Pelo fim dos anos 70, numa época em que eu trabalhava para uma firma americana estabelecida em São Paulo, recebemos um visitante dos EEUU. Lá pelas tantas, em meio a um bate-papo despretensioso, não me lembro mais por que razão, ele se saiu com esta: life is cheap in this country ― a vida é barata neste País.
Levei um bom tempo tentando decifrar a mensagem do forasteiro. Certamente ele não se referia ao preço dos gêneros alimentícios, nem ao salário dos funcionários ― que, naquela época como hoje, andava um bocado defasado se comparado com os países mais adiantados.
Com o passar dos anos, confrontando fatos brasileiros com acontecimentos internacionais, fui pouco a pouco me dando conta do alcance das palavras do visitante. Acredito que hoje consigo decodificar o significado delas.
Faz umas duas semanas, os jornais deram, nas páginas internas, a notícia de que o dono de um restaurante havia assassinado um cliente. O motivo? Uma discussão provocada por uma reclamação sobre uma diferença de 7 reais na conta da refeição. Sete reais! Uma vida ceifada por três dólares! Para reavivar memórias curtas, aqui está a informação publicada pela Folha de São Paulo.
Estes dias, repeteco fúnebre. Desta feita, foi a vez de o dono de um restaurante ser presenteado com bilhete de ida simples para o necrotério em consequência de um litígio sobre uma conta de 8 reais. Oito reais! Quem esteve passeando na Polinésia semana passada pode se atualizar relendo a informação dada pelo Correio Braziliense.
Poderia ter acontecido com o distinto leitor, com a elegante leitora, com qualquer um de nós. Ou não?
A notícia de que um jovem desequilibrado trucidou 20 pessoas numa escola americana, faz alguns dias, chocou e comoveu o mundo. Baldes de tinta foram gastos em tentativas de explicação do tresloucado gesto. Jornais da Guatemala, da Somália e da Mongólia repercutiram a pavorosa informação.
Que eu tenha visto, salvo escassas notas internas de nossa mídia, poucos se interessaram pelos homicídios tupiniquins. Um filósofo de botequim poderia até chegar à conclusão de que massacres só chamam a atenção quando as vítimas são numerosas. Ou ricas e famosas.
Vamos, minha gente, matutemos um instante. Cometer o irreparável contra um semelhante já era, por si, uma barbárie condenada pelos neandertais, cinquenta mil anos atrás. Fazê-lo hoje, em pleno século XXI, por um punhado de reais ultrapassa o entendimento. É surrealista.
Desgraçadamente, como sabemos todos, selvagerias como essas acontecem diariamente em nosso País. As duas que mencionei só tiveram direito a menção na imprensa por terem sido perpetradas em recintos públicos de grandes cidades. Bateladas de acontecimentos semelhantes passam em branco. Sabe Deus o que se comete quotidianamente nos grotões de Santa Sebastiana do Fundão ou de Jururu d’Oeste.
Onde está o erro? Por que é que a constatação do visitante de 35 anos atrás permanece tão atual? De que serve adotar linguagem politicamente correta, patrocinar manifestações esportivas prestigiosas, trombetear crescimento econômico, enquanto o valor da vida humana continua tão insignificante?
Questão de simples preposição, o nosso idioma tem mais sutilezas que o idioma inglês:
o preço DE vida e o preço DA vida.
Abraços caros, wilma.
CurtirCurtir