Evolução do templo

José Horta Manzano

Você sabia?

Cordoba 3Desde tempos pré-históricos, o homem sentiu necessidade de designar local específico para cultuar deuses. O Oriente Médio guarda numerosos resquícios de templos de outras eras. Petra (na atual Jordânia) e Palmira (na atual Síria) são exemplo de antiquíssimas cidades que contavam com edifícios de culto.

Na Europa Ocidental, a Idade Média conheceu o apogeu do fervor espiritual. Entre os anos 1200 e 1500, dezenas de catedrais góticas foram levantadas. Eram obras monumentais cuja edificação, à força de braço, levava muitíssimos anos, um século às vezes.

Catedral de Córdoba

Catedral de Córdoba

Há o caso curioso de um templo cuja função flutuou ao sabor da religião dominante. Mais de dois mil anos atrás, o povoado ibérico situado onde hoje está Córdoba (Espanha) foi ocupado por tropas romanas, que aí estabeleceram a capital da província da Hispania Bætica.

Como toda capital que se preze, Córdoba merecia um templo. Ganhou um dedicado a Janus, o deus romano dos começos e dos fins, aquele que abre portas e passagens. É o mesmo deus que, mais tarde, emprestaria seu nome ao mês de janeiro, espelhando a abertura de novo ano.

Catedral de Córdoba

Catedral de Córdoba

Passaram os séculos. O esfacelamento do Império Romano abriu caminho à invasão de Vândalos e de Visigodos. Povos germânicos convertidos à fé cristã, os recém-chegados se valeram do que restava do antigo edifício para construir templo cristão.

Trezentos anos mais tarde, a região mudou novamente de dono. Muçulmanos, que haviam atravessado o Estreito de Gibraltar, estabeleceram em Córdoba um califado que duraria mais de 500 anos. O templo existente foi inteiramente reformado e ampliado para abrigar o culto maometano. Majestosa, a nova mesquita refletia o poder do califa.

Catedral de Córdoba, detalhe

Catedral de Córdoba, detalhe

Cinco séculos depois, no lento movimento que ficou conhecido como como La Reconquista, o muy católico Fernando III, rei de Castela, retomou Córdoba. Na sequência, reformou a mesquita, derrubou colunas, acrescentou uma nave, ergueu uma torre e transformou o edifício em templo cristão. Olhando do exterior, o visitante hesita em definir o conjunto como mesquita, convento ou catedral.

Pra dizer a verdade, o edifício ‒ hoje por muitos chamado Catedral-Mezquita ‒ é um verdadeiro bolo de noiva. Uma surpreendente e interessantíssima mistura que marca a passagem de diferentes culturas.

Prêmio de consolação

José Horta Manzano

Tempos houve em que o papa detinha tanto o poder espiritual quanto o poder temporal sobre seus súditos. Os que não perderam nenhum aula de História hão de se lembrar vagamente da Bula Inter Caetera. Esqueceu? Não tem problema, vou resumir.

O ano de 1492 foi extremamente significativo para a Espanha dos muy católicos reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Três acontecimentos marcaram aquele período.

O primeiro foi a tomada do Reino de Granada, último bastião árabe em terra ibérica. Aconteceu logo em janeiro. Foi a conclusão de um processo secular que os espanhóis chamam La Reconquista. A coroa espanhola passou a reinar sobre toda a península, com a notável exceção do vizinho Portugal. Não só vizinho, mas adversário e concorrente.

O segundo acontecimento veio menos de 3 meses depois. Um real decreto conhecido como Édito de Granada não foi brando, nem suave, nem comedido. Dava aos judeus residentes no reino duas opções: ou se convertiam ao catolicismo ou deixavam o país. Era uma espécie de Brasil, ame-o ou deixe-o. Só que não era apenas um convite, mas uma imposição, sem discussão possível.

O terceiro acontecimento, do qual certamente ninguém esqueceu, foi a chegada de Cristóvão Colombo a terras americanas, em 12 de outubro daquele mesmo ano.

Era muita coisa ao mesmo tempo. A coroa portuguesa não aplaudiu de pé as façanhas do vizinho. A guerra, que não interessava a nenhum dos dois reinos, ameaçava espocar. Que fazer para serenar os ânimos?

Pois foi aí que o papa, imbuído de poder supranacional, foi chamado a intervir. Emissário vai, emissário vem, Sua Santidade convenceu as duas coroas a concluírem um acordo. Não foi preciso discutir muito.Tordesilhas

Já em maio de 1493, o papa Alexandre VI emitiu a Bula Inter Caetera(*), um decreto solene com força de lei. Estipulava nada menos que a divisão do globo terrestre em duas metades. Portugal teria direito sobre todas as novas terras descobertas ou a descobrir situadas a leste de um determinado meridiano. E a Espanha ficava com os territórios a oeste da mesma linha.

Dizem que o rei de França, que por acaso tinha o mesmo nome do novo papa ― Francisco I ― não apreciou muito a decisão. Parece até que ousou pedir que lhe mostrassem o testamento em que Adão deixava o planeta de herança aos países ibéricos e excluía a França. Talvez seja só uma lenda…

No ano seguinte, as duas potências ibéricas fizeram alterações menores na posição geográfica da linha imaginária. Sacramentaram o novo acordo pelo Tratado de Tordesilhas.

O poder do bispo de Roma era, como se vê, muito maior do que é hoje. As diretivas de sua bula foram, bem ou mal, respeitadas. A prova é que os portugueses se estabeleceram nas terras que lhes foram atribuídas e deixaram o resto aos espanhóis. Não fosse o decreto papal, e talvez o Brasil não existisse.

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Neste 13 de março um novo papa foi escolhido. Mas o mundo mudou. Já faz tempo que Sua Santidade perdeu todo poder temporal, à exclusão do minúsculo enclave do Vaticano. Quanto ao poder espiritual, está hoje em dia mais para o simbólico que para o real.

Católicos ou não, os que não suportam mais o cônjuge vão acabar se divorciando. Devotos ou não, os casais homossexuais vão acabar se casando, nos países onde essa união é reconhecida. Praticantes ou não, os casais que não desejarem procriar vão continuar tomando as medidas apropriadas.

Diferentemente de algumas outras, a Igreja Católica emperrou em algumas posições que dificilmente se coadunam com os dias de hoje. Os pontos de fricção atuais são o resultado da defasagem que vem se alargando há séculos. A sintonia entre os fiéis e as regras a respeitar anda muito complicada.

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Um último lembrete àqueles que não ficaram sabendo. A notícia saiu na Folha de SP mas ficou um pouco obnubilada pelo advento do novo papa. Pela primeira vez, um brasileiro foi sagrado clérigo xiita. É um prêmio de consolação para os brasileiros decepcionados pelo fato de o sucessor de Bento XVI não ser nosso conterrâneo.

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(*) Todas as bulas e encíclicas papais são conhecidas por suas duas ou três palavras iniciais. O texto solene de 1493 começava com a expressão Inter caetera, que significa entre outros. Aliás, o termo caetera é o mesmo que ainda se esconde atrás de nossa conhecida abreviação etc. Et caetera significa e outros.