Amigos do alheio e Força Pública

José Horta Manzano

Assalto 1Quarta-feira, importante jornal de Paris fez análise da violência e da criminalidade que se impõem como regra de vida no Brasil. O quotidiano Libération, de orientação socialista, preocupa-se com o que está por vir daqui a um ano, quando o Rio hospedará os Jogos Olímpicos de verão.

A reportagem começa relatando o ataque de que foi vítima, faz algumas semanas, um ciclista francês de 19 anos na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, justamente onde se disputarão algumas provas dos JOs.

JO 2016Menciona, em seguida, menino de 14 anos esfaqueado mês passado por uma malta de jovens que lhe surrupiaram a bicicleta. Também lembra as facadas desfechadas domingo passado numa turista vietnamita cuja única culpa era ter atravessado meio mundo para apreciar a Cidade Maravilhosa.

O caso mais recente fecha a lista macabra. Trata-se do cardiologista assassinado na orla da lagoa por ogros imbecis interessados em subtrair-lhe a bicicleta. O artigo traz declaração de figurões, prefeito, governador. Cada um tem solução pronta na algibeira: adiantamento da idade da maioridade penal, intensificação do policiamento, luta contra desigualdades sociais, instalação de unidades ditas ‘pacificadoras’ em favelas.

Rio de Janeiro 2Conjecturo. Não tenho estatísticas criminais de cinquenta anos atrás. Mas posso assegurar meus leitores mais jovens que, meio século atrás, não nos invadia o sentimento de insegurança hoje onipresente.

Crimes passionais, sempre houve. Faziam a euforia de jornais populares. Na época, quem quisesse se informar só tinha o rádio e a imprensa. Brincando com coisa séria, a gente dizia que, se aqueles jornais sensacionalistas fossem espremidos, sairia sangue.

Ladrão 3Latrocínio era acontecimento relativamente raro. Furtos eram bem mais frequentes que roubos. «Amigos do alheio» – como eram chamados os ladrões – tinham comportamento refinado. Para começar, não costumavam andar armados. Bater carteiras era técnica requintada: finório, o punguista profissional aliviava a vítima de seus pertences sem ser notado por ninguém. De tirar o chapéu.

Policiamento sempre houve – nem mais nem menos que hoje. Os soldados da Força Pública, como dizíamos, não nos pareciam mais numerosos que os policiais atuais. A desigualdade social acho que era até mais acentuada que hoje: pobre era pobre, rico era rico, sem nada no meio.

O que terá mudado então? Por que é que o sentimento de vulnerabilidade é mais agudo hoje? Não tenho a resposta na algibeira. A meu ver, o problema vem de longe e, do jeito que as coisas vão, tende a agravar-se.

Goste-se ou não, parece-me evidente: a grande culpada é a sociedade brasileira, tomada como um todo. O relaxamento que começou, tímido, na efervescência dos anos 1970, não foi detectado a tempo pelos que seguram as rédeas da nação. As novas gerações foram abandonadas ao deus-dará. Medidas de formação e de orientação, que deveriam ter sido implementadas desde os bancos escolares, não o foram. O relaxamento gerou a permissividade, que descambou para a leniência. Estamos com um pé no «liberou geral».

JO 2016 2Aumentar o número de policiais, adiantar a maioridade penal, construir cadeias suplementares – nenhuma dessas medidas, isoladamente, vai adiantar. O sentimento de pertencimento a uma sociedade tem de ser incutido no povo brasileiro. Não é tarefa simples nem rápida. Mas toda longa caminhada começa com o primeiro passo.

Não há outra saída. A perdurar o atual vale-tudo, a sociedade brasileira não sobreviverá. Faz tempo que a saúva deixou de ser a maior ameaça. País onde criminosos condenados são louvados como «heróis do povo» e contraventores são eleitos ministros da Suprema Corte encaminha-se, célere, para a anomia. Ou bagunça total, se preferirem.

2 pensamentos sobre “Amigos do alheio e Força Pública

  1. Louvou-se o jeitinho brasileiro durante mais de meio século, o que se comprovou ser um desajeito. Criaram-se posturas do tipo “ser malandro”, uma expressão que deixou o terreno da licença poética, quando até então resumia simplesmente aquele pobre que se dava ao luxo de viver na boêmia. Passou isto a significar a “arte” de tirar proveito. Ser malandro, hoje em dia, é quase uma aspiração a ser político. Já a política, por sua vez, é a “arte” de levar a malandragem para o terreno da técnica apurada. Populismo cultural (e político) consagrou a desonestidade como um atalho para a prosperidade. Somou-se a isto a instigação à irresponsabilidade com o abandono das boas maneiras, quando desde cedo a criança passa a ter obrigação de imitar os adultos nos hábitos da conquista e na submissão do afeto romântico ao instinto (tem que mostrar com quem se parece, a começar pela camisa do clube de futebol, antes mesmo de lhe nascerem os dentes de leite). Professores passaram de aterrorizantes para aterrorizados, sem que se pensasse num meio-termo, já que os pais passaram a ser cúmplices quando diante de filhos cujo caráter fraco não pode ser polido em sala de aula, porque não lhes é dito para admirar o modelo do mestre (que muitas vezes é apresentado como um fracassado e cujos valores morais recebem como resposta a indiferença). Afinal de contas, a Pátria está cada vez menos educadora e, a cada dia, pior representada.

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  2. Li atenciosamente seu texto, pois, não é fácil abordar o assunto, visto que, são tantos detalhes, tantas as coisas que influenciaram e influenciam a conjuntura atual. Ao fim do texto, concordo plenamente.

    Vou dar um pitaco. Juntamos: 1) geração vazia e ostentadora que a sociedade como um todo criou contra si mesma ao deixar “correr solta” sem educação básica da família e da escola, sem os mínimos valores morais, (mesmo que valores aparentes, mas, pelo menos havia um “norte” ao principiante que quisesse se integrar à sociedade). 2) Desarmamos os cidadãos e plantamos nas mentes destes para NÃO REAGIR A QUALQUER SITUAÇÃO DE CRIME. – fermento necessário para que o bolo de menores e maiores “amigos do alheio” se alastrasse.

    Assisti ontem à reportagem do cardiologista. Me sensibilizou. Os filhos dele descobriram uma matéria na internet de um ciclista esfaqueado. Desconfiaram que era o pai, porque, ele não tinha voltado pra casa.

    Estamos vivendo tempos de guerra. Só que as armas estão só para o lado inimigo. Inimigo convicto: da impunidade, da liberdade para seus criminosos atos. E só pra frisar o que bem já disse: o problema não é a desigualdade social. Repare, é tamanha a certeza de que não reagiremos ao roubo ou seja lá o que for, que está aumentando o número de crimes com facas…

    Tenho a sorte de nunca ter passado por nada semelhante. Mas, sabermos de coisas estarrecedoras ocorridas no bairro, não é raro. E, estou falando de um bairro pacato da zona leste de São Paulo.

    Já estamos em guerra há muito tempo… o tempo necessário para se concluir que alguém lucra muito com tudo isso. Que é preciso mudar. Que tem que haver reforma política, testar outras formas de eleger e de fiscalizar esses profissionais que se tornaram profissionais do alheio – políticos.

    É. É guerra.

    Grande abraço.

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