Cliente oculto

E195-E2

José Horta Manzano

O site brasileiro Aeroin.net, maior plataforma latino-americana especializada em aeronáutica, traz uma informação da Embraer. O construtor brasileiro de aviões acaba de receber pedido firme para cinco aparelhos E195-E2, a mais recente versão da linha E195. O valor do contrato é de US$ 390 milhões (R$ 2 bi).

Agora vem a parte curiosa da notícia: o nome do comprador é mantido em segredo. Não é todos os dias que uma transação desse porte leva o carimbo do secretismo. Que comprador teria feito tal exigência? E por quê?

A pergunta é legítima. Tudo o que é misterioso atrai as atenções. Como exemplo, sinta no ar a insuportável curiosidade dos brasileiros em torno dos 100 anos de segredo impostos pelo capitão a certas verdades incômodas. O que é que ele esconde?

Dado o inusitado da coisa, pode-se imaginar o pior, ou seja, que essa transação, se revelada ao mundo, pudesse dar dores de cabeça ao fabricante, ao comprador e quiçá até ao governo brasileiro.

Não sendo íntimo dos deuses, resta-me especular. Uma hipótese que me parece bem plausível é que o cliente final seja uma companhia aérea russa. Como todos sabem, a Rússia vive sob forte embargo de importação e exportação desde que invadiu a vizinha Ucrânia.

Entre os milhares de itens cujo comércio está rigorosamente suspenso, estão aeronaves e peças sobressalentes para aviação. A Rússia tem um território imenso. De leste a oeste, há cerca de 8 mil quilômetros de distância. Viagens aéreas são uma necessidade no país. Aviões voam o tempo todo.

Devido ao tráfego intenso, o desgaste mecânico dos aviões é acelerado. Os aparelhos são praticamente todos estrangeiros: Boeing, Airbus e até algum Embraer. Os dois primeiros fabricantes, sediados nos EUA e na Europa, estão proibidos de comerciar com a Rússia.

Nesses casos, escolhe-se um avião com mais horas de voo para ser depenado. Quebrou uma peça neste aparelho? Repõe-se com uma do avião que virou almoxarifado. Quebrou peça naquele outro avião? Repeteco.

Só que, nesse tira e põe, as peças vão rareando. Acaba chegando o dia em que vai ficando impossível voar. Não podendo comprar dos EUA nem da Europa, que fazem os russos?

Compram do Brasil, é minha hipótese. O Embraer E195-E2 é concorrente direto do Airbus A220. Não é o ideal para voos transatlânticos, mas dá conta do recado em matéria de viagens internas na Rússia.

E qual a razão do segredo? Tanto pode ser exigência do cliente quanto do próprio fabricante. Se a transação viesse à tona, Rússia e Brasil seriam acusados de contornar o embargo. É verdade que o Brasil não aderiu às restrições internacionais, mas assim mesmo ficaria feio que justamente uma empresa brasileira furasse o bloqueio. É o tipo de procedimento que não abre portas.

Talvez o nome da companhia aérea apareça um dia. São raros os segredos eternos. É mais fácil esconder dinheiro na cueca do que cinco aviões. Na cueca, aliás, avião não cabe.

Golpe

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Sete e meia da manhã, toca o telefone. Atendo já um pouco apreensiva, pensando em quem poderia estar chamando àquela hora. Do outro lado, uma voz chorosa implora: “Mãe, me ajuda, mãe!”

Senti pela primeira vez o impulso de estender a mão àquela desconhecida, mas não disse nada. A voz desesperada da filha que eu nunca tive exigia de mim uma escuta terapêutica. Pareceu-me mais sábio apenas esperar pelo restante do discurso de praxe: “Mãe, fui sequestrada. Eles estão querendo me matar se você não der o que eles querem. Por favor, mãe, não desligue nem avise a polícia…”

Não aconteceu. Aparentemente ‒ refleti ‒ meu silêncio desarticulou a cabeça da moça. Sem saber ao certo como prosseguir, depois de uns segundos de hesitação, ela repetiu o pedido de ajuda, só colocando um pouco mais de ênfase na sua pretensa postura de fragilização: “Mãe, mãe…por favor, me ajuda, mãe!!!”

Senti uma onda de ternura tomar conta de mim. Afinal, aquela moça estava mesmo claramente necessitada de orientação materna. Era evidente que ela nunca tivera alguém que a aconselhasse, que lhe desse colo e a levasse a sério pelo menos uma vez na vida. Seria eu esse alguém?

Na dúvida, permaneci em silêncio. Mesmo assim, nas entrelinhas do mais absoluto mutismo, eu lhe disse tantas coisas… Falei da dor da impotência de toda mãe de não ser capaz de moldar o caráter dos filhos de acordo com seus valores mais caros. Repeti a cantilena religiosa de que, depois do pecado original, estamos todos condenados a ganhar a vida com o suor de nossos corpos. Perguntei por quais circunstâncias do destino ela escolhera recorrer a tramoias para sobreviver. Sem julgá-la, afirmei convicta que, em última instância, ela precisava ajudar a si mesma a encontrar o caminho do bem.

Não adiantou, ela não escutou minha maternagem silenciosa. Fez pouco do meu aconselhamento, não reconheceu o desabrochar tardio do meu instinto materno. Pena, eu já estava até gostando de estar em posição de orientar uma mulher adulta, sem ter tido o trabalho de amamentar, trocar fraldas, consolar nos tombos, encorajar as aventuras, educar, compartilhar segredos femininos.

A moça, infelizmente, não agarrou a oportunidade tão inusitada que eu lhe dava de personalizar o golpe, de demonstrar criatividade para, quem sabe, inaugurar uma nova franquia de crime. Continuou repetindo mecanicamente seu pedido de ajuda, como um disco quebrado. Comecei a me irritar. Parece que os jovens de hoje em dia, disse para meus botões, continuam a acreditar que envelhecimento é sinônimo de emburrecimento, lentidão de raciocínio, perda de iniciativa e de noção de lógica.

Aos poucos, fui esmorecendo na decisão de oferecer-lhe suporte. Começava a ficar claro que a hora da doutrinação tinha passado. O caráter da moça estava irremediavelmente formado, para o bem e para o mal. ‘Respeito não se exige, conquista-se’, repeti para mim mesma.

Desliguei.

Dentro de mim, no entanto, o diálogo mudo prosseguiu. Uma sensação amarga de tristeza subiu-me pela garganta. É que, inadvertidamente, ao tentar ajudar uma filha hipotética, eu acabei me dando conta de que meu tempo de gestação de rebentos à minha imagem e semelhança terminara.

Não dê muita importância a isso, a maternidade nunca foi mesmo para você ‒ consolei-me.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O veto do voto

José Horta Manzano

Voto 1Fala-se muito, estes dias, em acoplar ao voto eletrônico uma espécie de recibo impresso, um comprovante. Aprova-se a lei, não se aprova. Veta-se a lei, não se veta. Derruba-se o veto, não se derruba. Depois de caminho longo, parece que a lei não sai e o recibo não vem.

Ainda que viesse a ser implantado, o comprovante impresso já viria com pecado original. Se ele mencionar o nome do candidato escolhido pelo eleitor, o segredo do voto estará irremediavelmente comprometido. Se não mencionar, não terá utilidade nenhuma em eventual controle da veracidade da apuração. Em resumo, não resolve o problema.

Urna 5Até os anos 70-80, a indústria brasileira contava com um escudo de proteção contra toda concorrência estrangeira. Naqueles tempos, era muito difícil conseguir licença para importar o que fosse. Quem quisesse trazer um produto de fora tinha de provar a absoluta inexistência de «similar» nacional. A significação de «similar» nunca foi bem definida. Ficava, o mais das vezes, a cargo do funcionário da Cacex, órgão do Banco do Brasil que cuidava do assunto.

Se a política de restrição de importação teve consequências positivas, teve também sua face sombria. Do lado positivo, a dificuldade em obter componentes e produtos estrangeiros desenvolveu capacidade industrial nacional que, sem isso, teria ficado adormecida. Do lado negativo, alguns ramos da indústria, na certeza de que nenhum concorrente estrangeiro viria perturbar-lhes o sossego, afrouxaram, deixaram de investir e pararam no tempo.

Urna 2A indústria eletrônica fazia parte destes últimos. Enquanto a fabricação de componentes fervilhava lá fora preparando a revolução informática que os PCs trariam, os fabricantes nacionais cochilavam tranquilos.

Com os anos 90, veio a liberação das importações e, consequentemente, o sucateamento do que se vinha fazendo no Brasil nesse campo. Pouco habituado à automação, o brasileiro recebeu as primeiras máquinas de votar com o fervor dos principiantes. Em poucas horas, chegava-se ao resultado final da apuração, quando o costume era esperar dias e dias! Foi argumento avassalador. Em poucos anos, as maquinetas se espalharam pelo país, numa prova evidente de modernidade.

urna 4O brasileiro de hoje está habituado ao manejo de engenhocas eletrônicas e sabe que o uso delas pode ser facilmente desvirtuado. Depois de descobrir tanta falcatrua nas altas esferas, é natural que fique com um pé atrás. Por que, raios, o Brasil é o único país a adotar esse sistema? Acaso somos mais ricos, mais espertos ou mais avançados que Alemanha, Japão, EUA, Suécia, França e os demais?

Na Suíça, país que conheço bem, vota-se geralmente por correspondência, semanas antes da data final. Quem não quiser gastar dinheiro com selo, pode depositar o envelope com o voto na caixa de cartas que fica na entrada da prefeitura de cada município. Os mais tradicionalistas vão pessoalmente até o local de votação no dia final, que é sempre um domingo. Podem depositar a cédula na urna até o meio-dia. Voto eletrônico? Jamais se ouviu falar disso por aqui.

O voto escrito no papel permite contagem, recontagem, verificação. Os próprios mesários do local de votação são encarregados da apuração. Fiscais de todos os partidos são bem-vindos para acompanhar. Tudo é feito às claras, sem risco de vírus, desvio, extravio ou transvio.

by Jacques Sardat (aka Cled'12), desenhista francês

by Jacques Sardat (aka Cled’12), desenhista francês

É difícil entender a razão pela qual o Brasil persiste em negar a realidade. Comprovadamente, voto em papel é mais seguro. Quem atravanca a reintrodução do voto em papel? Será o lobby dos fabricantes de maquinetas? Ou serão – Deus nos livre! – interesses inconfessáveis? Se algum distinto leitor souber, que se manifeste.

J’accuse…!

José Horta Manzano

Do ponto de vista ético, há situações que se situam no limite entre o lícito e o inadmissível. O médico, por exemplo. Prepara-se durante anos para curar doenças e salvar vidas. Um belo dia, diante de um paciente terminal atormentado por sofrimento insuportável, vê-se em postura delicada.

Acusação 2Os estudos e o tirocínio fizeram dele um salvador, um resgatador de vidas ameaçadas. No entanto, o caso de um paciente terminal sem esperança de cura é diferente. Caberá ao médico, à contracorrente do que dele normalmente se espera, contribuir para a extinção da vida? Daquela vida que ele, médico, se preparou para amparar e preservar?

É um dilema complexo que roça a medicina, a filosofia, o direito, a religião. Nossa sociedade ainda está longe de chegar a consenso. Seja qual for a decisão do legislador, certo é que desagradará ampla parcela da população.

Um outro caso me ocorre que, embora não envolva decisão de vida ou morte, situa-se também no limbo que separa o admissível do insuportável. É o conceito dito de «delação premiada», atualmente na crista da onda.

Acusação 3Todo agrupamento tem suas regras, escritas ou não. Toda família tem segredos ― que não devem ser revelados aos de fora. Toda sociedade comercial tem sua estratégia ― que não deve ser divulgada por nenhum membro, nem mesmo depois de ter deixado o emprego. Todo Estado tem uma parcela de confidencialidade ― que deve permanecer ad aeternum ao abrigo de olhares indiscretos. Todo aquele que, apartado do grupo, se puser a dar com a língua nos dentes estará traindo o juramento e renegando a ética.

Nosso ordenamento jurídico tem reconhecido, com frequência crescente, o instituto da «delação premiada», expressão infeliz. A própria palavra delatar carrega senso pejorativo. Quem delata é traidor. Joaquim Silvério dos Reis e Domingos Fernandes Calabar passaram à História Oficial do Brasil como traidores justamente por terem delatado ao adversário atividades de parceiros confiantes.

Não há como negar que a delação trazida por desertor de um grupo criminoso ajuda a desmantelar a quadrilha. Visto assim, o delator se aproxima da figura do herói salutar e proveitoso à nação. Por outro lado, o delator será sempre o alcaguete, o dedo-duro, aquele traidor que quebrou, em benefício próprio, o elo de confiança que o unia ao bando.

AcusaçãoÉ, de novo, um dilema complicado. Trair os sócios é feio, mas se for em benefício da sociedade maior é desculpável. Como ensinar isso às crianças? Não tenho a resposta. Modificar o nome da coisa já seria um bom começo. Em vez de «delação premiada», expressão paradoxal em que os dois elementos se excluem, por que não dizer «delação interessada»?

Mais vale dar a cada boi o nome que merece.

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Observação:
J’accuse…! ― Eu acuso…! ― é o título de artigo publicado em 1898 por Émile Zola, escritor francês. O autor, naquela carta aberta dirigida ao presidente da República Francesa, se posicionava num caso judiciário complicadíssimo que sacudia consciências. O caso envolvia um oficial do estado-maior do Exército, de origem judia, que tinha sido condenado por alta traição ao cabo de um processo ressentido por muitos como antissemita.

Segredo é pra quatro paredes

José Horta Manzano

Já faz um tempinho que se fala menos de Julian Assange, aquele que andou bisbilhotando mensagens confidenciais do governo americano e espalhando o resultado da façanha pela internet.

Muita gente aplaudiu. O homem foi, por um breve tempo, elevado à categoria de herói, uma espécie de Robin Hood dos tempos modernos, aquele que rouba segredos dos poderosos para distribui-los aos sem poder. Não é minha visão.

Mala diplomática 1Um bonito samba-canção de Herivelto Martins e Marino Pinto que Dalva de Oliveira gravou em 1947 (*) dizia justamente que «segredo é para quatro paredes». Naqueles tempos recuados, as paredes já tinham ouvidos, mas o som não ia muito além do quarto ao lado. O pior que podia acontecer é que algum maldizente espalhasse a fofoca pela vizinhança. Hoje não é mais assim.

A internet e os novos meios de difusão da informação abriram caminhos que nós, pioneiros, estamos ainda longe de conceber aonde vão levar. Hoje em dia, um sussurro emitido em Singapura será ouvido instantaneamente em Sydney, em Helsinque e até em Ushuaia. Quem joga informações na rede deve estar bem consciente dessa nova realidade. E o senhor Assange certamente estava quando decidiu divulgar dados obtidos por meios fraudulentos.

Na primeira metade dos anos sessenta, foi assinada a Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas. É aceita por praticamente todos os países. Até Cuba e a Coreia do Norte são membros do clube. Entre outras determinações, a Convenção de Viena reitera e regulamenta o antigo princípio da mala diplomática.

Tradução portuguesa da expressão valise diplomatique, a mala chegou, realmente, a ser uma espécie de baú. Os países signatários da convenção comprometeram-se a deixá-la passar, sem violá-la e sem controlar seu conteúdo. O nome ficou, mas a mala, nos dias atuais, se desmaterializou.

Mensagens diplomáticas transitam agora por internet. A mudança de meio de transporte, no entanto, não invalidou o princípio da inviolabilidade do conteúdo. Violá-lo continua sendo um crime. Difundir por internet o produto do crime, a informação surrupiada, é duplamente repreensível.

Os tempos do faroeste passaram. As leis são feitas para serem obedecidas. A ninguém ― salvo, naturalmente, a alguns figurões brasileiros «especiais» ― é dado desobedecer a elas. Quem o fizer, terá de prestar conta de seus atos.Mala diplomática 2

O senhor Assange cometeu um ato de pirataria. C’est plus bête que méchant, diriam os franceses, está mais para tolice que para malvadeza. Seja como for, o ato foi leviano e deu pano pra mangas. Agora, para coroar, o pirata mostra que sua coragem só funcionava quando se sentia protegido por um biombo, perdão, por uma tela de computador. Desmascarado, exposto e procurado por polícias do mundo inteiro, amoita-se num cômodo acanhado da embaixada londrina de uma pequena República sulamericana.

Na entrevista que teve a fineza de conceder a um correspondente do Estadão, Assange fez questão de se apresentar fantasiado de jogador de futebol. Uniformizado como se fosse dos nossos. É receita certeira para embevecer muita gente. Veja aqui e aqui.

Plugado e conectado, o hóspede da exígua embaixada deve estar a par da acolhida peculiar que o governo brasileiro costuma dispensar a refugiados. Deve saber que, durante a Segunda Guerra, nossas representações diplomáticas estavam instruídas a negar visto de entrada a judeus. Deve saber também que o último grande bandido internacional extraditado pelo Brasil foi Tommaso Buscetta, um mafioso pentito (arrependido), faz 30 anos. Deve ter estudado tim-tim por tim-tim o caso Battisti.

Em resumo, sabe que não poderá ― nunca mais ― atravessar fronteiras e circular livremente. Se tiver a sorte de se safar da embaixada onde se encontra encurralado, imagino que trocará o apertado Equador(2) por um refúgio no espaçoso Brasil. À beira-mar, se possível.Mala diplomática 3

Nesse particular, não tem muito a temer: muito provavelmente será aceito. Talvez de braços não tão abertos, dado que seu crime não foi de sangue, mas, assim mesmo, lo recibiremos de corazón.

Seus feitos combinam com o clima de malandragem e de traição.

(1) Quem quiser recordar o samba-canção, siga por aqui.

(2) Quem quiser assistir a um pouso no aeroporto de Quito, clique aqui.