De transposições

José Horta Manzano

Notícias recentes vêm confirmar que, no Brasil, transposição ― conceito da vez ― nos cria dois problemas: um estratégico e um semântico.

Do lado estratégico
A dita «transposição do Rio São Francisco» expõe, para quem quiser ver, o resultado do descaso secular com que nossos dirigentes têm encarado a governança.

Tecnologia existe há muito tempo. O Canal de Suez foi escavado 150 anos atrás, entre 1859 e 1869, e o Canal do Panamá abriu suas comportas para o primeiro navio há exatos 100 anos. Se, no Brasil, o paliativo para as secas do Nordeste se resumiu a cavoucar açudes, não terá sido por falta de tecnologia, mas por abundância de negligência.

Nascente do São Francisco

Nascente do Rio São Francisco

Apareceu, estes dias, nova «transposição», a ser arquitetada em regime de urgência urgentíssima. O caso agora é mais grave. A rarefação da água atinge a maior metrópole do país. No sufoco, surgiu a ideia de fazer vir água do Rio Paraíba do Sul.

Temos aí outro exemplo acabado de pouco caso. Setenta anos atrás, São Paulo já tinha passado a marca de 2 milhões de habitantes. Não cresceu da noite para o dia. Se nada se fez até hoje, foi por pura incapacidade de planejamento.

Para piorar, a obra levará 14 meses, quando faltam apenas 3 meses para o grande circo da «Copa das copas» montar seu picadeiro. Bala perdida na rua e água sumida no hotel ― taí um buquê de boas-vindas pra turista nenhum botar defeito.

Do lado semântico
O dicionário ensina que transpor (ou fazer uma transposição) significa mudar de um lugar para outro. Não é, que se saiba, o efeito desejado. Não está nos planos do mais descabeçado de nossos dirigentes transferir as águas do São Francisco para novo leito. Tampouco o Paraíba do Sul deverá deixar de correr de São Paulo até sua foz nos Campos dos Goitacases.

Bacia do Paraíba do Sul Fonte: Agência Nacional de Águas

Bacia do Rio Paraíba do Sul
Fonte: Agência Nacional de Águas

A palavra «transposição» está sendo utilizada erroneamente. A língua oferece numerosas opções bem mais adequadas. Partição, bipartição, tripartição, subdivisão, partilha, repartição, divisão, repartimento, redistribuição são algumas delas. Há outras.

Que fazer? O descaso ― com a governança e com a língua ― parece fazer parte da paisagem do país. Não muda nunca.

Um pensamento sobre “De transposições

  1. Pingback: A Muralha da China e o Rio São Francisco – Brasil de Longe

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