Os peixe

by Kleber Sales/CB/D.A Press

José Horta Manzano

Alguns anos atrás, o Ministério da Educação deu seu aval a uma publicação que reconhecia frases do tipo «os menino pega os peixe» como adequadas em certos contextos. Foi um deus nos acuda. Baldes de tinta foram gastos em aplausos entusiasmados e reclamações indignadas. Embora já não provoque tanto alvoroço, o assunto ressurge de tempo em tempo.

Na época, houve quem entendesse que o ensino da língua portuguesa, com a anuência do MEC, acelerava sua descida aos infernos. Artigos inflamados brotaram da pluma daqueles que, tendo-se esfalfado para aperfeiçoar seu conhecimento da língua, sentiam-se frustrados como se o esforço tivesse sido vão. Com que então, todo esse sacrifício não vale mais que dez réis de mel coado?

Houve quem aplaudisse a boa-nova. Afinal, já era hora de oficializar a existência de uma língua brasileira, distinta da matriz lusa. Muitos exultaram ao ver abolidos os grilhões que nos prendem a normas gramaticais exógenas. Ouviu-se, nas entrelinhas de alguns artigos, um grito de independência definitiva, eco e epílogo do brado de 1822.

Vejo exagero nos dois campos. Não é certo enxergar, nesse episódio, nem o prenúncio do banimento do português dito culto, nem a acessão da fala popular ao status de língua oficial. Quando há impasse, o bom-senso manda dar uma espiada no quintal de quem já enfrentou o mesmo problema. Por que reinventar a roda? Se uma solução dada funcionou lá, periga funcionar aqui também.

Qualquer conhecedor da língua alemã pode visitar qualquer lugarejo alemão, do Mar Báltico à Bavária, sem encontrar problema em se fazer entender. O mesmo fenômeno se repete na Itália, das Dolomitas até a ponta da Sicília. Nosso viajante constatará idêntica situação na Grã-Bretanha, na França, na Espanha e em inúmeros outros países. Imaginará até que isso é natural, que foi sempre assim. Pois equivoca-se.

Os falares regionais estão longe de desaparecer. A língua materna de um bávaro não é a mesma de um brandeburguês, embora os dois sejam alemães. A prosa coloquial de um siciliano não é a de um vêneto, não obstante serem ambos italianos. Um catalão, em família ou entre amigos, não usa o mesmo falar de um asturiano nas mesmas condições. Como é possível?

Faz tempo que esse fenômeno é estudado. Uma nação composta de populações que utilizam falares variados tem de recorrer a uma Dachsprache, uma língua-teto. Assim, numerosos povos vivem num universo até certo ponto bilíngue. No Brasil, vivemos uma situação esquizofrênica, uma diglossia em que as variantes populares são desvalorizadas, estigmatizadas, negadas até.

Imbuída do nobre objetivo de pacificar e unificar nosso imenso território, a autoridade central – imperial primeiro, republicana em seguida – usou de seu poder para atrofiar os falares regionais, chegando a negar-lhes a existência, a fim de sufocar no nascedouro quaisquer veleidades de regionalismos independentistas.

Fazia sentido. Politicamente, foi sucesso total. A América Portuguesa não se fragmentou, e faz quase um século que nosso país não é palco de conflitos separatistas. Mas essa história gerou um efeito colateral. Todo brasileiro aprendeu, desde criança, esta verdade incontestável: o Brasil não tem dialetos – afirmação ousada que acabou por criar em nós todos uma insegurança linguística. A doutrina oficial afirma que temos uma só língua. Ora, eu não falo como está escrito nos livros, portanto… eu falo errado! Todos os brasileiros sofrem desse complexo de «falar errado». Mas estão enganados.

Nenhum de nós jamais erra ao usar a própria língua materna, aquela que aprendeu desde criança, utilizada por seu grupo social. Se a palavra dialeto pode chocar, utilizemos o termo variante. O Brasil tem, sim, dezenas de variantes linguísticas que podem até, em casos extremos, dificultar a intercompreensão. É tolice abordar esse tema sob um viés nacionalista. Justamente por causa dessa grande variedade de falares, nós brasileiros temos necessidade absoluta de uma língua-teto estável e normatizada.

Cabe às autoridades encarregadas da instrução pública dissipar falsas crenças. A elas compete fazer que os brasileiros entendam que não «falam errado». Mas a elas cabe sobretudo ensinar a norma culta e esclarecer que tal aprendizado, longe de ser ato de submissão a uma remota ex-metrópole, é a chave da intercomunicação entre todos os compatriotas. A elas cumpre também incentivar a preservação e a valorização das variantes regionais.

Informalmente, «os menino pode pegar tudo os peixe». Na hora de escrever, convém saber que os meninos pegam os peixes. Cai melhor.

Seita

José Horta Manzano

Não se assuste o distinto leitor com o palavrão que vem a seguir. É o nome de uma língua: o protoindo-europeu. Bem, não é exatamente uma língua no sentido que damos habitualmente a essa palavra – um falar homogêneo usado por um povo como meio de comunicação. É, antes, uma criação hipotética, uma reconstrução feita ‘de trás pra diante’. Num trabalho de paciência beneditina, a partir de palavras existentes em línguas modernas aparentadas, linguistas procuram encontrar o tronco, o ancestral comum. Palavra por palavra, vai-se recompondo a língua-mãe.

Pronto, não me estendo mais. Minha intenção não é ministrar curso de linguística. Só queria que ninguém ficasse assustado com o nome do antepassado longínquo. Quando se sabe o que é, o protoindo-europeu se torna manso feito coelhinho.

Supõe-se que a língua ancestral contasse com uma raiz *sekw-, responsável por extensa prole que aparece no latim e em boa parte das línguas europeias. Chegou ao latim como sequi – verbo que significa seguir, vir depois. Em nossa língua, uma baciada de termos provém do mesmo ancestral.

Uns mais, outros menos, todos conservam algum traço do sentido original: seguinte (o que vem depois), conseguir (ir atrás de), perseguir (ir atrás de), prosseguir (continuar seguindo), segundo (o que vem depois, o que se segue ao primeiro), sequência/consequência (o que vem em seguida), obséquio (ir atrás do que se supõe ser o desejo do outro), sequestrar (perseguir e apoderar-se do objeto da perseguição), executar (prosseguir até a realização), sócio (o que caminha junto, o que segue o outro).

Seita é fruto da mesma árvore. Nos tempos de antigamente, a palavra tinha significado neutro, isto é, não carregava julgamento de valor. Seita não diferia muito do sentido que damos hoje a partido, a entidade que congrega os seguidores de determinada ideia.

Ao longo dos séculos, a palavra assumiu valor claramente pejorativo. Hoje, sectários – os componentes de uma seita – são os que divergem frontalmente da doutrina majoritária e preferem seguir orientação de um guru político ou espiritual. São olhados pela maioria como se estivessem fora da lei.

É curioso notar que maiorias e minorias são instáveis, portanto, evoluem. Assim, os que são hoje vistos como sectários, por serem devotos de uma seita minoritária, podem se tornar majoritários amanhã. A partir daí, sectários serão os outros. E o mundo continua a girar.

PT ou BR

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 jun 2015

Ortografia 2Dia 13 de maio, comemoramos a Lei Áurea, que pôs fim à escravidão oficial e entrou para a hagiologia nacional. Em Portugal, o 13 de maio celebra a Virgem de Fátima. Este ano, porém, um clamor quase empanou o fervor. É que, justamente nesse dia, entrou oficialmente em vigor, em terras lusas, a grafia determinada pelo Acordo Ortográfico alinhavado em 1990 pelos integrantes do clube lusófono.

No Brasil, a resistência ao AO90 foi pouca, não passou de protestos frouxos. O adiamento da entrada em vigor, programada agora para o fim deste ano, nem tinha razão de ser. Na prática, Inês é morta: a nova grafia já mandou a antiga às favas.

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

Mais do que pelo sol tropical, o brasileiro tem o couro curtido pelas lambadas que levou ao longo dos séculos. Revoluções, golpes de Estado, implantação e supressão súbita de leis, reviravoltas políticas repentinas e constantes, insegurança jurídica causam aflição crônica. Com paciência beneditina e resignação bovina, aprendemos a engolir pronunciamientos e a lidar com eles. Dançar conforme a música não é, entre nós, mera figura de estilo.

Calejados por sucessivas reformas ortográficas, não opusemos grande resistência a essa enésima modificação. O que mais nos incomoda é o pouco tempo que tem decorrido entre remodelações. Pessoas que, em 1990, tinham 55 anos ou mais viram-se obrigadas a aprender a escrever pela quarta vez! Alfabetizadas pela antiga grafia pseudoetimológica, já tinham sido forçadas a se adaptar à reforma de 1943 e à de 1971. A de 1990 amolava, sim, ainda que o desconforto não se tenha convertido em rebelião.

Orthographia 1Já em Portugal, a perspectiva de alterar hábitos de escrita encontrou oposição vigorosa. A resistência não se prendia aos mesmos motivos que provocavam mau humor no Brasil. O problema estava mais para orgulho ferido que para simples aborrecimento.

De um século para cá, houve numerosas tentativas de harmonização da escrita entre Brasil e Portugal. Nenhuma vingou. Em 1907, a Academia Brasileira de Letras propôs novas regras, que não foram seguidas nem mesmo no Brasil. Em 1911, Lisboa alterou profundamente a escrita – mas a novidade só valeu para Portugal. Em 1931, nova tentativa de aproximação gorou. O Brasil fez grande reforma em 1943, ignorada por Portugal. Em 1945, foi a vez de Portugal remodelar sua escrita, sem que o Brasil acompanhasse.

Placa 15O AO90 propunha-se a acertar o passo desse fado do linguista doido. Mas a medida – ressentida em Portugal como insuportável intromissão estrangeira na língua, um crime de lesa-pátria, um terremoto – mexeu com os brios da nação e levantou protesto maciço. Nem a finalidade explícita da reforma, a unificação da língua escrita, aplacou os ânimos.

Conceda-se que, em Portugal, a reforma desfigura uma batelada de palavras de uso frequente, o que explica a grita, os libelos inflamados e a objeção indignada. Gente de peso, figuras públicas, escritores, políticos, linguistas opuseram-se ostensivamente às novas regras. Blogues de resistência cívica continuam na luta ainda agora.

Peço ao distinto leitor a amabilidade de lançar uma vista a estes dois fragmentos.

Interligne vertical 12«Minha mulher a dias, que labuta asinha mas esbanja lixívia em sanitas e autoclismos, queixou-se do novo lanço com portagem que lhe cabe enfrentar, com a carrinha, na hora de ponta. Posto que o trecho tenha ficado giro, sabe a desperdício. Deixa a molesta sensação de cobres terem sido deitados fora.»

«O abaixo assignado promette aos seus freguezes que todas as encommendas effectuar-se-hão com a maior promptidão e exactidão. Tambem encarrega-se de n’ellas ageitar quaesquer eventuaes concertos.»

O primeiro parágrafo, que segue escrupulosamente as normas do AO90, foi escrito em português europeu. Qualquer cidadão luso o lerá sem perder uma palavra. O segundo trecho, calcado em anúncio publicado num jornal brasileiro faz 150 anos, foi grafado no estilo antediluviano da época – mas em português do Brasil.

by Alexandre Affonso, desenhista

by Alexandre Affonso, desenhista

Essas duas passagens mostram que, para a mútua compreensão, pouco conta a grafia. Ainda que se alcançasse a harmonização, o efeito seria o de emplastro em perna de pau. Por mais que se reforme a escrita, a variante europeia e a brasileira seguirão, impávidas, inexorável rota de afastamento.

Pragmáticos e despidos de exaltações nacionalistas, softwares continuam a oferecer ambas as variantes: português-pt e português-br, à escolha do freguês. O AO90 ilustra a desabusada tirada de Horácio: «Parturient montes, nascetur ridiculus mus» – a montanha pariu um ridículo camundongo.