José Horta Manzano
Tempos houve em que o papa detinha tanto o poder espiritual quanto o poder temporal sobre seus súditos. Os que não perderam nenhum aula de História hão de se lembrar vagamente da Bula Inter Caetera. Esqueceu? Não tem problema, vou resumir.
O ano de 1492 foi extremamente significativo para a Espanha dos muy católicos reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Três acontecimentos marcaram aquele período.
O primeiro foi a tomada do Reino de Granada, último bastião árabe em terra ibérica. Aconteceu logo em janeiro. Foi a conclusão de um processo secular que os espanhóis chamam La Reconquista. A coroa espanhola passou a reinar sobre toda a península, com a notável exceção do vizinho Portugal. Não só vizinho, mas adversário e concorrente.
O segundo acontecimento veio menos de 3 meses depois. Um real decreto conhecido como Édito de Granada não foi brando, nem suave, nem comedido. Dava aos judeus residentes no reino duas opções: ou se convertiam ao catolicismo ou deixavam o país. Era uma espécie de Brasil, ame-o ou deixe-o. Só que não era apenas um convite, mas uma imposição, sem discussão possível.
O terceiro acontecimento, do qual certamente ninguém esqueceu, foi a chegada de Cristóvão Colombo a terras americanas, em 12 de outubro daquele mesmo ano.
Era muita coisa ao mesmo tempo. A coroa portuguesa não aplaudiu de pé as façanhas do vizinho. A guerra, que não interessava a nenhum dos dois reinos, ameaçava espocar. Que fazer para serenar os ânimos?
Pois foi aí que o papa, imbuído de poder supranacional, foi chamado a intervir. Emissário vai, emissário vem, Sua Santidade convenceu as duas coroas a concluírem um acordo. Não foi preciso discutir muito.
Já em maio de 1493, o papa Alexandre VI emitiu a Bula Inter Caetera(*), um decreto solene com força de lei. Estipulava nada menos que a divisão do globo terrestre em duas metades. Portugal teria direito sobre todas as novas terras descobertas ou a descobrir situadas a leste de um determinado meridiano. E a Espanha ficava com os territórios a oeste da mesma linha.
Dizem que o rei de França, que por acaso tinha o mesmo nome do novo papa ― Francisco I ― não apreciou muito a decisão. Parece até que ousou pedir que lhe mostrassem o testamento em que Adão deixava o planeta de herança aos países ibéricos e excluía a França. Talvez seja só uma lenda…
No ano seguinte, as duas potências ibéricas fizeram alterações menores na posição geográfica da linha imaginária. Sacramentaram o novo acordo pelo Tratado de Tordesilhas.
O poder do bispo de Roma era, como se vê, muito maior do que é hoje. As diretivas de sua bula foram, bem ou mal, respeitadas. A prova é que os portugueses se estabeleceram nas terras que lhes foram atribuídas e deixaram o resto aos espanhóis. Não fosse o decreto papal, e talvez o Brasil não existisse.
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Neste 13 de março um novo papa foi escolhido. Mas o mundo mudou. Já faz tempo que Sua Santidade perdeu todo poder temporal, à exclusão do minúsculo enclave do Vaticano. Quanto ao poder espiritual, está hoje em dia mais para o simbólico que para o real.
Católicos ou não, os que não suportam mais o cônjuge vão acabar se divorciando. Devotos ou não, os casais homossexuais vão acabar se casando, nos países onde essa união é reconhecida. Praticantes ou não, os casais que não desejarem procriar vão continuar tomando as medidas apropriadas.
Diferentemente de algumas outras, a Igreja Católica emperrou em algumas posições que dificilmente se coadunam com os dias de hoje. Os pontos de fricção atuais são o resultado da defasagem que vem se alargando há séculos. A sintonia entre os fiéis e as regras a respeitar anda muito complicada.
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Um último lembrete àqueles que não ficaram sabendo. A notícia saiu na Folha de SP mas ficou um pouco obnubilada pelo advento do novo papa. Pela primeira vez, um brasileiro foi sagrado clérigo xiita. É um prêmio de consolação para os brasileiros decepcionados pelo fato de o sucessor de Bento XVI não ser nosso conterrâneo.
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(*) Todas as bulas e encíclicas papais são conhecidas por suas duas ou três palavras iniciais. O texto solene de 1493 começava com a expressão Inter caetera, que significa entre outros. Aliás, o termo caetera é o mesmo que ainda se esconde atrás de nossa conhecida abreviação etc. Et caetera significa e outros.