1,6 milhão?

Agência Brasil

José Horta Manzano

A Agência Brasil contou, todo o mundo copiou. A manchete é bastante precisa: “Show de Madonna reúne 1,6 milhão de pessoas em Copacabana”. Se tivesse dito “reúne 1,6 milhão”, já estaria de bom tamanho, visto que todos entendem tratar-se de “pessoas”. Mas o manchetista achou que a exatidão vale mais que a imprecisão.

A mídia europeia, que consultei, não deixou a ocasião passar em branco. Repetiram todos a contagem expressiva: 1,6 milhão (de pessoas, naturalmente)! Afinal, estava ali a prova de que um dos shows de maior plateia do mundo tinha ocorrido nas areias de Copacabana.

Passada uma semana, o assunto já amornou embora seus ecos ainda surjam aqui e ali, em bate-papos de boteco. E não é que o Instituto Datafolha publicou neste sábado o resultado de uma pesquisa traiçoeira, que vai decepcionar muita gente.

Valendo-se de um método novo, que passa até pela utilização de fotos aéreas do Google, o instituto concluiu que, no espaço em que a multidão se amontoou, não cabem mais de 875 mil pessoas. Assim mesmo, apertando muito, com 7 pessoas por metro quadrado. 1,6 milhão? Nem por sonho. Pode esquecer.

Não estou sabendo se há alguma rixa pessoal entre os que fizeram esse estudo (875 mil) e os que fizeram a primeira contagem (1,6 milhão). Se não for isso, esse novo estudo deixa no ar um climão do tipo: “Erraram eles ou erramos nós?”.

A contagem “científica” do instituto tinha de ter saído bem mais rapidamente, no dia do show ou no dia seguinte. Hoje, passada uma semana, é tarde demais. A nova contagem não tem serventia.

Não acredito que o levantamento do Datafolha contribua para a serenidade da atmosfera nacional. Na verdade, não serve pra nada, a não ser como jogada de marketing em causa própria: “Vejam como somos fantásticos, nós! Sabemos contar melhor que vosmicês!”.

Num ambiente nacional de polarização sistemática de tudo o que se diz e de tudo o que se faz, melhor teria sido se tivessem calado.

Termômetro da sociedade

José Horta Manzano

Que as redes se tornaram o termômetro maior da sociedade mundial, ninguém há de discordar. Pois essas redes às vezes me parecem um tanto hipócritas. Ou estarão desnorteadas.

A foto acima circulou pela internet. É um instantâneo do círculo mais chegado a Bolsonaro, colhido no show que a cantora Madonna estrelou sábado passado no Rio de Janeiro. Em princípio, seria mais uma imagem banal, semelhante a milhares de outros selfies tirados durante o concerto da diva. Mas este aqui tem uma carga diferenciada, como se diz hoje em dia.

As redes dos bolsonaristas se interessam por tudo o que diz respeito ao Jair, ídolo deles. Pois eles torceram o nariz para a foto, que elevou o nível de tensões internas preexistentes na extrema direita.

Entre os admiradores do capitão, forte contingente idealiza um mundo de sonho, sem pecados, sem erotismo, todo regradinho, sem desvios comportamentais de natureza sexual. A estrela do show de sábado não é conhecida por seu puritanismo. Bem ao contrário, nunca escondeu suas ideias de mulher liberada, empoderada, livre de preconceitos de ordem sexual.

Ora, ver que os colaboradores mais próximos do capitão – incluindo seu advogado pessoal – assistiram a um espetáculo a tal ponto ímpio deu frio na barriga de muito bolsonarista radical. A luta pela decência moral e contra toda desenvoltura sexual, razão de ser de todo cidadão de extrema direita, não combina com o escândalo dado pelos integrantes do primeiro escalão da seita bolsonárica que assistiram ao show de Madonna e ainda ousaram tirar essa foto com tanto sorriso.

Compreende-se que os demais seguidores do capitão, que se inteiraram do acontecido pelas redes, tenham ficado chocados e desorientados.

Quanto a nós, que não rezamos por essa cartilha, o que salta aos olhos são outros detalhes reveladores.

  • Como de costume, a galera vem do clube da testosterona, onde menina não entra. Para eles, lugar de mulher é certamente em casa, cuidando da numerosa prole. Como Deus manda.
  • Como de costume, a confraria é composta unicamente de homens brancos (ou quase brancos). É um conciliábulo em que diversidade não entra. As esposas? Decerto em casa, cerzindo as meias.

Agora dá pra entender como é que Madonna consegue reunir um milhão e meio em Copacabana. Ela, que não é boba, não faz diferença entre espectadores de esquerda ou de extrema direita. Quer que venham todos, desde que aplaudam.

A enchente do 41

Porto Alegre: enchente de 1941

José Horta Manzano

Assinalo um relato do qual, pessoalmente, não havia ouvido falar: a enchente que o Rio Grande do Sul sofreu pouco mais de oitenta anos atrás. O jornal Globo publicou hoje uma carta redigida em 1941 por uma jovem gaúcha. A moça, que tinha vindo passar uns dias com a família em Porto Alegre, dá uma descrição detalhada, em conformidade com seu estatuto de “testemunha ocular da História”.

Faz a relação dos acontecimentos daqueles dias. Menciona os bairros inundados. Reclama que, durante dias, a cidade ficou às escuras, sem trens, sem água, sem leite e sem jornal. Imagine, num tempo em que o jornal era o veículo que trazia todas as notícias – as boas e as más – ficar sem ele. Era como se, hoje, internet apagasse por uma semana.

A carta conta ainda o sufoco de parentes e conhecidos da missivista que, vítimas das enchentes, tornaram-se flagelados, palavra hoje menos usada nesse contexto, substituída por desabrigados. A missiva vem numa escrita de nível equivalente ou até superior ao que hoje conhecemos como português padrão.

As frases tem começo, meio e fim. Os verbos estão bem conjugados. As concordâncias estão todas coerentes. A ortografia, anterior à reforma de 1943, ainda conserva saborosas reminiscências de outras eras: sahiram, mez, assoalho (em vez de chão), cousa horrorosa, e por aí vai.

Tenho lido reportagens e artigos sobre a catástrofe do Rio Grande do Sul. Precisou aparecer essa cartinha, pescada de algum baú (bahu?), pra lembrar que a mesma barbaridade já aconteceu em maio de 1941. Com as mesmas consequências.

É verdade que o estado era menos populoso, assim como é também verdade que as cidades tinham menos gente. Assim mesmo, morreram brasileiros, afogaram-se animais e gado, arruinaram-se lavouras, pontes, estradas e instalações.

Este escriba, que é velho mas não a esse ponto, não poderia lembrar, de memória, da enchente de 1941. Mas os jornais, que a gente imagina possuírem arquivos robustos, deveriam ter comparado, desde os primeiros dias, a inundação atual com a dos anos 1940. A mídia gaúcha relembrou outras enchentes, mas os jornais de circulação nacional foram menos atirados. Se eu não tiver zapeado.

A repetição das cheias vai continuar, ainda que nossa memória falhe. Mas a memória é um componente poderoso na prevenção e na mitigação de problemas futuros.

À direita da extrema direita

Ruy Castro (*)

Em 1932, um jornalista português, António Ferro, 37 anos, conseguiu o que era dado como impossível: entrevistar o quase inatingível António de Oliveira Salazar, todo-poderoso de um governo que se definia como ditadura. Ferro teve com Salazar longas conversas, reunidas num livro de 300 páginas com o pensamento do ditador de Portugal.

Como foram essas conversas? A bordo de carros em movimento, à mesa de jantar, em torno de “fumegantes caldos verdes” e em passeios a pé por estradas, às vezes “à beira do anoitecer” ou sob “uma chuva miudinha e enervante”. As perguntas de Ferro eram curtas, como sói, mas as respostas de Salazar eram caudalosas e demoradas, de páginas e páginas.

Como veterano entrevistador, tiro o chapéu para António Ferro. Em 1932, não havia gravadores, os alemães só lançariam o magnetofone em 1935. Ferro teve de anotar tudo a lápis ou caneta, nas terríveis condições descritas, e Salazar não as deve ter ditado com vagar. E eu queria ver Ferro taquigrafar no escuro, debaixo de chuva.

Donde só há uma explicação: todas as palavras atribuídas a Salazar são de Ferro. Por que Salazar se submeteria a tal? Porque confiava nele. Ferro era culto, ladino, muito inteligente – aliás, amigo dos modernistas brasileiros e colaborador da revista Klaxon. E os dois tinham muito em comum: desprezo pelo povo português, aversão ao Judiciário, ódio à democracia e admiração por Mussolini e Hitler.

A extrema direita costuma ser creditada a certos governantes. Mas eles talvez fossem apenas os executores da estratégia de um pensador maléfico, à direita da extrema direita. Ferro pode ter sido para Salazar o que Marinetti, criador do futurismo, foi para Mussolini; Oswald Spengler, para Hitler; Steve Bannon, para Donald Trump; e Olavo de Carvalho, para Bolsonaro.

O que nos salva é quando esses governantes se empolgam e resolvem pensar por conta própria.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Este texto foi publicado n’O Globo.

Pimenta nos olhos

José Horta Manzano

Pimenta em olhos alheios é refresco, todo o mundo sabe disso. Incêndio na casa dos outros é espetáculo. Ver terras distantes cair em apuros é curiosidade. Contagem de mortos em transtornos de grande amplitude é estatística.

Estes dias, o espetáculo dado por uma cantora chamada Madonna e o dilúvio que castiga o Rio Grande do Sul têm competido no noticiário internacional. Até os jornais televisivos falaram dos dois fatos.

Para quem vive longe do Brasil, as tragédias climáticas que têm agredido nossa terra ultimamente são como incêndio na casa dos outros: não levam ninguém ao desespero. Já para os que moram no território nacional, o drama está fisicamente mais perto, portanto é mais envolvente.

Pouco a pouco, severos desastres climáticos por toda parte vão confirmando os gritos de alerta que climatologistas têm lançado nas últimas duas décadas: o planeta está se aquecendo e o clima está mudando rapidamente.

O que se esperava para 2050 está acontecendo já agora. O ritmo das mudanças vai se acelerando. Parte da China está afundando. Com a subida do nível dos oceanos, países insulares do Pacífico estão desaparecendo. Na Europa, faz dois anos que cada mês representa um recorde de temperatura em comparação com a média das décadas anteriores para o mesmo mês.

No Brasil, o que vemos são períodos de calor extremo que se repetem, nem bem acaba um, já vem o outro. Calor fora de época, como esse que assola o Sudeste em pleno mês de maio. Que dizer então do dilúvio catastrófico que atingiu o Rio Grande do Sul, seguido de mortos, feridos, desalojados temporários (que não conseguem voltar pra casa) e desabrigados perenes (que perderam a casa). Dois terços do estado foram atingidos – uma calamidade de proporções bíblicas.

No Brasil, a praga do cepticismo climático não é tão generalizada como em outros países. Por seu lado, a consciência da urgência climática também não é arraigada entre os cidadãos.

Vamos esperar que, de tanta desgraceira, saiam pelo menos duas consequências positivas. Por um lado, que o grasnido agourento de nossos urubus negacionistas se cale; por outro lado, que o povo brasileiro comece a se conscientizar de que, para amenizar e retardar a degradação do planeta, é preciso contar com a ação conjunta de todos os habitantes da Terra.

Cada um tem de fazer sua parte. Está mais que na hora de o governo programar campanhas nacionais de conscientização.

Fiasco do 1° de maio

José Horta Manzano

O comício que Lula da Silva convocou para o 1° de maio foi um furo n’água. Você assistiu? Nem eu. Comparando com os sucessos de bilheteria do capitão, dá pena ver o grupo magrinho de admiradores que foram ouvir o Lula. Qualquer cantor(a) de renome atrairia mais gente que o velho guerreiro de Garanhuns. Como é possível que o antigo torneiro mecânico, que eletrizava multidões até algum tempo atrás, tenha perdido o charme? Qual é a razão, afinal, do fiasco de público?

A maioria dos analistas explicam, com razâo, que a esquerda murchou e que o mundo que Lula deixou ao sair da Presidência mudou muito sem que ele perceba. É verdade, mas não pode ser só isso. O mundo mudou, sim, mas, dede o ano de 2010, a Terra não passou a girar ao contrário. Mudanças houve, mas não a ponto de cortar a conexão entre o Lula e o povo.

A meu ver, o buraco é um pouco mais embaixo. Mudou o mundo e Lula, que insiste em não aceitar isso, continua a fazer de conta. Mas acredito que, nessa explicação, está faltando um ingrediente.

Acredito que o grande fator que elegeu Lula em 2022 foi o desejo de milhões de eleitores de se livrarem do capitão. Se o adversário de Luiz Inácio fosse qualquer outro, Lula muito provavelmente teria fracassado. Ele só foi eleito, repito, para derrubar Bolsonaro e desalojá-lo do Planalto.

O fato de ter sido eleito praticamente sem um esboço de programa de governo é forte indício de que, para os eleitores, isso era mero detalhe. Votaram nele assim mesmo.

A última eleição foi diferente das anteriores. Enorme contingente de brasileiros estavam fartos de Bolsonaro e queriam se livrar dele. Acredito que qualquer adversário que não fosse o Lula teria vencido por margem até mais ampla do que os magros 50,9% do antigo metalúrgico. É que, para um número considerável de eleitores, Lula era tão repulsivo que votar nele era impensável.

A meu ver, o ingrediente que está faltando nas análises que li é o fator cansaço. O Brasil está cansado de Lula. Veja só, a candidatura de Lula às presidenciais equivale, guardadas as proporções, à candidatura de um Collor de Mello. Há diversos pontos comuns entre eles. Ambos foram presidentes. Ambos deram boa contribuição ao país, Collor com a abertura do Brasil ao mundo e Lula com um olhar compassivo em direção aos desvalidos. Ambos saíram chamuscados de problemas com a justiça: um foi destituído e outro acabou na cadeia.

Por que razão uma candidatura de Collor de Mello hoje em dia é inconcebível? Porque é figura do passado. Já deu o que tinha que dar, e passou. A página está virada. O homem, que é senador da República, ainda circula pelos palácios de Brasília feito um zumbi, mas seu tempo passou.

E o Lula? Pois está nas mesmas condições: é figura do passado, já deu o que tinha pra dar, já passou, é página virada. Para alguns, deixou saudade, mas não se faz um país com saudade. Ele quis candidatar-se à Presidencia num momento crucial da vida da nação.

Venceu, mas venceu por um fio. No dia seguinte, já tinha esquecido das condições da vitória. Está governando como se tivesse sido eleito com cem porcento dos votos. Na parte internacional, envergonha o país a cada ocasião que se apresenta. Na parte nacional, está sempre atrasado, correndo atrás da realidade, que lhe escapa.

Sem Bolsonaro, Lula jamais teria sido eleito. Ele deve sua estreita vitória ao forte antibolsonarismo. Nosso país não tem demonstrado especial preferência por um governo gerontocrático. À porta dos 80 anos, Lula já está fazendo hora extra.

Seria bom não ceder à vaidade que o impele a solicitar mais um mandato. Seu oponente não será o inelegível Jair Bolsonaro. Dependendo de quem for o candidato, Lula periga ser derrotado, o que seria um desastre para sua biografia.

Que solte as cartas, passe a mão, levante-se e vá preparar sanduichinhos. Sem ele, a partida continuará do mesmo jeito. Talvez até melhor do que com ele.

Desejo de emigrar

Viagem no século XIX

José Horta Manzano

“Les voyages forment la jeunesse” (As viagens formam a juventude) é citação do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592). A frase tornou-se um aforismo da língua francesa, que ressurge na linguagem comum sempre que o contexto favorece.

Faz sentido. Viajar, sobretudo deslocando-se lenta e demoradamente como se fazia no tempo de Montaigne, é atividade excelente para alargar o horizonte de jovens e de menos jovens. Se todos os humanos pudessem passar pelo menos um ou dois anos fora da terra natal, nem que fosse só uma vez na vida, o mundo seria certamente melhor.

Li um artigo do cientista político Bruno Soller, publicado semana passada no Estadão, comentando os resultados da mais recente pesquisa do instituto RealTime Big Data. O estudo conclui que 67% dos brasileiros de 16 a 35 anos sairiam do Brasil se lhes fosse possível. Quando dizem “sairiam”, não se referem apenas a um fim de semana na Disneylândia – sairiam de fato, definitivamente, de mala e cuia, firme sempre pra frente.

Seja qual for o ângulo de leitura desse resultado, a realidade é inescapável: quando 2 em cada 3 jovens gostariam de abandonar o país sem olhar pra trás, é sinal de que alguma coisa está tragicamente errada.

Observando o número de brasileiros vivendo atualmente no exterior, já temos uma rápida visão do problema. Em Portugal, entre legalizados e clandestinos, nossos compatriotas já estão batendo no meio milhão de indivíduos. Num país de 10 milhões de habitantes, esse contingente barulhento começa a incomodar e a alimentar o discurso xenofóbico da extrema direita.

O Itamaraty calcula que pouco menos de 2 milhões de brasileiros vivam hoje nos EUA. Não há razão pra duvidar dos cálculos do governo brasileiro, mas não seria espantoso se esse número estivesse subestimado.

Pelos mesmos motivos, o total de brasileiros no exterior, calculado pelo Itamaraty em 4,6 milhões, pode, na realidade, ser maior.

O Itamaraty registra 64 mil brasileiros residindo na Suíça. O número verdadeiro é bem mais elevado. Ao longo dos anos, conheci brasileiros que vivem aqui há décadas na mais perfeita clandestinidade, sem existência administrativa, sem autorização de permanência, sem seguro de saúde, sem contribuir para a aposentadoria. São não-pessoas. E esse é, sem sombra de dúvida, o caso não invejável de multidões de brasileiros pelo mundo.

Acho de uma tristeza infinita que 2/3 dos jovens brasileiros estejam dispostos a pagar coiotes no México, a suportar clandestinidade na Europa, a ser hostilizados em Portugal, contanto que se livrem de um Brasil violento que virou purgatório para pecadores e inocentes.

A tragédia a que assistimos hoje é resultado de décadas de corrupção, de domínio das instituições por capitães do mato que se dedicam ao ataque organizado e sistemático contra os dinheiros públicos, de desprezo para com o povão abestalhado que os elege, de acaparamento do que é de todos por camarilhas hereditárias. Eis a fonte da obesa miséria que mantém na ignorância contingentes desdentados.

Se todos os brasileiros que desejam fazer as malas e partir definitivamente forem bem-sucedidos, o país vai se esvaziar. Será a solução para o excesso de natalidade, mas será a condenação do país a se tornar um Brasil decadente, cada vez mais pobre, travado, sem futuro e sem esperança.

Não sei se é isso que queremos, mas tudo indica que é a isso que nos dirigimos.

Descriminação

José Horta Manzano

Em princípio, não é na escola que surgem casos de descriminação, como está escrito na chamada. Termo empregado em textos jurídicos, a descriminação é o resultado do ato de isentar de crime um fato.

Já o que costuma, infelizmente, acontecer em escolas, são casos de discriminação. Significa tratar de modo injusto ou desigual alunos de religião, origem social ou cor de pele diferente da maioria. Quem agir assim estará cometendo ato de discriminação, ofensa prevista na lei penal.

Portanto:

  • descriminação (isentar de crime um fato) – começa com des
  • discriminação (tratar um grupo de indivíduos de forma desigual) – começa com dis.

Na minha opinião, o autor do título do artigo d’O Globo cometeu hipercorreção, que é o escriba substituir a forma correta por outra que lhe pareça ainda mais de acordo com o português culto.

É o mesmo mecanismo que leva muita gente a abandonar dispensa (que, embora seja a forma correta, soa errado) e substituir por despensa. Assim:

  • Estava resfriado e pediu despensa” da aula de Educação Física. (hipercorreção)

O artigo d’O Globo trata de casos de discriminação na escola, é claro.

Terra plana

José Horta Manzano

Pensei que, com a derrota do capitão e com o falecimento de seu mentor, a teoria do complô que deu vida à terra plana também teria caído no esquecimento. Parece que não. Vamos lá.

Semana passada saiu nova pesquisa Datafolha baseada na entrevista de mais de 2 mil brasileiros em 113 municípios do país. A pergunta era:


“Na sua opinião, qual é o formato do planeta Terra: redondo ou plano?”


Nove em cada dez entrevistados responderam “redondo”, mostrando estabilidade com o percentual aferido na pesquisa de 2019, quando a mesma pergunta tinha sido feita.

No entanto, a par desses que deram a resposta padrão, um punhado de cidadãos mostrou acreditar que a Terra é plana – e tiveram a coragem de afirmá-lo. Entre os bolsonaristas, 8% são dessa opinião. Entre os petistas, nada menos que 7% estão também convictos de que a Terra é plana. Se acrescentarmos os que não souberam responder, que são 2% entre bolsonaristas e 3% entre lulistas, chegamos a um total de 10% da população. São indivíduos que se encontram numa zona de insegurança cognitiva.

Se esses 10% estão longe de representar a maioria dos brasileiros, assim mesmo não deixam de representar um cidadão em cada dez. Não é uma franja tão desprezível. Por que essas pessoas terão aberto os braços para o ensino dessa estranha cartilha?

Que eu me lembre, não se falava em “Terra plana” décadas atrás. Esse assunto surgiu depois da vulgarização da internet. Antes disso, não era um ponto polêmico. A gente aprendia que a Terra era redonda e pronto. Seria descabido pôr em dúvida.

A internet permitiu a disseminação dessa teoria complotista. De lá deve ter vindo o alerta: “Ô galera, olho vivo! Estamos sendo enganados pelos bilionários pedófilos que dirigem o mundo. A Terra não é redonda, é plana! Qualquer um pode constatar isso a qualquer momento, em qualquer lugar. Olhe em torno de você e não se deixe enganar!”

Bolsonaristas não são donos exclusivos da internet; lulopetistas também têm acesso. Em razão disso, 10% de nossos compatriotas, de esquerda ou de extrema-direita, se deixaram contaminar pela dúvida. E hoje todo esse contingente tem suspeita (ou certeza) de que nosso planeta não é uma bola redonda, que está mais pra bola murcha e achatada.

À vista disso, pode-se concluir que o espírito acrítico capaz de aceitar qualquer bobajada não é monopólio do torcedor bolsonarista. Os fãs do lulopetismo têm, em igual medida, o mesmíssimo espírito acrítico. Os números não mentem: 10% de uns contra 10% dos outros.

Na realidade, só adquire crença em algo que não foi ensinado na escola quem teve pouca escola. Ou escola fraca. O terraplanismo brota num ambiente em que não entra a leitura. É o mesmo terreno em que surgem as demais teorias complotistas e complotizantes.

Parodiando o que se dizia nos anos 1940 e 1950 sobre a saúva:


Ou o Brasil acaba com a ignorância ou a ignorância acaba com o Brasil.


 

Orbis terrarum novissima tabula in Brasilia facta

Mapa-múndi de Nicolaes Visscher, 1658

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 25 abril 2024

No ano de 1658, o cartógrafo e editor holandês Nicolaes Visscher publicou um planisfério de sua autoria intitulado “Orbis terrarum nova et accuratissima tabula” – Mapa novo e exato do globo terrestre. O mapa, que mostra nossa Terra distribuída por dois hemisférios, é verdadeira obra de arte, com cenas mitológicas desenhadas nos quatro cantos da folha. Os dizeres são em latim, que ainda era a língua das obras sérias, não destinadas ao povão mas a um público culto.

É interessante notar que a porção de América do Sul que mais tarde viria a ser nosso país é a terra mais central do globo. Aparece em destaque, bem no meio do mundo. Europa e América do Norte se encontram distantes do meridiano central. É compreensível que Visscher tenha decidido retratar dessa maneira o mundo então conhecido. À época, muitas terras situadas na região do Oceano Pacífico ainda estavam por descobrir, o que possibilitou ao cartógrafo amputar parte do Japão e da Austrália, regiões mal conhecidas que acabaram ficando fora do mapa. Hoje, nenhum profissional sério faria mais isso.

Duas semanas atrás, o IBGE revelou ao grande público, com estrondo, sua mais recente façanha: um mapa-múndi que, enfim, coloca o Brasil no lugar que lhe é devido – no centro do mundo! Nas palavras de Doutor Pochmann, diretor do Instituto, o costume de desenhar o planisfério com o Meridiano de Greenwich no centro não passa de “projeto eurocentrista de modernidade ocidental”. São palavras panfletárias, distantes do processo científico. Na Ciência de verdade, projetos diferentes não se excluem, se complementam.

Assim mesmo, vamos admitir que o tal “projeto eurocentrista de modernidade ocidental” existe e que o Meridiano de Greenwich são suas impressões digitais. Ainda assim, será ingenuidade acreditar que o fato de o Brasil impor a seus estudantes um planisfério em que o meridiano central foi empurrado com o cotovelo vá influir nos desígnios do planeta. A Terra vai continuar a girar e o Meridiano de Greenwich continuará aparecendo no centro dos mapas-múndi que não forem impressos pelo IBGE. Eis aí o tipo de protesto naïf e inútil, que só vai servir para confundir a cabecinha de nossos estudantes, que terão mais dificuldade em entender por que razão esse meridiano foi escolhido para iniciar a contagem das 24 horas do dia.

O alvoroço gerado pela publicação do novíssimo Atlas Geográfico Escolar do IBGE destoa da seriedade do objeto. Um atlas é coleção de conhecimentos, uma enciclopédia sócio-geográfica que tem direito a ser lançada com a reverência e o recato que lhe são devidos.

Nosso cartógrafo holandês do século XVII até que tinha direito de omitir terras ainda não exploradas. Tinha também o direito de cortar as terras distantes e pouco conhecidas em dois pedaços, aparecendo um de cada lado do planisfério. Nosso IBGE, herdeiro de 150 anos de tradição de seriedade, não tem mais esse direito. Quando preparamos um mapa do Brasil, toda a atenção tem de estar focada no Brasil, evidentemente. Já quando desenhamos um mapa-múndi, nosso horizonte tem de se alargar. Além do Brasil, temos de cartografar também o resto do mundo. Se não temos capacidade de fazer isso certinho, é melhor desistir e importar planisférios já prontos.

O Novíssimo Atlas Escolar do IBGE peca em diversos aspectos. Com o deslocamento do Meridiano de Greenwich de 30 graus a leste, a Austrália aparece cortada em dois pedaços. A China e a Rússia idem. O mesmo vale para a Indonésia. Detalhe: como integrantes do G20, nenhum desses 4 países há de apreciar a travessura de nossa Novissima Tabula. Tem mais: o Canal da Mancha é descrito como “Estreito de Dover” enquanto o Estreito de Malaca aparece como “Estreito de Málaca”. Outra pérola: as Ilhas Falkland (Malvinas), território britânico, são unilateralmente atribuídas à Argentina.

Numa prova de inconsistência, a “arte de deslocar o Brasil para fazê-lo entrar à força no centro do mundo” não contaminou toda a coleção de mapas-múndi guardados no site do IBGE. De meia centena de planisférios, somente uma meia dúzia foram redesenhados conforme a novíssima versão. Os demais continuam mostrando Greenwich no centro do mapa. Parece que nem o IBGE acredita em sua própria mágica.

No centro do mundo não se entra pela janela nem pela porta dos fundos. Se um dia o Brasil chegar lá, terá que passar pela porta da frente. E ser recebido com dupla ala de guardas de honra, emplumados e engalanados.

Lula e os novos tempos

José Horta Manzano

Quando vejo a dexteridade de meus sobrinhos-netos ao lidarem com telefone celular e outros teclados ainda mais sofisticados, fico aliviado. Acho ótimo que essas modernidades tenham chegado agora, quando já não preciso mais delas. E desconfio que, mesmo mais jovem, eu não teria sido capaz de escrever mensagens num tecladinho de faz-de-conta, utilizando só a pontinha de dois dedos. Para os que, como eu, fizemos curso de dactylographia em mil novecentos e nada, escrever num celular é desafio. Ainda bem que escapei dessa.

Nos dias atuais, não seria possível aguentar o tranco de uma vida profissional sem utilizar telefones e outros instrumentos que todos usam. Para voltar à ativa, eu teria de me dobrar à evidência: é indispensável me atualizar. Só que eu não quero nem pretendo retormar o batente, portanto estou dispensado de reciclagem.

Mas tem gente que, após uma pausa de anos, decide voltar à ativa sem passar pela fase de reciclagem, porque acha muito chato ter de aprender. E vai em frente e mete as caras, crente que sua esperteza vai vencer todos os obstáculos.

Talvez o distinto leitor já se tenha dado conta de que estou pensando em nosso atual presidente, Lula da Silva.

Afastado dos negócios durante uma dúzia de anos – inclusive porque esteve preso –, Luiz Inácio quis porque quis voltar à Presidência. Dos oito anos que havia passado no cargo, só guardava lembranças felizes, de reis e rainhas, de honras e louvores, de mares de bonança singrados com sucesso. Tendo descido a rampa com 80% de popularidade, pareceu-lhe ter atingido o ponto máximo, lugar de onde não se desce mais até o fim da vida.

A realidade é mais cruel. Não é permitido a nenhum mortal conservar para sempre seu prestígio no patamar mais elevado. Se até os que morreram na glória são, com o passar dos anos, rebaixados, imagine os vivos.

O fato é que o tempo passou, novos ventos sopraram e aquela aura de demiurgo que Lula carregava se dissipou. E ele não percebeu. Ou achou que seu olho vivo daria conta de reinflar o que houvesse murchado.

Descurou a voz da experiência, que ensina o óbvio:


“Tem que reciclar, Lula! Não se opera telefone celular só com diploma de dactylographia! Tudo mudou no mundo. Toma cuidado, que tu não és mais esperto que a esperteza!”


E lá se foi o Lula, com demasiada confiança em si mesmo, achando-se capaz de dar daquelas piruetas que a idade já não lhe permitia. Estivesse, ainda, cercado de profissionais de qualidade superior a aconselhá-lo (e estivesse ele disposto a seguir os conselhos), a coisa ainda teria jeito. Mas Lula é orgulhoso e cabeçudo. Além de sua equipe nem sempre ser lá essas coisas, ele refuga os conselhos bons e acolhe os maus.

A imagem que o governo envia é um cenário todo feito de desencontros, de hesitações, de morde e assopra, de batalhas palacianas, de dois passos à frente e dois atrás. Adivinha-se um Lula com sinais inquietantes de ter perdido a mão. O que antes dava certo já não funciona, e ele não encontra a chave para resolver problemas novos. Tenta soluções antigas, que não dão cabo do enrosco.

Não sei se Luiz Inácio acha que está abafando, como nos velhos tempos, ou se já admitiu, para si mesmo, em seus pensamentos mais recônditos, que os truques e mágicas do passado já não funcionam e que ele perdeu o pé.

De um lado, temos um Bolsonaro inelegível e amedrontado, aflito para escapar da justiça; de outro, temos um Lula passivo, preocupado com picuinhas, distante dos grandes projetos do passado, mais reagindo do que agindo.

Nossa gerontocracia vem a galope, já aponta o nariz na esquina. E não vem sorridente.

Roubo de eletricidade 2.0

Lauro Jardim (*)

A prática do “gato de rico” na área de concessão da Light no Rio de Janeiro está cada vez mais sofisticada.

Enquanto o “gato de pobre” consiste na ligação direta do poste à residência do fraudador, as ligações de estabelecimentos comerciais, unidades fabris ou residências em bairros nobres já contam com aparelhos mais sofisticados para roubar energia elétrica.

Por exemplo, controles remotos e sensores de presença que detectam a presença humana e desabilitam as fraudes quando a fiscalização chega.

A Light tem tentado contra-atacar usando softwares de IA que monitoram o comportamento do consumo dos clientes para a indicação de possíveis alvos para inspeção.

Nos primeiros quatro meses de 2024, a concessionária registrou um aumento de 40% de fraudes de energia na Barra da Tijuca e na Zona Sul carioca, em comparação com o ano passado.

(*) Lauro Jardim é jornalista e mantém coluna no jornal O Globo.

Nota deste blogueiro
O jornalista fala em “bairros nobres”. Discordo. Esse novo normal, essa multiplicação de roubo de energia tira toda nobreza de qualquer bairro. Melhor falar em “bairros enricados”. Enricados mas abastardados. Porém sem nobreza, porque nobres não são.

Prédios tortos

2021: Bolsonaro rebatiza Torre di Pisa como “Torre di Pizza”

 

José Horta Manzano

Todo o mundo conhece a Torre de Pisa, a construção inclinada mais famosa do mundo. Atenção, é Torre de Pisa, e não “Torre de Pizza”, como pronunciou um antigo presidente de nosso país, aquele que comia farofa na feira de Brasília e pizza na calçada de Nova York. O nome não vem das “margheritas” nem das “calabresas”, mas sim da cidade de Pisa, ali pertinho.

A Torre de Pisa, por ser mundialmente conhecida, faz sombra a outras construções inclinadas. Aqui estão algumas delas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Verbo definir: regência

José Horta Manzano

O nobre escriba que bolou o texto acima deve ter acordado mal-humorado. Colou uma preposição para reger um verbo transitivo direto.

Esqueceu a lição de dona Yolanda: verbo transitivo direto não suporta ver preposição por perto. Quer transitar em direção a seu objeto, direto, livre e solto.

Em consequência da má escolha do verbo, o significado da chamada não ficou claro. Após releitura, acho que entendi. Sugiro: “Conselho da Petrobrás propõe pagamento de 50% dos dividendos”.

Com tanto que mexem nessa Petrobrás, como se fosse brinquedo de criança espevitada, jogado pra lá e pra cá, o cidadão prudente vai acabar se abstendo de comprar ações da companhia. O risco de turbulência é elevado.

Casa em que falta dono, todos gritam e eu abandono.

Façam como eu digo…

Lula da Silva, Rafael Correa (Equador), Hugo Chávez (Venezuela)

José Horta Manzano

Celac é acrônimo da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, organismo fundado em 2011 por um clube formado por Lula da Silva, Hugo Chávez (Venezuela) e Rafael Correa (Equador).

A organização congrega os países das Américas com exceção dos EUA e do Canadá. É uma daquelas brincadeiras adolescentes de nosso líder, que, para tentar se distanciar dos EUA, inventa soluções que acabam dando trabalho e custando dinheiro sem chegar nunca a resultados práticos. Essas pseudoassembleias emitem notas, escrevem memorandos, fazem recomendações. E só. Nada tem poder impositivo.

Pois bem, no começo desta semana, em cúpula virtual da Celac, Lula soltou uma de suas pérolas costumeiras. Em discurso veemente, passou uma carraspana no Equador por ter invadido outro dia a embaixada do México em Quito. Suas palavras:


“O que aconteceu em Quito é simplesmente inaceitável e não afeta só o México. Diz respeito a todos nós. Um pedido formal de desculpas por parte do Equador é um primeiro passo na direção correta”


Ah, na hora de passar pito nos outros, a memória humana é sempre um tanto falha. Costumamos apontar para o cisco no olho alheio sem nos dar conta da tora que está em nosso olho, já ensinava a sabedoria bíblica.

Luiz Inácio “se esqueceu” de episódio recente no qual ele mesmo ficou pessoalmente na berlinda. Todos se lembram de que, numa de suas falas jogadas fora, Luiz Inácio colocou em pé de igualdade a matança de civis cometida atualmente por militares israelenses na Faixa de Gaza e a exterminação de judeus ordenada por Hitler nos anos 1940.

Seu discurso abordou um tema delicadíssimo, que toca fundo na sensibilidade do mundo civilizado, de maneira especial nos integrantes da comunidade israelita. É terreno minado no qual convém pisar com extremo cuidado. Lula entrou de sola, como se diz. E se estrepou. Levou pancada de todos os lados.

A mídia internacional foi unânime em repudiar suas palavras. Autoridades israelenses o declararam persona non grata, uma afronta em termos de diplomacia e uma vergonha pessoal para nosso presidente. O Estado de Israel fez saber que estava à espera de um pedido de desculpas.

Lula se escondeu atrás dos vitrais do Alvorada. Dias depois, para esquivar-se, disse jamais ter pronunciado o termo Holocausto, como se fosse esse o problema. E deu o assunto por encerrado. As desculpas não vieram até hoje.

Isso visto, soa indecente ele dar pito num país inteiro (o Equador) e exigir uma postura da qual ele mesmo outro dia fugiu.

A memória humana é falha…

Observação
O Lula marcou bobeira ao não apresentar escusas pelas palavras ofensivas que pronunciou. Ele não ofendeu ninguém de propósito, só disse o que disse por pura ignorância histórica. Portanto, bastava ter escrito uma nota assim: “Não era minha intenção ofender ninguém. Se alguém se sentiu melindrado com minhas palavras, peço desculpas”. Com isso, a polêmica murchava na hora. Quis bancar o marrudinho, e deu no que deu.

Irã e prisões de segurança máxima

José Horta Manzano

O ataque lançado pela República Islâmica do Irã sobre o Estado de Israel, na noite de sábado passado, envolveu mais de 300 foguetes, incluindo 170 drones, 30 mísseis de cruzeiro e pelo menos 110 mísseis balísticos.

Para se defender, Israel contou com a ajuda de três potências: os EUA, a França e a Grã-Bretanha. Esses países contam com bases militares na região, e conseguiram deter e destruir boa parte das armas voadoras antes que atingissem território israelense. O exército de Israel fez o resto. Daí os estragos terem sido tão limitados.

Não precisa ser especialista em assuntos militares pra se dar conta de que o Irã lançou mão de apreciável quantidade de foguetes – arsenal fabricado por eles, ainda por cima. Tivessem atirado três bombinhas, é possível que Israel, ao constatar a fragilidade do inimigo, já estivesse enviando seus próprios foguetes para destruir Teerã.

Acredito que a amplidão do ataque seja um dos fatores que estão fazendo o governo de Tel Aviv hesitar. Se os dois países entrarem em guerra de verdade, o risco é grande de o equilíbrio regional (e talvez mundial) sentir o baque e sair abalado.

Faz quase duas décadas que o Irã vive sob sanções pesadas aplicadas pelos EUA e também pelos países aliados. Na teoria, o Irã deveria estar exangue, com a língua de fora, pedindo arreglo. Não foi o que se viu sábado passado. Analistas tentam minimizar a força do Irã, argumentando que o arsenal é antiquado, fora de moda, impreciso e isto e aquilo. Me parece mais é desculpa de despeitado.

Antiquado ou não, o arsenal despachado pelo Irã não bate com a imagem de um país mendigo, de pires na mão, pária do mundo civilizado. Como é possível? “Fatta la legge, fatta la burla”, como dizem os italianos (a lei nem bem acabou de ser feita, já se dá um jeito de fraudá-la).

Nosso cândido Lula da Silva gosta de se apresentar como “aliado” deste ou daquele país, o Irã entre eles. Ser aliado é mais do que sair na foto ao lado do “parceiro”. Inclui unir forças em busca de um objetivo comum. Qual é o objetivo comum entre Brasil e Irã, além de buscar o progresso do povo respectivo? Concluo que o Brasil não é “aliado” de fato do Irã. Ainda bem.

O fato é que o Irã tem petróleo e o mundo precisa de petróleo. Pronto, a conexão está feita. Dinheiro não compra tudo, mas quase. Petróleo pode ser excelente moeda de pagamento. Se uns se recusam a comprar óleo iraniano, outros fecham os olhos para os excessos do regime dos aiatolás e entram na fila dos compradores.

Assim, com dinheiro na mão e meio quilo de esperteza, qualquer país “pária” dá logo um jeito de passar por cima das sanções e adquirir tudo o que quiser. Com os equipamentos assim importados, os iranianos vão construindo seus drones e seus mísseis. Não vamos esquecer que, junto com a Turquia, o Irã está entre os melhores fornecedores de drones da Rússia.

Tudo isso mostra que impor sanções é o mesmo que tapar um cano d’água com peneira de taquara: o fluxo pode até diminuir, mas a água continua passando.

Os protocolos de segurança de uma prisão “de segurança máxima” funcionam de forma semelhante. Por mais medidas que se tomem, como celas revistadas, algemas no passeio, informação compartimentada e encarcerados isolados, sempre resta alguma brecha. E é por ali que passa toda a comunicação que não devia passar.

Em conclusão, vamos dizer que não somos “aliados” de papel passado do Irã nem temos prisões de absoluta “segurança máxima”. Jair Messias já quebrou os dentes quando levou um ‘chega pra lá’ de Viktor Orbán, seu “aliado” húngaro. Não me venha agora Luiz Inácio com suas manias de considerar seus ditadores de estimação como “aliados do Brasil”.

Tanto Bolsonaro quanto Lula estão errados. O capitão, após a decepção da embaixada, já caiu na realidade. Entendeu que, em política internacional, não existe amizade.

E tu, Lula, vais continuar batendo na mesma tecla?

A madeira e a lenha

José Horta Manzano

O site Metrópoles, plataforma de informação, traz hoje notícia desnorteante. A história começa pelos anos 1980. Sob os céus cinzentos e pesados da Brasília de então, foram plantadas algumas centenas de hectares de pinheiros, espécie não nativa mas adaptável ao bioma da região.

De lá pra cá, as árvores cresceram bonito e formaram um bosque frondoso, sobressaindo da vegetação local como um espaço exótico que faz esquecer os calores do cerrado e se imaginar imerso no frescor das serras do Sul.

Durante quarenta anos foi assim. Mas tudo tem um fim, Seu Valentim. O Instituto Brasília Ambiental, uma espécie de Ibama local, é responsável pela manutenção da Floresta Distrital, que cresce naquele entorno do Lago Paranoá. Esse instituto, por razões que a razão tem dificuldade em explicar, decidiu que um bosque de pinheiros francamente não combina com o bioma local.

De fato, pinheiro destoa no meio da vegetação do cerrado. E daí? O pequeno pedaço de floresta de coníferas (473 hectares) não faz mal a ninguém, não atrapalha o crescimento de outras árvores em seu entorno, só encanta os olhos de quem o visita.

Nada feito. O Instituto responsável bateu pé firme na solução que lhe pareceu a melhor: derrubar aquela floresta de coníferas para extirpar as intrusas. E depois, como é que fica? Depois a gente vê o que faz.

E assim foi feito. Motosserras (daquelas com pneus da altura de um homem) foram chamadas e, em três tempos, botaram abaixo os pinheiros. A madeira? Parte vai para a serraria; o resto vai virar lenha(!).

Como se sabe, a queima de lenha é responsável pelo aumento dos gases de efeito estufa. Portanto, nossa floresta deixou de capturar e passou a emitir esses gases. Bonito!

Fico pensando (e, quando penso, há sempre o risco de brotar alguma ideia maquiavélica). A floresta de pinheiros tinha comemorado seus 40 aninhos. Brasília já fez 60. Todos hão de concordar que tampouco a nova capital da República faz parte do bioma do cerrado. Foi ali plantada como um corpo estranho, uma brotoeja trazida de fora, que significou a perda de hectares de vegetação logo substituída pelo concreto.

O distinto leitor e a encantadora leitora já entenderam aonde quero chegar. É isso mesmo. Está na hora de demolir a Brasília oficial, aquelas fieiras de prédios de estilo soviético tardio, que envelheceu mal. Que seja tudo varrido e que o espaço seja devolvido ao bioma originário, campestre, com flores e passarinhos. E, sobretudo, apolítico.

E para onde vamos mudar a Brasília oficial? Pois faremos como foi feito com os pinheiros: uma parte vai para a serraria, o resto vira lenha. Com tanta cara de pau que tem por ali, há de queimar com gosto.