Aplicação

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Bebida 3O Walmir sempre fora um sujeito boa-praça, simples e simpático. Era um brasileiro típico da chamada classe média, que tem esse nome justamente porque precisa fazer média com todo mundo pra poder se manter em equilíbrio. Principalmente com os credores.

Um dia foi até o banco onde mantinha uma conta. Lá chegando, foi direto procurar pelo gerente. Gerente era o que não faltava por ali. Ele procurava um para fazer aplicações. Pediram que aguardasse. Pacientemente aguardou.

O ponteiro grande do relógio ia quase completando sua volta quando lhe pediram que se sentasse em frente a um funcionário que já o aguardava do outro lado da mesa cheia de papéis. Ficava no saguão, junto a um monte de outras mesas, todas iguais, tipo vala comum, daquelas que servem para atender aos que têm cara de ter, no máximo, 3 ou – se muito – 4 dígitos na conta.

– Pois bem, seu…

– Walmir.

– Então, seu Walmir. De que o senhor está precisando?

A pergunta fazia sentido. O Walmir tinha cara de empréstimo.

– Bom, eu gostaria de fazer uma aplicação.

– Muito bem, uma aplicação. Escolheu o banco certo. Aplicação em quê? Poupança talvez?

– Na verdade, eu não sei dizer em quê. É justamente por isso que eu vim aqui. Para me aconselhar sobre o assunto.

– Bom, bom… Para aplicações pequenas, para quantias populares, aconselhamos mesmo a poupança. Rende bem e é fácil de lidar. O senhor vai ganhar sempre. Nosso banco certamente vai ajudar o senhor a lucrar sempre.

Banco 5O Walmir ajeitou-se melhor em sua cadeira. Prosseguiu:

– É que eu estou pensando em fazer uma aplicaçãozinha um pouco maior, sabe?

– Rã-rãnnn… Maior? Maior quanto?

– Bom, ainda não sei ao certo, mas é coisa por volta de uns 20 milhões talvez.

Reverência 2Nesta altura do campeonato, o gerente agitou-se todo em sua giroflex e imediatamente convidou o Walmir para acompanhá-lo até sua sala, no andar superior, onde poderiam conversar mais sossegadamente. Conforme subiam as escadas, o Walmir também ia sendo promovido. Chegou lá em cima e já era o doutor Walmir. O fato de ele nunca ter cursado faculdade e muito menos ter defendido tese era irrelevante. Uma pessoa que faz uma aplicação com um número tão robusto tem de ser tratada por doutor.

O gerente foi logo oferecendo água, café, ou, se preferisse, um uísque. Era só pedir. O Walmir preferiu o uísque, apesar de ainda ser de manhã. Foi logo servido.

– Bom, doutor Walmir, eu aconselharia aplicar esse dinheiro em CDBs ou em RDBs, mas não é bom colocar tudo num só tipo de aplicação, sabe como é. Não é seguro, sabe?

O Walmir deu um gole no uísque, enquanto pensava. O gerente prosseguiu:

– Aliás, quero que o senhor me desculpe pela sugestão da aplicação em poupança. Com essa correria do banco, num primeiro momento não percebi que falava com uma pessoa de tão alta estirpe. Espero que não esteja ofendido.

– Sei, sei… Se eu aplicar em CDBs, por exemplo, quanto me renderia?

O gerente tocou a fazer contas e mais contas, calculou e recalculou, passando o resultado ao doutor Walmir.

O Walmir pensou um pouco e aventou a hipótese de aplicar na bolsa. Queria saber, em tese, quanto lhe renderia.

O gerente imediatamente fez cálculos hipotéticos, levando em consideração o tipo de ações, o prazo da transação, a direção do vento, a pressão do ar, se iria chover ou não. Juntou um pouco de sal, passou tudo numa peneira fina e respondeu que ainda seria mais negócio investir nos CDBs ou nos RDBs mesmo. Mostrou todos os cálculos feitos no papel.

Jogo 2Indeciso, o Walmir indagou sobre a hipótese de aplicar metade num tipo de negócio e a outra metade noutro tipo.

– O senhor diz, assim, uns 10 milhões para cada uma?

O Walmir fez que sim com a cabeça. E lá foi o gerente refazer os cálculos enquanto o doutor Walmir bebericava o uísque.

O gerente tornou a mostrar todos os exaustivos planos traçados no papel. O doutor Walmir olhou atentamente cada um dos resultados, estudando qual o negócio mais vantajoso.

– Doutor Walmir, desculpe-me a pergunta, mas o senhor tem idéia de quando pretende efetivar o depósito para podermos fazer esse seu patrimônio crescer e crescer sem que o senhor tenha qualquer trabalho?

– Ainda não sei direito, mas provavelmente na semana que vem. Eu acabei de fazer o jogo da MegaSena acumulada ainda há pouco. Se eu ganhar, e com certeza desta vez eu vou ganhar, volto aqui e a gente vai fazer tudo do jeitinho que o senhor me explicou.

Jogo 1Dito isso, o copo de uísque foi discretamente retirado da frente do doutor Walmir, que agora voltou a ser tratado por seu Walmir mesmo e convidado a voltar ao banco quando – e se – tivesse o dinheiro.

“E me dá licença, que eu tenho outros negócios a tratar agora. Bom dia” – disse o gerente, apontando-lhe a porta, por onde o Walmir saiu desacompanhado.

Naquele mês constou em seu extrato um débito referente a “serviços extras”. Após investigação, revelou tratar-se do uísque servido.

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Os juros

José Horta Manzano

Estatísticas 9Nos últimos doze meses, os juros cobrados do brasileiro que ousar pedir socorro ao cheque dito «especial» subiram 43,3%. Atenção: esse foi só o aumento. O juro anual atinge agora estratosféricos 187,8%, nível mais elevado dos últimos quinze anos.

Em miúdos: quem tomar hoje algum dinheiro emprestado, daqui a um ano estará devendo praticamente o triplo! Quando se leva em conta que a inflação oficial deste ano ficou abaixo de 7%, como explicar aumento de mais de quarenta porcento nas taxas de crédito?

Estatísticas 7Vamos ver como funcionam as coisas deste lado do planeta. Na Suíça, faz já 20 anos que cheques viraram peça de museu – desapareceram de circulação. O equivalente do cheque «especial» brasileiro chama-se, aqui, crédito ao consumo. Diferencia-se do crédito hipotecário pela solidez da garantia apresentada pelo tomador do empréstimo.

No crédito hipotecário, o cliente oferece em garantia um objeto de valor igual ou superior ao do empréstimo. O mais das vezes, esse objeto é um imóvel. Em vista da robusta caução, o banco oferece juros bem camaradas. Atualmente, as taxas andam pela casa dos 2,5% ao ano.

Já o crédito ao consumo é concedido pelos bancos depois de uma conversinha com o gerente. É considerado empréstimo de alto risco, dado que o reembolso é garantido unicamente pelo salário do cliente. As taxas de juro sobem vertiginosamente. Variam de 10% a 14% ao ano. Sim, senhor, ao ano.

A variação prende-se à solvabilidade do cliente. Quanto mais sólido for seu perfil financeiro – estabilidade no emprego, salário elevado, ficha limpa –, mais baixa será a taxa. Quem fizer a tramitação por internet, sem incomodar o gerente, ainda tem direito a 20% de desconto. Essas taxas valem para empréstimos pessoais de 1.000 a 80.000 francos (3.000 a 220.000 reais).

Estatísticas 8Ah, tem mais. Banqueiro suíço não está acostumado a perder dinheiro nem a fazer obra de benemerência. Portanto, as taxas que cobram hão de ser suficientes para manter Rolls-Royces e mordomos. Por que, diabos, persiste essa brutal diferença entre as taxas decentes cobradas em países civilizados e o esbulho usurário embolsado pelos banqueiros tupiniquins? Como disse? Algo está drasticamente errado no Brasil? Parece. E não é de hoje.

Estatísticas 1A jurisprudência brasileira tende a reprimir a agiotagem, desde que não tenha sido praticada por instituição financeira. Ora vejam só… O banco tem toda liberdade de nos extorquir, sem risco, a quantia que bem lhe aprouver. Se nós, mortais comuns, ousássemos emprestar ao vizinho nas mesmas condições, passaríamos uma temporada no calabouço.

Há de ser por isso que se vê sorriso largo e permanente estampado no rosto dos banqueiros da abençoada Terra de Santa Cruz.