todo sacolejo, há os que tombam da carroça, mas há os que se seguram firme e às vezes até saem ganhando quando a poeira se dissipa.

A nuvem de pó ainda não permite ver o horizonte com nitidez, mas já se distingue, apertando bem o olho, a silhueta de um país que vai sair desta encrenca melhor do que nela entrou: é a China. Receio que o Make America Great Again, grito de guerra de Trump, vai levar a breca (antiga expressão hoje traduzida por “ir para o brejo”).

O Grande Irmão do Norte periga sair desta aventura diminuído, e a China, aumentada.

Observação
Breca é palavra antiga, que já está morando no porão do esquecimento. Só sobrevive em algumas locuções que também já estão a caminho da aposentadoria. Por exemplo:

Levado da breca
Ex: É uma criança levada da breca.
É uma criança especialmente levada.

Levar a breca
Ex: Achou que ia ganhar a partida, mas levou a breca.
Achou que ia ganhar a partida, mas deu-se mal.

Com a breca
Ex: Com a breca! Por essa eu não esperava!
Putz! Por essa eu não esperava!
(esta expressão é do tempo do Onça)

Ir-se com a breca
E os bons modos desta gente, onde estão? Foram-se com a breca.
E os bons modos desta gente, onde estão? Perderam-se para sempre.

Ocaso dos populistas

José Horta Manzano

Lula anda se comportando feito barata acuada. Corre pra um lado e pra outro, hesita em trocar ministros, tira da cartola um programinha populista aqui, outro ali, tudo de circunstância, sem consistência. Mostra, a cada dia, não ter programa de governo. Na sua cabeça, que parece ter estacionado no tempo de seus mandatos anteriores, imaginou que pudesse se comportar como Midas moderno, resolvendo todos os problemas com um toque. Não está dando certo.

Bolsonaro é outro que anda deslizando, cada vez mais enrolado. Nos bons tempos em que lhe serviam café quente, vencia todas e agredia sem medo todas as autoridades da república. Pairava, inatingível, acima da ralé e da grã-finada. Hoje o vento mudou. Não entra mais em palácio. Seus comparsas estão presos ou à beira de o ser. Desconcertado, agarra-se a qualquer miragem que lhe pareça poder livrá-lo da cadeia com a qual já tem encontro marcado.

Trump está decepcionando os que dele esperavam um poderoso “abre-te sésamo” que projetasse os EUA num futuro brilhante de riqueza e prosperidade. Suas promessas de campanha andam mal das pernas. A expulsão de 11 milhões de trabalhadores clandestinos está se verificando meta inatingível, fora de qualquer cogitação. O conflito ucraniano, que seria resolvido em 24 horas, foi posto de molho. Bombas continuam explodindo na capital ucraniana. O vaivém dos impostos de importação mostrou, depois de perturbar as finanças do planeta, que não tinha vindo pra ficar, que era só uma ameaça. Caiu mal.

Putin continua lá no seu canto, jururu, sem conseguir vencer a guerra que declarou contra um vizinho bem menor e menos poderoso que ele. Ele também há de estar perdendo a confiança em Trump, aquele que prometia acabar com a guerra em um dia.

Milei, dizem, também anda inconformado. Seu sonho teria sido que a Argentina, e não o Canadá, tivesse sido convidada a se tornar o 51° estado americano.

Marine Le Pen é deputada francesa da extrema direita populista. A cada eleição para a presidência da república, seu nome na urna é tão infalível quanto brigadeiro em festa de criança: está sempre lá. E já faz umas duas ou três vezes que passou para o segundo turno. Pois Madame acaba de receber uma pena de prisão e de cinco anos de inelegibilidade. Em vez de prisão, terá de andar com tornozeleira eletrônica, mas a inelegibilidade é pra valer: não poderá disputar a próxima eleição.

Os que mencionei não são os únicos, há muitos outros líderes populistas no mundo. Falei dos que estão mais próximos de nosso universo. A julgar por eles, este ano da graça de 2025 parece assinalar o fim – ou pelo menos uma pausa – na pestilenta vaga de populismo que nos circunda.

Tomara que a pausa dure bastante tempo. Tomara que as próximas presidenciais brasileiras não tragam nenhum candidato populista na urna. Uma eleição sem Lula e sem Bolsonaro será uma bênção.

São Benedito é santo forte. Não sei se seus braços alcançam Le Pen, Milei, Putin e Trump. Mas sei que têm poder em Brasília.

Sem Lula e sem Bolsonaro(s), por favor, meu Santo!

M.A.G.A. na Groenlândia

José Horta Manzano

A Groenlândia, atual objeto da cobiça de um Trump cada dia mais agressivo, também adotou a moda do bonezinho vermelho. Só que o lema é outro:


Make America Go Away
algo como
Fora, Estados Unidos!


 

Eskindô x Se acabô

José Horta Manzano

Enquanto uns vão de eskindô, outros amargam um se acabô. Tirando um ou outro acometido de amnésia etílica, todos ficaram sabendo do constrangedor espetáculo oferecido este fim de semana ao mundo por Donald Trump, no papel de “quem manda aqui sou eu”.

Esquecido de que Zelenski não havia entrado de penetra, mas a convite, Trump desancou o visitante e humilhou-o diante de câmeras e microfones. Puseram-se em dois – o dono da casa e seu vice – para descer a lenha no ucraniano. Para coroar, puseram o visitante pra correr, expulsando-o antes que fizesse o pronunciamento final.

Todas as análises que li desde então foram unânimes em expressar espanto e mal-estar. De memória de jornalista acreditado junto à Presidência americana, nunca se viu (nem se imaginou) cena desse tipo. Por detrás de portas cerradas, ninguém garante que já não tenha havido murros na mesa, brados de protesto, gestos de ameaça. Diante de câmeras e microfones, no entanto, jamais se tinha visto algo parecido.

Apesar de a cena parecer ter sido espontânea, gerada pelo calor da hora, tenho palpite de que não foi exatamente assim. A meu ver, houve preparação minuciosa, combinação prévia, verdadeira emboscada. Vejamos.

Não é todo dia que se vê o presidente americano discutir política externa com um colega estrangeiro diante de um batalhão de jornalistas munidos de gravadores, holofotes e câmeras. O que se costuma ver são cinco minutos de sorrisos para permitir fotos que vão estampar as reportagens. Discussões, nunca.

Assim sendo, o assunto não era para ser discutido naquele momento. Se o foi, é porque o desmonte da imagem do ucraniano Zelenski tinha sido minuciosamente preparado. A certa altura, Trump deu a primeira paulada, sinal de que a encenação podia começar. Logo em cima, seu vice, sem que lhe fosse solicitado, entrou no meio da conversa para sentar a pua no infeliz visitante que, com conhecimentos insuficientes de inglês, titubeou, dançou e rolou.

Estamos diante de um caso estranho. Numa guerra que já dura três anos, causada por uma potência que despachou suas forças armadas para invadir o país vizinho, a maior potência bélica do planeta apoia abertamente o agressor e não o agredido. Trump, no fundo, está rebaixando seu próprio país a um nível que imaginávamos reservado a dirigentes periféricos, como Lula, que também destratou o presidente ucraniano e deu apoio a Putin, o invasor.

Trump não sabe ainda, mas atitudes como a que ele tomou no Salão Oval diante do presidente Zelenski vão na contramão de seu desejo de fazer que os EUA voltem a ser grandes (Make America Great Again). No dia seguinte ao do bate-boca, os países que, confiantes, tinham se abrigado desde 1945 sob o guarda-chuva nuclear americano entenderam que a aliança estava morta.

A Europa entendeu que, sem o apoio militar dos Estados Unidos, corre perigo existencial. A Rússia, por seu lado, também entendeu que, com um Trump indiferente, é chegada a hora de recompor a Grande Rússia, como nos tempos da URSS. Quem sabe qual será a primeira das novas vítimas? Um país báltico? A Romênia? A Finlândia? É bem capaz de acontecer antes do que imaginamos.

Rearmar-se leva tempo, mas a Europa já está no bom caminho. O Reino Unido e a França são países dotados da arma atômica. A Alemanha acaba de pedir à França que estenda sua proteção nuclear ao território alemão. As coisas estão se mexendo com rapidez.

Como vão ficar os que confiaram na proteção dos EUA? Taiwan, cobiçado pela China continental? O Japão, desarmado há 80 anos e confiante na proteção americana? A América Latina que, fascinada pela Florida e pelos EUA, rejeita ser colonizada pela Rússia ou pela China?

Ninguém garante que Trump pendure as chuteiras no encerrar deste mandato. Pode ser que ouse entortar a Constituição e propor-se para mais quatro anos. Pode ser também que o próximo presidente seja o atual vice, J.D.Vance, que tem comportamento ainda mais ignorantão e agressivo que o chefe. Portanto, não é possível cravar, neste momento, que daqui a 4 anos estaremos livres desse pesadelo.

Trump pode até tirar algum proveito de sua guerra de tarifas de importação. Mas periga ver uma debandada de bons e antigos aliados. Ninguém quer ter aliado não confiável.

Gulf of Mexico

José Horta Manzano

Até certo ponto, denominações geográficas se parecem com logradouros de cidades brasileiras: volta e meia, um vereador vem com a ideia de alterar este ou aquele nome. Por exemplo, propõe que a tradicional Rua da Igreja seja rebatizada como Rua Professor João Hipólito da Luz e Alvarenga Fernandes de Oliveira. Por falta de sensibilidade, os edis acabam aprovando. E adeus, Rua da Igreja!

Enquanto alterações descabidas se concentram dentro de limites municipais, o mal não é tão grande. Quando a mudança atinge a nomenclatura geográfica planetária, o problema muda de escala. Especialmente quando a alteração é imposta por meio de força bruta, censura ou pressão.

No Ginásio me ensinaram que o Golfo Pérsico se chamava assim mesmo: Golfo Pérsico. As águas do golfo banhavam então um único grande país: o Irã, a antiga Pérsia. Nos anos 1970, a rápida ascensão dos estados petroleiros mudou o panorama e o Irã deixou de ser o único país importante da região. As novas potências passaram então a pressionar para que o mundo chamasse aquelas águas de Golfo Arábico. Bem ou mal, todos adaptaram o nome, cada um à sua maneira. Alguns anotam Golfo Pérsico (Golfo Arábico). Outros fazem o contrário: Golfo Arábico (Golfo Pérsico). Os franceses, por fim, decidiram-se por Golfo Árabo-Pérsico.

Até a Guerra das Malvinas (1982), ninguém, fora da Argentina, estava realmente preocupado com o nome daquele arquipélago perdido no extremo sul do Atlântico. Cada um o chamava pelo nome que lhe parecia correto. Os países de fala castelhana diziam Islas Malvinas. Os demais preferiam Ilhas Falkland. Os franceses, sempre originais, diziam acertadamente Ilhas Malouines. É que, depois de receberem diferentes nomes, as ilhas foram finalmente chamadas Malouines em homenagem aos primeiros habitantes permanentes, marinheiros oriundos de Saint-Malo (França). Malvinas é adaptação espanhola de Malouines.

Depois da guerra anglo-argentina de 1982, o mundo passou a ter cuidado na hora de inscrever nos mapas o nome do arquipélago. Todos anotam agora o nome espanhol e o nome inglês. Os franceses continuam se referindo às Ilhas Malouines (Falkland).

O desastrado mapa-múndi lançado ano passado pelo IBGE para uso escolar deslocava o Meridiano de Greenwich e, em consequência, desregulava o relógio planetário, que se baseia naquele que é o meridiano zero, escolhido como ponto de partida da contagem da hora. Um péssimo exemplo de como não agir, visto que esse tipo de capricho só serve para confundir os alunos que terão dificuldade em entender a divisão do globo em 24 fusos horários partindo de Greenwich.

Contrariando o uso estabelecido pelos demais países, o mapa-múndi do IBGE não atribui nome bilíngue às Malvinas. Chama o arquipélago unicamente pelo nome espanhol. E anota que as ilhas são argentinas, o que não corresponde à realidade. História e Geografia reescritas.

Desconhecido na Europa até os anos 1600, o peru assustou quem o viu pela primeira vez. Ao observarem (de longe) a ave das Américas, cada um imaginou que pudesse vir de algum lugar longínquo. Os ingleses acreditaram que vinha da Turquia, país então muito distante no imaginário de todos. E o bicho acabou sendo chamado pelo próprio nome do suposto país de origem: turkey.

Meio milênio correu tranquilo. Até o dia, faz poucos anos, em que o líder turco se encrespou. Reclamou que na ONU, onde a língua de trabalho mais utilizada é o inglês, seu país estava sendo chamado pelo mesmo nome da ave, ou seja: Turkey. Pediu que o nome de seu país passasse a receber a grafia original turca: Türkiye. E assim foi feito. Foi-se a Turkey, boas-vindas à Türkiye. Poucos notaram a diferença, visto que em inglês as duas formas têm a mesma pronúncia.

Entre as fanfarronadas de Donald Trump estas últimas semanas, está sua ordem de que seja alterado o nome do Golfo do México. Apesar de a denominação estar em vigor há séculos, o moço decidiu que Golfo da América fica melhor. Preocupados em não desagradar ao potentado, todos responderam “Sim, senhor”. E, da noite para o dia, as “aguas calientes” da imensa superfície marítima se tornaram Golfo da América. A aplicação Google Maps esteve entre os primeiros a efetivar o novo nome.

A nós, habitantes de antigas colônias portuguesa e espanholas, não nos faz quente nem frio. Fica até simpático, Golfo da América. Parece que o continente inteiro foi contemplado com a homenagem.

Engano, senhores! Nós estamos entre os únicos a considerar que o termo América vale para o conjunto de países das Américas. Nos EUA, não é bem assim. Para se referirem ao continente que começa no Canadá e termina na Terra do Fogo, eles usam o termo no plural: Americas, The Americas. No singular, é outra coisa.

America, no singular, é o nome que os americanos atribuem ao país deles, à exclusão de todos os demais países. Quando Trump determinou que o nome seja Gulf of America, assim no singular, referiu-se aos Estados Unidos. Aos ouvidos deles, soa Golfo dos Estados Unidos.

De repente, fica menos ingênuo.

Paz de mentirinha

José Horta Manzano

Sabe aquele sorriso meio forçado que a gente dá em direção ao fotógrafo, sorriso que não reflete a verdade do momento e que só serve pra aparecer bem na foto? É a imagem que me vem à mente quando vejo a autolouvação de Trump e Putin na sequência da conversa telefônica entre os dois. Desligado o aparelho, o mundo continua igual e a tão desejada paz continua longe e difícil de alcançar. Mas o sorriso meio forçado sai bem na foto e satisfaz ao ego.

Donald Trump não tem a menor ideia do que seja a geopolítica. Talvez nem chegue a se dar conta de que as relações entre os diferentes países são regidas por fios sutis e sensíveis, e que um leve esbarrão na teia repercute em todo o trançado. Sua especialidade são os negócios.

Dizem que é excelente homem de negócios, agressivo, resistente, incisivo. Não há razão para duvidar de suas habilidades. O problema é que relações internacionais não devem ser tratadas como quem compra uma peça de tecido ou meio lote de terreno. É grave que um presidente seja a tal ponto desconectado da dualidade entre diplomacia e negócios. Os dois mais recentes presidentes de nossa maltratada república tinham ambos algo de Trump.

Quanto aos negócios, não sei, mas o fato é que nenhum dos dois manjava lhufas de diplomacia. Daí o tempo perdido por Bolsonaro que passou seu mandato vituperando contra a China, insultando a primeira-dama da França e arrumando encrenca gratuita com uma dúzia de outros países. Lula seguiu pelo mesmo caminho. Arrogante e soberbo, destratou o presidente da Ucrânia e deu ao mundo seu peculiar diagnóstico pessoal segundo o qual a Crimeia, parte integrante do território ucraniano, tinha de ser entregue ao invasor. Sua dose cavalar de orgulho levou-o ainda a arrumar encrenca com Israel, país onde acabou sendo declarado “persona non grata” – vejam que cúmulo!

Mas essas trapalhadas não perturbaram o equilíbrio do planeta. E isso por uma razão simples: o Brasil não são os EUA. Dirigentes de um país periférico, carente, militarmente pouco significativo, nossos figurões são tigres sem dentes, que não assustam. Já o presidente dos EUA, quando faz das suas, assusta. E muito.

Quando Trump pega o telefone e chama Pútin para darem cabo, juntos, à guerra provocada pela invasão russa à Ucrânia, toda a teia dos relacionamentos globais estremece. É que o presidente americano, certamente sem se dar conta, acaba de entrar de sola num terreno espinhoso, cujos problemas não podem ser resolvidos no grito, nem no par ou ímpar, nem no dadinho.

Está fazendo três anos que a grande Rússia invadiu a pequena Ucrânia. Os invadidos vêm lutando com muita bravura, tanto que até agora seguraram o exército de Pútin. Milhões de ucranianos fugiram do país e se asilaram na Europa que, generosa, os acolheu a todos. Faz três anos que todos os países europeus vêm ajudando a Ucrânia, cada um conforme suas possibilidades. Faz três anos também que os EUA vêm ajudando com fornecimento de material bélico, sem o qual a Ucrânia não teria resistido.

De repente, chega um sujeito de pé grande, vira o jogo e, sem avisar aos aliados, decide entrar em comunicação com o ditador do país agressor, passando por cima do país agredido e de todos os aliados que contribuíram para segurar até agora o tirano. Imagine a que ponto a geopolítica está assustada. Não é todos os dias que se assiste a uma traição tão flagrante e tão desenvolta.

A não ser que, nas trevas da equipe de Trump, um raio de luz consiga penetrar e ensinar que não é assim que se joga esse jogo. Do jeito que está, o presidente americano está reabilitando o ditador russo e condenando a pobre Ucrânia a uma existência de medo, sob a ameaça permanente do apetite expansionista do vizinho e grande irmão moscovita.

Talvez nem a Otan resista a essa inacreditável quebra de aliança.

Os onze milhões

 

José Horta Manzano

Uma maluquice incomoda muito a gente
Duas maluquices incomodam muito mais

Duas maluquices incomodam muito a gente
Três maluquices incomodam muito mais

E assim por diante…

Donald Trump entrou de sola no segundo mandato. Desde o primeiro momento, soltou um festival de maluquices que tem assustado muita gente. No entanto, dado que cada maluquice empurra a anterior para a tumba do esquecimento midiático, as primeiras já passaram para segundo plano.

A primeira (assustadora) medida que Trump tomou foi garantir que cumpriria ao pé da letra a ameaça de expulsar onze milhões de cidadãos estrangeiros que vivem ilegalmente no território dos EUA. Por mais que soe impossível de cumprir, promessa de presidente costuma ser levada a sério.

Convém considerar que será necessário expulsar uma média de 7.500 clandestinos por dia – dia sim, outro também, sábados e domingos incluídos – para atingir a meta dos onze milhões nos 1.460 dias do mandato. Trocando em miúdos, será necessário mobilizar em permanência entre 100 e 150 aviões das forças aéreas americanas, cada um com capacidade de 100 passageiros em média. Todos farão rotações incessantes, ida e volta, rápida parada para embarque, desembarque, abastecimento e troca de equipagem. Vai sair caro.

Dessa primeira maluquice do presidente-estrela, apesar de ela ser missão impossível, já se fala menos. A atenção do planeta está voltada para a maluquice seguinte, o aumento brutal nas taxas de importação de nações amigas e/ou inimigas, tanto faz. Canadá, México, China entram no mesmo molde. Os outros países estão preocupados na expectativa de serem os próximos da lista.

Especialistas garantem que essa guerra de tarifas alfandegárias vai causar a ruína da própria economia dos EUA. Será uma pena. Trump, veja você, só dura 4 anos. Por seu lado, se a China preencher o lugar dos Estados Unidos declinantes, teremos de viver por décadas sob a lei de Pequim.

EUA e a caquistocracia

by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense
via Correio Braziliense

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 30 janeiro 2025

Corria a última década do século passado quando a palavra internet começou a circular. Ela já existia antes, mas só circulava entre peritos e iniciados. Naquela época, corria a voz de que logo logo essa tal de internet seria introduzida na firma em que eu trabalhava. A curiosidade me levou a procurar me informar junto a um colega mais enfronhado.

Por meio de esquemas e desenhos rabiscados num canto da mesa, o rapaz me explicou que internet representava o futuro da telecomunicação. Permitia que qualquer um, da comodidade de seu escritório, se comunicasse com qualquer pessoa ao redor do globo, instantaneamente, sem custo. Perguntei quem era o dono dessa maravilha. Quem se maravilhou com a resposta fui eu: a invenção não tinha dono.

Como assim, não tem dono? Confesso que não entendi bem como uma estrutura gigantesca poderia vir a existir e funcionar sem dono. Os anos passaram e internet se tornou a companheira inseparável de parte considerável da humanidade. Hoje em dia, sem internet, nada mais funciona. Nem trem, nem avião, nem hospital, nem firma, nem telefone. Nada mesmo.

Surgiram as redes sociais – que às vezes dá vontade de chamar de “redes associais”. Foram chegando de mansinho, infiltraram-se entre jóvens e maduros, entre ricos e remediados, entre inteligentes e cretinos. Com raras exceções aqui e ali, enredaram as gentes. (“Enredar” é o próprio de toda rede que se preza, pois não?)

O que antes se aparentava a fenômeno passageiro acabou tornando-se um tique mundial: ninguém dá dois passos sem consultar suas “redes” pra conferir se o planeta continua de pé. Para muitos, as redes se tornaram o único veículo de informação. Só que tem uma coisa: o advento das redes sociais enquadrou e canalizou a liberdade que a internet prometia 30 anos atrás. Aquela sonhada “cabeça fresca e cabelos ao vento” foi acaparada pelas redes sociais, com formatação imposta e chuva de anúncios publicitários.

Um dia a gente acorda e descobre que a internet livre de dono não passou de sonho fugaz. As redes que hoje canalizam os fluxos da comunicação humana têm nome, endereço e, sobretudo, proprietário. O que, até outro dia, parecia um espaço de total liberdade já não é exatamente um. Firmas têm dono, e donos impõem sua visão de mundo. Com o crescimento exponencial dos negócios, os donos das redes enricaram. Insaciáveis, não se contentam com os bilhões arrecadados. Querem mais, muito mais.

Ao se dar conta de que Donald Trump se preparava para assumir a presidência cercado de bilionários, aí incluídos os donos das redes sociais, Joe Biden alertou, em seu discurso de despedida, para o perigo de os Estados Unidos virem a ser governados por um clube de bilionários.

Sem tirar-lhe a razão, convém acrescentar que, entre esses magnatas, estão os proprietários das maiores redes sociais do planeta, como Twitter (agora chamada X), Facebook, Whatsapp, Instagram. Que o mundo seja governado por ricaços é compreensível, tem sido assim desde sempre. A novidade é ver aninhados no poder os donos dos canais que, com frequência, exercem a função dos confessionários de antigamente. É preocupante deixar alegrias e penas accessíveis a um nababo que, com o auxílio da IA, terá nas mãos uma massa de conhecimentos que lhe conferem poder extraordiário sobre cada um dos habitantes do planeta.

Dispor desse arsenal de informações e sentar à mesa do homem imprevisível que lidera o país mais poderoso é bagagem perigosa como dinamite. Explosiva. O único caminho para minorar o problema seria que todos cancelassem sua inscrição nas redes. Mas… cancelar, quem há de?

Os Estados Unidos de Trump 2.0, a julgar pelos nomes já anunciados de ministros e auxiliares, não prenunciam contar com um governo de sumidades. Está mais para um “L’État c’est moi” de Louis 14, com um magnata de temperamento narcisístico e explosivo no centro de uma corte de adoradores, alguns tão magnatas quanto ele ou mais. Uns dizem “amém” e outros respondem “amém nós todos”.

Que ninguém se engane: nos EUA, está instalado o governo dos piores, a caquistocracia.

Plaza Strip

by Jean Galvão (1972), desenhista paulista
via Folha de São Paulo

José Horta Manzano

Este sábado 25 de janeiro, tive confirmação de minha teoria sobre o perigo dos pronunciamentos que líderes fazem quando estão fora de casa. Quando estão de viagem no estrangeiro ou também no avião que os conduz de um lugar a outro, chefes de Estado e chefes de governo deveriam prestar extrema atenção às palavras que proferem. Políticos de alto coturno já tiveram de encerrar a carreira devido a uma frase imprudente pronunciada em viagem. Há anos escrevi um post sobre o assunto.

Com um impressionante barulho de fundo – eu nâo imaginava que o 747 Air Force One fosse tão barulhento – Trump conversou uns vinte minutos com jornalistas que viajavam com ele, num estilo pingue-pongue (perguntas breves e respostas rápidas).

O assunto principal era a guerra de Israel em Gaza. Donald Trump exprimiu seu desejo de esvaziar totalmente a Faixa de Gaza (2 milhões de habitantes!) e despachar essa população para os países vizinhos, Egito e Jordânia.

Aqui tenho de abrir um parêntese. Convém estabelecer uma correlação entre a espantosa ideia revelada no avião e as palavras que o próprio Trump pronunciou logo depois de ter sido empossado. No dia da posse, o novo presidente disse que Gaza “realmente tem de ser reconstruída de um jeito diferente”. Ele acrescentou que “Gaza é muito interessante por gozar de localização espetacular à beira-mar, no melhor clima, onde tudo é bom. Coisas lindas poderiam ser feitas lá”.

Nesse ponto, é bom sentar, tomar uma respiração profunda e refletir um instante.

Esvaziar? Expulsar aquela ralé? Limpar o terreno? Construir coisas lindas? Vindas de quem enricou no ramo imobiliário e mantém negócios na indústria hoteleira, essas palavras fazem sentido. Não são elucubrações de um qualquer, são projetos com começo, meio e fim, feitos por quem é do ramo. É capaz até de o orçamento estar pronto.

Esses acontecimentos me inspiram pelo menos duas reflexões.

A primeira
Donald Trump mais uma vez passa recibo de absoluta inaptidão para as funções que ocupa. Apesar das lantejoulas e dos paetês, salta aos olhos sua ignorância profunda de História Geral, em especial da História do Oriente Médio. Tampouco sabe como funcionam as relações entre estados. No vácuo de sua cabecinha, cabe a ideia de dar, aos países vizinhos, ordem de abrir a fronteira e aceitar os milhões de infelizes habitantes de Gaza. E pronto, o problema está resolvido.

Ignora que cada país tem sua soberania, seus problemas, seus objetivos em política interna e externa. E que, apesar de receberem ajuda dos Estados Unidos, nenhum deles está disposto a importar milhões de estrangeiros só para agradar Donald Trump. Se o problema é encontrar um pouso para os gazeus, por que é que o presidente não os leva diretamente para os EUA? Por que não lhes daria um pequeno território para viverem tranquilos, longe dos israelenses e das bombas? É feio dar esmola com o chapéu alheio, como Trump está fazendo.

Os eleitores de Donald, que vivem alienados do mundo, que não leem nada, que não assistem nem ao jornal da tevê, que só se informam pelas redes trumpistas, nunca vão se inteirar do que se passa em Gaza, nome que só conhecem de ouvir falar. Trump pode dizer ou fazer o que bem entender, que seus fãs vão continuar usando um boné vermelho escrito “Make America great again”. E vão continuar votando no Salvador.

A segunda
Mais uma vez, Trump mostra que só se lembra da raça humana em tempos de eleição. Fora isso, para ele, os seres humanos não passam de peões, peças sem grande valor alinhadas num tabuleiro. Tirá-las do caminho ou eliminá-las faz parte do jogo e não lhe causa engulhos. É tão humanista, flexível e empático quanto uma porta de aço. Fechada.

Os EUA não são nenhuma Finlândia, nenhuma Islândia, países onde a distância entre os abastados e os necessitados é pequena. No país de Trump, há amplo contingente populacional de renda baixíssima, que não tem nem como tratar da saúde ou dos dentes. Depois de “limpar” a Faixa de Gaza, o que é que Trump pretende fazer com esses infelizes? Fazer uma limpeza de terreno, tirá-los do caminho e despachá-los para longe da vista, digamos, para a Groenlândia?

Inepto, ignorante e desumano, assim é o miliardário que hoje governa o país mais poderoso do mundo. E certamente assim são os que o cercam, miliardários ou intrometidos. É um clube em que cada sócio puxa a brasa para sua sardinha sem ligar a mínima para as necessidades do populacho.

A continuar nesse passo, daqui a pouco tempo Gaza terá se tornado destino turístico mundial, com palmeiras à beira-mar, livre de árabes pobres, com hotéis, cassinos, “resorts” de luxo e cais especiais para grandes iates. Seu nome será mudado. Em vez de Gaza Strip, será Plaza Strip, um spot internacional de luxo aberto aos nababos de todo o planeta. Naturalmente, os árabes serão acolhidos de braços abertos – desde que sejam endinheirados.

Tu não te manca?

by Laerte Coutinho (1951-), desenhista paulista
via Folha de S. Paulo

José Horta Manzano

Chega a ser irritante a insistência do ex-presidente Bolsonaro em fazer de conta que ainda é o que já deixou de ser. De fato, um indivíduo que foi apeado do poder há dois anos e que é hoje inelegível e indiciado em um balaio de crimes deixou de ser um cidadão comum, como a maioria de seus concidadãos. Ele é hoje uma pessoa suspeita de ter praticado crimes e tem, portanto, contas a prestar à justiça.

Você e eu não vivemos sob “medidas cautelares” impostas pela justiça do país. Não temos de bater o ponto na delegacia; não precisamos pedir licença para visitar quem nos dê na telha; não estamos de passaporte retido pelas autoridades, impedidos de pôr o pé fora do país. Bolsonaro não pode dizer o mesmo. Suas liberdades estão cerceadas. É um indivíduo a um passo da infâmia de tornar-se réu da justiça criminal.

Apesar disso, ele volta e meia dá uma de joão sem braço e manda seus advogados solicitarem ao STF favores aos quais não faz jus. Sua proeza mais recente foi pleitear lhe concedessem autorização especial para reaver o passaporte e partir para uns dias de vilegiatura em Washington (EUA). A-do-ra-ria prestigiar(?) os festejos da tomada de posse de Donald Trump como presidente do país. Se conseguisse tirar uma selfie ao lado do empossado, então, seria a glória, a consagração.

Ó Bolsonaro, tu não te manca não, cara? – é assim que a gente costumava arrematar uma ousadia desse calibre. É impressionante como certos caras se consideram importantes como se fossem figurinha carimbada, enquanto não passam de reles figurinha rasgada. Não ornam mais nem álbum de criança.

Por que, raios, a justiça concederia favores especiais a um sujeito que passou os quatro anos de seu mandato a invectivar as instituições da república, o Judiciário em particular?

Que ele curta o empossamento de seu amigo Donald pela tevê, como todo o mundo, sentado no sofá da sala. Que aproveite, porque, quando estiver em cana, talvez nem direito a televisão lhe concedam.