O desafio do sul-africano

José Horta Manzano

O empresário sul-africano Elon Musk (que adquiriu a nacionalidade americana em 2002) tem ganhado rios de dinheiro. Como ocorre com quase todos que saem de baixo e entram no clube dos imensamente ricos, o dinheiro lhe subiu à cabeça e lhe deu uma (falsa) sensação de onipotência.

O rapaz não é o único a experimentar a embriaguez do poder. Ditadores lhe fazem companhia. Putin, Kim Jong-un, Maduro, Ortega, os pranteados irmãos Castro passaram por esse estágio. Steve Jobs, Bill Gates, Jeff Bezos também. Uns mais, outros menos, todos tiveram seu momento de Tio Patinhas ou até de Deus todo-poderoso.

Nem todos sucumbem. No ramo das novas tecnologias, se bem me lembro, Musk é o único que foi tão longe, a ponto de se imaginar auxiliar de Deus-Pai ou talvez até seu substituto. Sua fortuna é tão imponente, que ninguém costuma lhe negar os favores que seus caprichos exigem.

Como muitos cidadãos de países ricos e desenvolvidos, nosso personagem lança, a países como o nosso, um olhar de desprezo enojado. Só isso explica ter metido a mão em cumbuca. Imaginou estar tratando com uma republiqueta de bananas e decidiu afrontar o ministro Alexandre de Moraes, logo ele! Apostou que o magistrado nunca ousaria tocar no seu Twitter.

Esborrachou-se no chão. Quem estourou a banca foi nosso juiz carequinha, quem diria. O bilionário caprichoso, com todos os seus dobrões, perdeu a parada. Deve estar decepcionado e furioso. Afinal, perdeu 22 milhões de adeptos, clientes que justificavam os anúncios inseridos em sua plataforma e engordavam sua conta bancária. Não são muitos países que lhe oferecem essa multidão de assinantes.

A gente fica curioso para saber o que vai acontecer daqui pra frente.

O respeitado The New York Times estampou hoje um texto que reproduzo aqui abaixo.


X began to go dark across Brazil on Saturday after the nation’s Supreme Court blocked the social network because its owner, Elon Musk, refused to comply with court orders to suspend certain accounts.

The moment posed one of the biggest tests yet of the billionaire’s efforts to transform the site into a digital town square where just about anything goes.

O X começou a apagar por todo o Brasil no sábado, depois que a Suprema Corte do país bloqueou a rede social devido ao fato de Elon Musk, seu proprietário, ter recusado cumprir ordens judiciais que o intimavam a suspender determinadas contas.

Isso representa um dos maiores testes para os esforços que o bilionário tem feito para transformar seu site numa “praça de vilarejo digital”, onde quase tudo pode rolar.


 

Conservadores atacam Moraes…

Sergio Denicoli (*)


Conservadores atacam Moraes, mas deixam STF no controle ao ignorar regulação da internet


Há muitos políticos surfando na onda da falta de regulação da Internet. São pessoas que bradam à liberdade sempre que o STF toma alguma decisão referente ao mundo online, sobretudo envolvendo as redes sociais. Mas o que eles não dizem é que estão sendo, no mínimo, hipócritas e oportunistas.

Eles certamente sabem que, quando não há uma lei clara, cabe ao Supremo criar jurisprudências. Essa é uma das tarefas primordiais da Corte. Ou seja: sem uma regulação das redes, é função de Alexandre de Moraes e dos demais ministros definirem o que vale e o que não vale.

Portanto, se há abusos, a culpa é de quem se faz de indignado para ganhar votos, mas não coloca a mão na massa para que o Brasil possa ter uma legislação clara sobre o ambiente digital.

(*) Sergio Denicoli é pós-doutor, escritor e colunista.

Este texto é parte de artigo publicado no Estadão. Aqui (para assinantes)

Manifesto Constitucionalista

Conrado Hübner Mendes (*)

A marcha do retrocesso entrou numa nova fase. Descobriram estar fácil esvaziar ou destruir a Constituição sem mudar seu texto, sem decretar formalmente seu fim. O plano de liquidação de ativos constitucionais se expressa, por um lado, numa tenebrosa agenda legislativa. Por outro, por arranjos informais entre os Poderes que rejeitam institucionalidade.

No varejo cotidiano de nossas indignações, perdemos de vista a magnitude do projeto: turbinar o colapso climático, multiplicar o fogo e o desmatamento, privatizar acesso a praias, anistiar golpistas, militarizar escolas, milicianizar polícias, legalizar milícias, armar milicianos, prender meninas estupradas e aliviar pena do estuprador de meninas, violentar indígenas, afagar milicos, desinvestir em direitos, transformar a família constitucional em família colonial e patriarcal. Transformar jurisdição em negociação de direitos indisponíveis, legislação em alocação clientelista de orçamentos secretos, sufocar capacidade governamental do Executivo.

(*) Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e em Ciência Política.

Este texto é parte de artigo publicado na Folha de S.Paulo. Aqui (para assinantes)

Fim da mídia impressa?

José Horta Manzano

A crise vem castigando, há duas décadas, o que se costumava dizer “a imprensa” e hoje se diz “a mídia impressa” ou “a mídia em papel”.

É compreensível. Com a profusão de informações e a atratividade do que desfila na telinha, só os muito aferrados continuam a ler jornal impresso. Ou os que não têm telinha à disposição – como é o caso deste escriba. Mas somos um grupo declinante e em via de rápida extinção.

O drama da mídia impressa não atinge somente os jornais brasileiros. Tirando os supergrandes como The New York Times e mais um ou outro dessa categoria, os outros andam pulando miudinho. No mundo inteiro.

Volta e meia, a cada vez que um periódico fecha as portas e sai do mercado, ressurge a velha polêmica de o Estado encampar publicações em dificuldade financeira. Parece ser boa ideia, mas é um caminho pedregoso.

De fato, jornais controlados pelo poder público perigam servir de canal de propaganda para o governo de turno, o que desvirtuaria o objetivo da imprensa, que tem vocação a ser livre de amarras oficiais.

É difícil imaginar se, daqui a duas ou três décadas, ainda haverá jornais, se ainda subsistirão quiosques ou bancas de jornal. Talvez não sobrevivam.

Nos lugares em que as autoridades estão realmente preocupadas com a população, ideias construtivas são aplicadas enquanto ainda é possível.

O governo da cidade de Genebra, na Suíça, pôs em prática um expediente interessante. Todo cidadão que atinge a idade de 18 anos recebe de presente da municipalidade uma assinatura de um ano de seu jornal preferido, edições digital e impressa.

A ideia é criar no jovem adulto o hábito de ler e, ao mesmo tempo, fidelizá-lo a um veículo de informação. O hábito de ler só traz vantagens a qualquer um. A fidelização a um jornal contribui para sua perenidade. Levando em conta a considerável utilidade pública desse programa, seu custo é mínimo.

Bem que uma pequena parte desses bilhões em emendas que têm sido encomendadas por Suas Excelências podia ser reservada para a mesma finalidade em nosso país. Deixaria muita gente feliz. O leitor, que podia até se habituar a ler jornal; o jornal, que receberia contente essa nova clientela caída do céu.

Em Genebra, que é cidade organizada, os cidadãos estão cadastrados na Prefeitura, com nome, endereço e todos os dados. O programa, portanto, se põe em movimento automaticamente.

No Brasil, a coisa é menos fluida. Mas não tem erro, basta espalhar a novidade e cada jovem adulto se apresentará onde tiver de se apresentar, documento na mão, pra receber sua fatia desse bolo de modernidade.

O genial ministro de Belíndia

by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense
via Correio Braziliense

Christovam Buarque (*)

Apesar de sua genialidade, Delfim e demais economistas “de direita” consideram que a baixa qualidade de nossa educação é consequência do subdesenvolvimento, e não que o subdesenvolvimento é consequência da baixa qualidade e da desigualdade como a educação é oferecida; por sua vez, os economistas “de esquerda” consideram que a educação de base só será bem distribuída quando a renda for bem distribuída, não que a boa distribuição de renda depende do acesso isonômico de toda população à educação de qualidade, independentemente da classe social da criança.

(*) Christovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília

Este é trecho de artigo publicado no Correio Braziliense. O texto integral está aqui.

Exportação de droga

José Horta Manzano

Sábado passado, pacotes de cocaína foram apreendidos pela Polícia Militar no Porto de Santos. Eram dezenas de pacotes, encontrados grudados num casco de navio, abaixo da linha d’água.

A mesma notícia de jornal informa ainda que cerca de 2.000 contêineres são escaneados diariamente pela Receita Federal antes de partirem do porto em direção ao exterior. O objetivo é detectar droga escondida.

Até aí, tudo bem, tudo em ordem. Polícia Militar e Receita Federal estão, cada uma por seu lado, cumprindo seu dever. Parabéns a elas.

Não sendo especialista em detecção de tráfico de droga, só me resta conjecturar. Conjecturemos, pois.

Se é verdade que, como imagino, o objetivo de nossas autoridades não é de se apossar do entorpecente, mas de desbaratar o tráfico, tenho dificuldade em entender o modo de proceder delas.

Ao apreender a droga grudada nos navios e divulgar a façanha ao grande público, a única recompensa da polícia é tirar aqueles quilos de cocaína do mercado. (Droga que será substituída rapidinho por nova remessa ilegal.)

Penso em outra maneira de agir, que não sei se seria possível, mas que me parece mais proveitosa. Ao descobrir a droga encastrada num contêiner ou colada num casco, por que é que nossa polícia não deixa a mercadoria onde está? A ideia é entrar em contacto com a polícia do país de destino do navio dando conta do que acontece.

A carga ilegal apreendida sábado último estava num navio com destino à Espanha, país que, imagino eu, está também equipado para lidar com esse tipo de criminalidade. Se a polícia espanhola fosse informada de que no contêiner número tal (ou no casco do navio tal) há uma quantidade de droga ilícita encastrada, teriam tempo de preparar uma “operação acolhida” destinada a dar ‘boa recepção’ à bandidagem.

No destino, um grupelho de criminosos virá certamente recuperar a mercadoria. Enquanto isso, no porto, a polícia está de emboscada. Tanto faz que venham de barco, por baixo d’água ou a pé. Assim que os receptadores encostarem a mão no navio, serão detidos em flagrante delito. Vão direto para o interrogatório. Com um pouco de sorte, vão acabar entregando uma parte da cadeia de comando, o que permitirá que a polícia efetue outras prisões. E assim por diante, uns delatando, outros prendendo.

Ao apreender a droga ainda no Porto de Santos, a PF fica só com a mercadoria, renunciando a todo o resto.

Devem ter alguma razão para proceder assim. Este leigo aqui desconhece qual seja.

Se esqueceram

source: Câmara dos Deputados

José Horta Manzano

Em dias de tempestade, a cada trovão que arrebentava, minha avó murmurava “Santa Bárbara!”. E ia assim, de trovão em invocação, até o tempo acalmar. Anos mais tarde fiquei sabendo que, na hagiologia católica, Santa Bárbara protege contra raios e tempestades.

Vim a conhecer também um provérbio português: “Só se lembra Santa Bárbara quando troveja”. Tem algo a ver com a ingratidão. Se a santa nos salvou um dia de ser fulminado por um raio, não precisa esperar a próxima situação de perigo para só então lembrar-se dela; convém dar-lhe um alozinho fora da precisão. Apego interessado é muito feio.

Com certa frequência, tenho lido notícias de brasileiros hostilizados em Portugal. Nem sempre isso acontece por terem cometido algum malfeito, mais frequente é serem interpelados pelo simples fato de serem brasileiros. Essa atitude me preocupa e me traz à mente lúgubres precedentes.

Penso nos judeus, nos armênios e em outros grupos étnicos que, ao longo da história, foram perseguidos pelo simples fato de serem judeus ou armênios. São agressões pérfidas e imensamente covardes.

Os brasileiros que estão em Portugal – ou em qualquer outro país – não são pessoalmente responsáveis pelo fato de haver muitos recém-imigrados nesses lugares. Se alguma queixa tem de ser feita, que seja feita aos que fazem as leis.

Li outro dia que, em Portugal, uma senhora insultou uma brasileira, na rua, sem motivo que não fosse estar irritada com a abundância de estrangeiros. “Volte para sua terra! Aqui mandamos nós!”. Ouvem-se gritos desse teor, um verdadeiro horror.

Ninguém tem o direito de xingar cidadãos na rua só pelo fato de não gostar de estrangeiros. Em Portugal há até um partido político xenófobo. Chama-se Chega. Quem adere a suas ideias, que se afilie a esse partido, vote em seus candidatos, participe de suas passeatas e manifestações. Isso pode. Xingar, não.

Saíram hoje as estatísticas oficiais da Confederação Suíça que esmiúçam os nascimentos do ano passado. O que todos querem saber é quais foram os nomes mais atribuídos aos recém-nascidos. Aqui, como em outras partes do mundo, há nomes da moda. Faz alguns anos que a moda impõe nomes curtos. Ninguém mais chama um filho de Epaminondas ou Zacarias, nem uma filha de Genoveva ou Madalena.

Em 2023, o top 5 de nomes femininos foi: Mia, Emma, Sofia, Emilia, Elena. E os cinco nomes masculinos mais atribuídos foram: Noah, Liam, Matteo, Gabriel, Leano. Acho um pouco sem graça dar a uma criança um nome da moda, que, no futuro, será igual ao de primos, colegas, vizinhos, amigos. Mas, enfim, de gosto não se deve discutir.

A justificação do título deste artigo vem agora. Junto com as estatísticas dos prenomes, saíram também as dos nomes de família. Saibam os distintos leitores que, no dia 31 de dezembro de 2023, os três sobrenomes mais comuns na Suíça de expressão francesa eram, na ordem:

1° Silva

2° Ferreira

3° Pereira

É isso mesmo. Na contagem oficial dos Serviços Federais de Estatística, sobrenomes portugueses aparecem na frente dos nomes locais. Os cidadãos portugueses que insultam imigrantes brasileiros e sugerem a eles que voltem para a terra de origem deveriam pensar nisto: os imigrantes portugueses que trabalham na Suíça são multidão! E não só na Suíça, em outros países é igual: França, Luxemburgo, Alemanha, Bélgica e outros mais. E não estou falando do século 19, mas do ano de 2023.

Posso garantir que, aqui na Suíça, jamais ouvi alguém se dirigir a um desses portugueses de maneira irrespeitosa para sugerir-lhes que voltem pra casa. As senhôras que se irritam ao cruzar com imigrantes em Portugal deveriam tomar um chazinho de humildade todas as noites antes de se deitar.

Goste-se ou não, aqui está a verdade: todos nós – todos mesmo – vimos de algum lugar.

Azar

Flor de laranjeira

José Horta Manzano

É interessante observar como a evolução das línguas é imprevisível. Há casos em que, da mesma raiz, brotam galhos diferentes. De fato, termos que descendem de um mesmo tronco podem, em casos extremos, ter significado divergente em diferentes idiomas.

Um caso curioso é o da voz árabe as-sahr (ou az-zahr), presente no falar popular e no árabe ibérico, mas ausente do árabe clássico. Na nossa língua, acabou desembocando em azar, palavra usada geralmente com significado negativo para indicar má sorte, infelicidade, revés, contratempo. Os dicionários chegam a abonar o uso de azar em circunstâncias positivas, mas essa acepção não se encontra no falar popular.

Segundo a maioria dos especialistas, os dados (de jogar) introduzidos pelos mouros ‒ que mandaram por sete séculos na Península Ibérica ‒ tinham uma flor pintada em uma das faces. Em árabe hispânico, flor se dizia az-zahr, nome que se estendeu ao dado e, em seguida, ao próprio jogo. Falando em flor, em espanhol moderno, azahar é o nome da flor de laranjeira.

Na língua de Cervantes, o termo azar não costuma ser usado com o mesmo significado que tem em português. Utiliza-se geralmente com o sentido de acaso. Para dizer ‘má sorte’, o espanhol, mais dramático, prefere falar em desgracia.

Através do espanhol, a palavra entrou no francês na Idade Média. Naquela época, a grafia ainda não estava estabilizada, o que resultou em formas um tanto fantasiosas sobretudo para palavras importadas.

O azar espanhol foi grafado hazard, com agá inicial e dê final. Mais tarde, o zê foi substituído por um esse, mas o agá inicial e o dê final permanecem até hoje. Hasard não tem sentido positivo nem negativo. Designa apenas o acaso, o imprevisível. Par hasard, expressão do dia a dia, significa por acaso.

Já em italiano, a mesma voz escorregou para um sentido de risco, de perigo, de ato temerário. Entrou na língua através do francês, o que explica a preservação do dê: azzardo.

O inglês também importou o termo do francês medieval, daí ter guardado a grafia da época: hazard. Diferentemente do que aconteceu em francês, o sentido da palavra não se modificou. Até hoje indica risco ou perigo. Hazardous se diz do que é perigoso, que comporta grande risco.

Temos aí curioso caso de uma palavra que tanto pode espargir perfume de flor de laranjeira quanto evocar grande perigo. Não há comprovação de que uma coisa tenha a ver com a outra.

Metamorfose ambulante

Metamorphose
by Brenda Erickson

José Horta Manzano

Se alguém tivesse dito que Lula era uma “metamorfose ambulante”, teria sido imediatamente acusado de crime de ódio e talvez tomasse até um processo. Mas foi ele mesmo, Luiz Inácio, quem se qualificou assim. Portanto, quem achar que o presidente está se comportando feito biruta de aeroporto, que vá em frente e use a expressão. O termo está liberado.

Alguns anos atrás, Lula defendeu o regime bolivariano dizendo que “lá tem democracia até demais”. Referia-se ao fato de, segundo ele, o povo vizinho votar com mais frequência que os brasileiros.

Nesse meio tempo, a metamorfose operou. Segundo os jornais de hoje, Luiz Inácio admitiu que o povo venezuelano vive sob regime autoritário, mas não ditatorial. Considere-se que estamos falando do mesmo povo, do mesmo regime e, pra coroar, do mesmo dirigente.

Se isso não é comportamento metamorfótico, não sei o que será.

Um ponto me chama a atenção no tratamento que o Brasil e o mundo estão dando ao que ocorre na Venezuela.

Faz décadas que o regime autoritário se instalou. Se parecia manso no princípio, foi endurecendo com o tempo até chegar ao ponto em que está hoje, a um passo da ditadura ao estilo russo.

Em tempos normais, o drama venezuelano tem sido tratado pelo governo brasileiro como um não acontecimento. É como se a Venezuela não existisse. Não fosse o afluxo de centenas de milhares de venezuelanos famintos e desesperados, o silêncio sobre nosso vizinho do norte seria total.

De repente, em consequência das eleições (das quais todo o mundo sabia que Maduro sairia vencedor), a Venezuela entrou no noticiário. Já se passaram quase três semanas e Caracas continua no foco dos holofotes.

O que chama minha atenção é o contraste entre o olhar intenso que lançamos sobre nossos vizinhos agora, com relação ao descaso que lhes dedicamos em tempos normais.

Me parece que, longe do período eleitoral, teria sido o momento de agir, conversar, combinar e, principalmente, avisar o ditador venezuelano que o Brasil não toleraria eleições fraudadas. Acredito que um aviso prévio nesse sentido teria sido mais eficaz que toda a atual gritaria mundial, com pressões daqui e dali, e com sugestões incômodas e ofensivas para Maduro e seu desafiante, como essa história maluca de novas eleições.

A diplomacia brasileira bobeou nessa matéria. Ou, quem sabe, não bobeou não, simplesmente deu a entender ao vizinho ditador que o Brasil estava disposto a apoiá-lo nas eleições. Em seguida, diante do escândalo internacional, enfiamos o rabo no meio das pernas.

Quando se lida com um personagem metamorfótico, poder-se-á esperar dele tudo.

Brasília é uma usina de reciclagem de erros

Elio Gaspari (*)

Com a reforma tributária na reta final, os carros elétricos entraram, ao lado do tabaco e das bebidas alcoólicas, na lista dos produtos que pagarão o “imposto do pecado”. Em tese, esse imposto recairá sobre mercadorias que fazem mal à saúde ou agridem o meio ambiente. Ganha um fim de semana num incêndio do Pantanal quem souber o que um carro elétrico tem a ver com isso.

As montadoras nacionais fazem o que podem contra os carros elétricos, valendo-se do trânsito de que dispõem pelo corredores de Brasília, mas desta vez exageraram.

Uma reforma tributária que pretende ser racional acabou acordando o velho monstro do atraso. A sabedoria convencional ensina que tendo sido um dos últimos países a abolir a escravidão (em 1888), Pindorama tem um pé no atraso.

A coisa é pior. Até 1850, o andar de cima nacional estava amarrado ao contrabando de africanos escravizados, uma atividade supostamente ilegal desde 1831.

Admita-se que isso é coisa de um passado remoto, mas o atraso está sempre por aí.

Em 1978, a Associação dos Supermercados excluiu de seu quadro social a rede Carrefour porque ela aceitava pagamentos com cartões de crédito. Nessa época, burocratas e espertalhões criaram um regime pelo qual era mais fácil entrar no Brasil com um pacote de cocaína do que com um computador.

Encrenca-se com os carros elétricos em nome de uma proteção ao parque industrial das montadoras. Trata-se de uma jovem indústria, septuagenária e anacrônica. Enquanto fábricas reinventam-se pelo mundo afora, no Brasil fala-se em importar linhas de montagem de veículos a gasolina desativadas pelo progresso. Seria o ProSucata.

Em 2003, os maganos das montadoras viviam muito bem quando um jovem chamado Elon Musk se meteu no mercado de carros elétricos e criou a Tesla. A China foi na bola e hoje suas montadoras têm a maior fatia do mercado mundial.

Quando Juscelino Kubitschek dirigiu o primeiro carro saído de uma montadora de São Paulo, os chineses andavam de bicicleta. Em matéria de fazer besteiras, a China batia o Brasil de longe. Pindorama tinha JK, quando a China teve o Grande Salto de Mao Tsé-Tung, com dezenas de milhões de mortos de fome.

Os dois países diferem em muitas coisas, mas a China consegue abandonar as ideias erradas. Enquanto o Brasil recicla-as.

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é trecho de artigo publicado na Folha de SP.

Jogo de dados

José Horta Manzano

Joãozinho queria um dadinho de jogar. Os pais, solícitos, logo compraram um. Veio com copinho e tudo, uma graça. Depois do jantar, foram brincar de Banco Imobiliário. (Não sei se criança ainda se diverte com esse jogo – Joãozinho se encanta.)

A certa altura da brincadeira, o menino queria cair na casa da Avenida Paulista, que era o imóvel mais caro do jogo. Faltavam três casas, e ele tinha de tirar 3 no dado. Jogou. Saiu o 2.

– Mas eu queria o 3!

– Não tem importância, João. Joga outra vez.

Saiu o 5.

– Mais uma vez, menino! Agora sai, você vai ver.

Saiu o 4.

– Tá esquentando, João. Só mais uma e você vai ver que acerta.

Saiu o 3! A família aplaudiu, o garoto ficou feliz e o ambiente sossegou.

Esse sistema, a que os ingleses chamam “Trial and error”, foi idealizado no século 19 por um cavalheiro chamado C. Lloyd Morgan. Consiste em tentar repetidamente até que dê certo. Funciona em campos específicos, como em jogo de dados por exemplo. Já em política eleitoral, seu uso é mais complicado.

Consistiria, por exemplo, em Nicolás Maduro repetir a eleição em seu país, fazendo o povo votar indefinidamente, mais uma vez, mais outra vez, e outra mais, até que o resultado lhe conviesse. Falando assim, parece ridiculamente absurdo. Vosmicê acha? Pois é o que doutor Amorim, nosso chanceler “de facto”, está propondo. A proposta é começar com nova rodada de eleiçôes. Depois, dependendo do resultado, veremos.

Nosso empacado comitê de política externa está a confundir alhos com bugalhos. O voto popular não é fato aleatório como uma lançada de dados. Detrás de cada cédula, está a decisão pessoal do eleitor; detrás do conjunto de cédulas, está o decantado veredicto popular. A vontade nacional.

O dado, que não depende da vontade do jogador, tanto pode cair no 1, no 2 ou em qualquer outro número. Com o voto, não é assim que funciona. A eleição venezuelana de 28 de julho representou, por certo, o anseio do povo naquela data. Mas nada prediz que esse anseio possa ter mudado ou que venha a mudar num futuro próximo.

O problema havido com as eleições não foi erro de apuração – possibilidade, aliás, que ninguém aventou. Falou-se em fraude, não em erro. Portanto, eliminando-se a fraude, nova eleição tenderá a mostrar o mesmo resultado que a contagem extra-oficial revelou desta vez. Que se volte a votar daqui a uma semana, um mês ou mais tarde.

Lula deveria parar de acrescentar confusão à confusão já reinante naquele país. A curto ou médio prazo, seu compadre Maduro está condenado. Terá de deixar o trono por bem ou por mal. Melhor faria a diplomacia brasileira se desse um passo atrás e não se envolvesse tanto com o que se passa em Caracas.

A ideia de mandar lançar de novo os dados só protela o desfecho da novela e arrelia um ambiente que está precisando ser pacificado.

Falecimento dos famosos

José Horta Manzano

Quando um personagem famoso morre de repente, na flor da idade, sem que ninguém pudesse imaginar, a mídia traz imediatamente, na manchete, o acontecido. Já o obituário propriamente dito, com a cronologia dos feitos e malfeitos do falecido, só vem no dia seguinte. Precisa dar tempo aos jornalistas de passar do susto à pesquisa.

Já quando falece um famoso de idade avançada, é diferente. Foi como quando morreu a rainha Elizabeth: na hora seguinte ao anúncio, todos os jornais, portais e revistas traziam um longo obituário, completo, com fotos, relatando desde a infância da ilustre falecida. Vê-se que os textos já estavam preparados, cochilando numa gaveta.

Acaba de sair a notícia do falecimento de Antônio Delfim Netto, economista que se achegou ao regime militar e chegou a ser todo-poderoso ministro da Fazenda por sete anos. Sua carreira não parou aí. Na sequência, foi embaixador do Brasil em Paris, ministro da Agricultura, ministro do Planejamento e ainda deputado federal. Esteve na política durante a ditadura e, enterrada esta, continuou no Congresso por mais dez anos.

Como ocorre com famosos que falecem “entrados em anos”, Delfim teve direito a obituários imediatos. Todos os veículos entraram com um ou mais artigos longos dedicados ao relato da vida desse senhor. Nem todos os escritos mostram grande simpatia por ele, forçoso é dizer.

Por minha parte, pouco conheci Delfim Netto. Não morava no Brasil na época do “milagre econômico” nem do famigerado AI-5, coassinado por ele. O único ponto em comum que tivemos, anos mais tarde, foi frequentar o mesmo alfaiate. Os mais jovens talvez nunca tenham visto uma alfaiataria; aliás, nem sei se ainda existem esses ateliês. Nosso alfaiate era o Sr. Fusaro, que tinha lojinha na região do Cambuci, em São Paulo, onde Delfim tinha nascido e crescido. Tenho até hoje um terno feito lá em 1985. Ainda serve.

Dizem que não se deve falar mal de quem já morreu. Mas não acredito que todos os que morrem viram santos imediatamente. Então, lá vai.

Quando Delfim Netto era embaixador do Brasil em Paris, corria, à voz pequena, um boato insistente. O homem teria o apelido de “Monsieur 10%”. A razão era o valor da propina que ele cobrava de todos os grandes negócios que se fechavam entre fornecedores franceses e o Estado brasileiro.

Não sei se é verdade. Era uma época de muitos (e bem guardados) segredos…

Venezuela: não dá mais tempo

Manifestação anti-Maduro em Londres, 4 ago 2024
credit: Marcio Manzano

José Horta Manzano

Para os cidadãos venezuelanos, os maiores interessados nesse quiproquó, o horizonte está longe de desanuviar. O céu continua carrancudo e carregado. Do jeito que as coisas vão, não é desta vez que vão se resolver. Não é desta vez que o país volta aos trilhos da normalidade democrática. Não é desta vez que remédios vão voltar às farmácias, que comida vai voltar aos supermercados, que a inflação vai dar sinal de arrefecer.

Se algo tinha de acontecer, era nos dias que se seguiram imediatamente ao anúncio do resultado do pleito. Invasão de exército estrangeiro, golpe militar interno, gigantescas manifestações no-stop de entupir Caracas – fosse qual fosse o caminho da redenção, o remédio tinha de ter sido aplicado antes que a nomenklatura e os apparátchiks pudessem reagir. A ação tinha de ter sido rápida, pegando aos donos do regime de calças curtas, sem lhes dar tempo de levantar os suspensórios.

Assim não foi feito. Hesitação de alguns governos como o brasileiro e resoluto apoio de países autocráticos como a China, a Rússia e o Irã deram fôlego a Maduro (que, mesmo sem isso, não estava nem um pouco disposto a ceder).

Como é fácil de entender, se o governo venezuelano cedesse e entregasse o poder à oposição, que venceu as eleições, iam todos parar na cadeia: desde o casal Maduro até o porteiro do Palacio Miraflores; do general mais agalardoado até o cabo mais obscuro.

A cada dia que passa, mais pedregoso fica o caminho dos que gostariam de entregar o bastão ao verdadeiro vencedor da eleição. Depois de mandar prender centenas de cidadãos a esmo, Maduro já conseguiu o que queria: calou o populacho. Ninguém mais é louco de marchar pelas avenidas carregando cartazes. Señor González, o mais que provável ganhador do pleito, já não ousa se proclamar vencedor. A Venezuela volta a ser estrangulada por uma atmosfera de desconfiança mútua, medo de ser agredido e pavor de ser denunciado.

Tenho a impressão de que, por anos ainda, o Brasil terá de encarar um afluxo reforçado de migrantes venezuelanos. A diáspora venezuelana vai engrossar e se espalhar ainda mais. Famílias vão vender o pouco que possuem pra pagar coiotes e tentar penetrar nos EUA. A miséria vai continuar se alastrando no país.

O petismo esteve no comando de nosso país durante 14 longos anos. Naquela época, ainda teria dado pra estancar o processo de deterioração da democracia venezuelana. Por que nossos petistas, de espírito tão humanista, que sempre tiveram bom trânsito em Caracas, não agiram? Porque, ingênuos, não se deram conta da gravidade da evolução. Agora, que o panorama apodreceu, ficou difícil, quase impossível.

Venezuela, uma narcoditadura, nossa vizinha de parede.

Venezuela, um narcoestado

Roberto Saviano (1979-) é um escritor, jornalista e cineasta italiano. Nascido em Nápoles, cresceu ouvindo relatos dos horrores praticados pelas máfias. Interessou-se pelo assunto e, durante anos de muita pesquisa, inteirou-se de minúcias daquele submundo, segredos conhecidos por quase ninguém do lado de fora.

Em 2006, escreveu o livro “Gomorra”, uma vibrante denúncia dos métodos mafiosos. Como se pode imaginar, seus escritos provocaram a ira dos membros de Cosa Nostra, ‘Ndrangheta & afins. Desde então, jurado de morte, é obrigado a levar vida nômade, como se fosse um fugitivo, trocando de endereço com frequência, uma vida de sufoco. Conta com proteção policial fornecida pelo Estado italiano 24 horas por dia.

O artigo que reproduzo abaixo, assinado por ele e publicado no Corriere della Sera, relata a real natureza mafiosa do regime bolivariano conduzido por Nicolás Maduro em nossa vizinha Venezuela. Não são suposições, são a constatação de um perito no assunto.

Fica aqui para quem ainda sentir um restinho de simpatia pelo “pai dos pobres” de Caracas.

A tradução é deste escriba.

 

 

Os dois sobrinhos de Maduro, símbolo da terra dos narcos

Roberto Saviano

Foi em 10 de novembro de 2015 que Efraín Campo Flores e Francisco Flores, de 30 anos, foram presos pelo esquadrão antidrogas dos EUA no Haiti, onde tinham ido receber a primeira parcela de um pagamento de US$ 11 milhões para enviar 800 quilos de coca para Honduras, com destino ao mercado mais exigente do mundo: Nova York.

Os primos Flores são sobrinhos da esposa de Nicolás Maduro, Cilia Flores, filhos de suas duas irmãs. Efraín é chamado de filho adotivo do casal, vive com frequência na residência presidencial e é próximo à administração do poder político de Maduro. Os “narcosobrinos”, como agora são chamados, tinham acesso ao hangar presidencial localizado na Rampa 4 do Aeroporto Internacional Simón Bolívar, em Maiquetía, e usavam aviões particulares para transportar cocaína pela América do Sul.

Eles foram descobertos graças a um infiltrado. Esses 800 quilos de coca pura cortada a 25% (qualidade superior) se transformariam em 3.200 quilos que, vendidos em Manhattan, teriam rendido entre US$ 89mi e US$ 100mi de dólares. Os sobrinhos de Maduro, no entanto, haviam acertado o valor de 20 milhões de dólares e, antes de serem presos com a boca na botija, estavam recebendo apenas um sinal de US$ 11 milhões. Era o adiantamento que eles estavam pedindo antes de enviar a mercadoria.

Quem delatou? Um homem do cartel que, nos últimos anos, esteve mais intimamente ligado ao regime de Maduro: o cartel de Sinaloa, comandado pela diarquia de El Chapo Guzmán e El Mayo Zambada (que acaba de ser preso após anos de fuga). O narcotraficante José Santos Peña foi o homem que abarrotou Maduro com o dinheiro dos narcotraficantes. Uma vez preso, ele esperava, ao fornecer todas as informações sobre a política venezuelana, ver sua sentença reduzida. No tribunal, ele traz provas e o infiltrado do DEA traz principalmente áudios em que os dois contam como o governo venezuelano administra a coca dos cartéis, como eles precisam de dinheiro para apoiar campanhas eleitorais, comprar votos, pagar os militares. Efraín se referiu a Cilia Flores como “sua mãe”.

No final do julgamento, Efraín Campo Flores e Francisco Flores, os sobrinhos de Maduro, foram condenados a 18 anos de prisão. Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Constituinte, abaixo apenas do chefe do governo (Maduro), começou a falar em “sequestro dos meninos” pelos americanos, mas durante o julgamento veio à luz a informação de que ele próprio era o chefe do “Cartel de los Soles”, um grupo de oficiais de alta patente do exército venezuelano acusado de controlar o tráfico de cocaína.

Os dois sobrinhos passaram menos de cinco dos 18 anos na prisão, porque Maduro começou a prender, sob pretextos variados, cidadãos norte-americanos. Cinco só em 2017: eles estavam em uma conferência da empresa nacional de petróleo da Venezuela e foram presos por roubo. Depois, prenderam em um posto de controle um ex-fuzileiro naval e um homem que estava visitando sua namorada. Por fim, Biden decidiu perdoar os dois sobrinhos em troca da libertação dos cidadãos americanos. Os sobrinhos do narcotráfico estão em casa.

Não há melhor maneira de ocultar tráfico e corrupção do que o manto da revolução. Falar de justiça social desvia a atenção dos negócios criminosos, e a melhor maneira de construir uma rede de traficantes é chamar a atenção para a paz, a solidariedade e a luta contra o imperialismo. Isso traz vantagens estratégicas e também proteção da mídia, uma vez desvendada a tramoia, para poder proclamar ao mundo que tudo não passa de manipulação ianque.

É assim que o mundo funciona, estamos cientes disso. No entanto, é deveras curioso que em todos esses anos, especialmente simpatizantes de esquerda, tenham realmente acreditado que o sistema bolivariano venezuelano, corroído e corrompido até as tripas, fosse outra coisa além de um Estado-Máfia. Enquanto dizia ao mundo que se opunha às guerras, prestando solidariedade a Putin e aos povos explorados, Nicolás Maduro transformava a Venezuela no centro mundial do tráfico de cocaína, o lugar para armazenar e despachar cocaína para todos os cantos do planeta.

As investigações do DEA mostram que os portos venezuelanos estão completamente nas mãos dos cartéis e que o gerenciamento das remessas emana diretamente das autoridades políticas. Diante das evidências, a resposta é sempre a mesma: é tudo propaganda americana. No entanto, há vários arrependidos delatores – entre eles Leamsy Salazar, chefe da segurança de Chávez – que forneceram provas de como a Venezuela é um narcoestado. Salazar resolveu delatar depois de ser desmascarado pelo DEA. Quando alguém é desmascarado e não é parente de Maduro, acaba na cadeia para que o governo possa dizer que é apenas uma maçã podre, não um sistema…

A Venezuela é um narcoestado, a cocaína permite a entrada do dinheiro perdido com a crise de produção de petróleo. Os homens de Chávez eram todos ligados ao petróleo, os homens de Maduro estão mais próximos do narcotráfico. Em resposta a Barack Obama, o braço direito de Maduro, Diosdado Cabello, disse: “Sim, somos uma ameaça porque somos socialistas, somos uma ameaça porque somos revolucionários, somos uma ameaça porque somos chavistas, somos uma ameaça porque queremos que o povo viva em paz!

Tudo isso é balela retórica daqueles que destruíram um país, distorceram e desgastaram os ideais socialistas. Aqueles que de verdade acreditam nesses traficantes em nome da ideologia estão apenas criando uma cortina de fumaça para defender os negócios deles.

Inútil troca de insultos

José Horta Manzano

Desde que Javier Milei, atual presidente da Argentina, fazia campanha eleitoral, já lançava insultos a nosso presidente tratando-o de “corrupto” e “ladrão”. Clamava que “o lugar de Lula é na cadeia”. Não sei se esse comportamento extravagante lhe valeu alguns votos a mais – é possível, neste mundo há bobo pra tudo.

Por seu lado, nosso Luiz Inácio não deixou os desaforos sem resposta. Torceu ostensivamente contra Milei. Deixou de comparecer à sua cerimônia de tomada de posse, atitude fortemente deselegante. É insultante deixar o presidente hermano assim, com a mão estendida no vazio.

Milei comprou a briga e botou o sarrafo mais alto. Faltou à cúpula do Mercosul, deixando assim meia dúzia de colegas chefes de Estado falando sozinhos, entre eles. Em linguagem diplomática, sua ausência soou como se ele dissesse: “Eu sou superior a todos vocês e não estou disposto a me misturar com essa ralé”.

A partir daí, os encarregados do cerimonial dos lugares em que os dois perigam estar presentes ao mesmo tempo (G20, por exemplo) caminham pisando em ovos para garantir que os dois jamais tenham de sentar lado a lado.

Na minha visão, esse tipo de querela pode ser admitida entre adolescentes. Já entre chefes de Estado vizinhos, hermanos e sem nenhum contencioso, é briga totalmente absurda. Aquele famoso “quando um não quer, dois não brigam”, que Lula opinou quando a Rússia invadiu a Ucrânia, teria de ser aplicado justamente num caso como este.

Foi Milei quem começou, estou de acordo. Os insultos de Milei foram gratuitos, emitidos sem provocação, estou de acordo. Lula faltou à posse do colega por temer ser vaiado em Buenos Aires, estou de acordo. Só que agora, chega. A brincadeira acabou, os dois foram investidos no cargo de chefe de Estado. Ficam pra trás as brigas pessoais e entram em cena os ritos do cargo.

Luiz Inácio, que é o mais velho e mais experiente, devia mostrar o caminho ao fogoso vizinho. Não é assim que um chefe de Estado deve se comportar. Atitudes assim não constroem, só dividem e destroem. Que se convide o argentino para uma visita oficial ao Brasil. Que se prepare recepção com a pompa devida a visitantes de primeira grandeza.

Fico feliz de constatar que a diplomacia do Itamaraty, apesar de Lulamorim, não parece ter sido contaminada por essas infantilidades. Na sequência da decisão de Milei de não reconhecer a “vitória” de Maduro, o ditador venezuelano cortou relações diplomáticas entre Caracas e Buenos Aires e ordenou a partida imediata do pessoal diplomático argentino.

Acontece que, além dos funcionários, a embaixada argentina em Caracas abriga meia dúzia de refugiados políticos. Que fazer? A Argentina pediu e o Brasil atendeu imediatamente: nossos diplomatas em Caracas vão substituir os argentinos que tiveram de ir-se. Vão dar o expediente burocrático (emissão de passaportes, por exemplo) e vão cuidar dos refugiados (que, sem isso, perigavam morrer de fome).

Na diplomacia mundial, é relativamente frequente que um país cuide dos interesses de outro cuja embaixada teve de ser fechada. A Suíça é muito solicitada para esse tipo de serviço. Por exemplo, desde que os EUA e o Irã cortaram relações diplomáticas, em 1980, a Suíça representa os interesses americanos em Teerã (Irã).

Em nosso atual episódio sul-americano, o Brasil aceitou imediatamente a solicitação argentina e já está exercendo as funções de representante diplomático de Buenos Aires em Caracas.

Aconteceu tão rápido, que eu me pergunto se Lula foi posto a par. Seja como for, a agilidade e a prestimosidade do Itamaraty continuam em plena forma. E isso é excelente notícia.

O que sei é que Milei , em publicação nas redes, agradeceu efusivamente pela colaboração do Brasil. Lula perdeu a oportunidade de fazer as pazes ao convidar o rapaz para uma visita e uma conversa olho no olho. Ou talvez ainda não seja tarde.

“Ô, Lula, vê se dá um jeito nesse menino travesso!”

Troca de prisioneiros

Desde a Guerra Fria, a ponte Glienicke, em Berlim, foi apelidada de “Ponte dos Espiões”. Era o local onde se faziam trocas de prisioneiros. Cada preso liberado saía caminhando de um lado, encontravam-se no meio da ponte e, sem uma palavra, continuavam a pé ao encontro dos seus.

 

José Horta Manzano

A Agência Bloomberg acaba de informar que uma múltipla troca de prisioneiros está em curso neste momento. Estão envolvidos quatro países: Rússia, Estados Unidos, Alemanha e Bielo-Rússia. Não foi publicado o rol de todos os envolvidos, mas sabe-se que o jornalista americano Gershkovitch e seu compatriota Whelan, antigo militar, fazem parte dos que serão libertados para cumprir o trato.

O jornalista americano Evan Gershkovitch trabalhava na cidade de Ekaterinburg (Rússia) quando foi detido em março 2023. Acusado de crime de espionagem, está preso até hoje. Mês passado, foi condenado a 16 anos de encarceramento em regime severo. Tudo indica que seu julgamento foi apressado para permitir a conclusão final do acordo de troca.

Outro envolvido é o jornalista e político russo-britânico Vladímir Kara-Murza, que cumpre pena de 25 anos de prisão na Sibéria por ter manifestado publicamente sua oposição à guerra na Ucrânia.

Pode-se supor que os EUA e a Alemanha estejam libertando cidadãos condenados por espionagem em favor da Rússia, ora entregues em troca dos ocidentais que estão deixando os gulags russos.

Trocas de prisioneiros eram relativamente frequentes na Guerra Fria. Volta e meia, espiões de um lado eram liberados em troca de espiões do outro lado. O fim da União Soviética significou boa diminuição desse fluxo. Mas, embora sem o cerimonial do passado, ele continua, bastando ver a múltipla troca atual.

Esse escambo de condenados até que poderia ser uma solução para o desenlace do atual drama político venezuelano. Só que não vai dar, pois Maduro & asseclas provavelmente não aceitariam ser trocados e terminar em cárceres no “Império”. De toda maneira, não estão presos, portanto não faz sentido falar em troca de condenados.

Se a pressão interna e externa aumentar ao ponto de se tornar insuportável, não há lugar para acordos na Venezuela. Só resta aos atuais mandatários a solução do exílio. No mundo atual, poucas opções se oferecem ao narcoditador. Terá de escolher entre Cuba e Nicarágua, se quiser ficar perto da pátria, no mesmo torpor equatorial.

Se não se importar de atravessar o oceano, sempre pode ir para a Rússia. Mas parece que o clima de lá nem sempre permite sair à rua de chapéu de boiadeiro e camisa vermelha.

Além do que, no dia em que Putin for apeado do poder, como é que fica? Melhor o Caribe acolhedor.