O mundo está de olho

José Horta Manzano

Estes últimos anos, nosso país tem sofrido terremotos político-policiais um atrás do outro. São escândalos frequentes e variados que, frequentemente, envolvem figuras políticas de projeção.

Os quatro anos da gestão de Bolsonaro foram pródigos nessa matéria – o capitão nunca nos deixou na mão por falta de assunto. O nome do Brasil ecoou (e muito!) fora do país, e passeou pelas manchetes em letras constrangedoramente grandes.

No entanto, veja você como são as coisas, o escândalo dos falsos certificados de vacina bateram todos os recordes. Embora, à primeira vista, pareça um caso menor, a repercussão tem sido planetária. Acredito que, se tivesse surgido logo no começo do mandato do capitão, não tivesse alcançado as manchetes; mas tendo surgido agora, que o mundo inteiro já conhece bem o personagem, o caso está fazendo sucesso. Está bombando, como convém dizer neste mundo de narrativas.

Procurei, nos jornais estrangeiros, as notícias do caso dos certificados falsos. Fui colecionando, separados por língua. Contei-as: uma, duas, três, etc. Chegando a dezessete, cansei e parei. Confesso que nunca tinha encontrado antes relato de nossos dramas em vietnamita ou em romeno. Pois desta vez, encontrei.

Mostro, a seguir, uma resenha. Se o distinto leitor planeja viajar para a Hungria, a Turquia ou a Indonésia, aconselho a não dar muita bandeira (entenda “bandeira” no sentido que quiser). É pra não passar vergonha.

Alemão
Casa revistada atrás de dados do Corona

Inglês
Casa revistada enquanto Brasil investiga cartões de vacina falsos

Francês
Perquisição na casa de Bolsonaro, suspeito de falsificação de certificados vacinais

Italiano
Green pass falsos para contornar proibições anticovid: casa de Bolsonaro perquisicionada

Sueco
Residência de Bolsonaro revistada pela polícia

Español
Polícia faz buscas na casa do ex-presidente, numa investigação de sua vacinação contra a covid

Húngaro
Casa de Bolsonaro revistada e seu celular apreendido

Polonês
Bolsonaro falsificou registros de vacinação? Polícia prende colaboradores do ex-presidente

Indonésio
Polícia brasileira faz buscas na casa de Bolsonaro e detém assessor

Tcheco
A polícia fez buscas na casa do ex-presidente do Brasil, Bolsonaro. Eles estão investigando um fraude de vacinação contra a covid

Eslovaco
Polícia faz buscas na casa do ex-presidente brasileiro Bolsonaro por fraude na vacinação

Lituano
Polícia brasileira faz buscas na casa de Bolsonaro e apreende seu celular

Romeno
Investigação sobre falsas vacinas anti-COVID no Brasil/ A polícia faz buscas na casa do ex-presidente Jair Bolsonaro e confisca seu telefone celular

Vietnamita
Polícia brasileira revista casa do ex-presidente Bolsonaro

Turco
Operação contra o ex-presidente brasileiro Bolsonaro

Grego
Batida policial na residência de Bolsonaro – Prisão de dois assessores

Esloveno
Polícia faz buscas na casa de Bolsonaro em razão de certificado de vacinação contra a covid-19

Passaporte vacinal falso

José Horta Manzano

Em resposta ao questionamento de parlamentares, Monsieur Olivier Véran, ministro da Saúde da França, revelou hoje que 1 em cada 20 pacientes internados por covid era portador de passaporte vacinal falso.

Lembrou que os titulares de um passaporte vacinal falso se expõem ao risco de serem condenados a até 5 anos de cadeia, além de serem “premiados” com multa de 75 mil euros (480 mil reais).

Os hospitalizados, se escaparem da infecção, não escaparão da justiça. Assim que estiverem recuperados, terão de responder ao processo.

Moral da história
Declarações falsas não protegem contra a epidemia e ainda podem custar (muito) caro. Fazendo bem as contas, não vale a pena trapacear.

Passaporte cobiçado

José Horta Manzano

Quando vim à Europa pela primeira vez, Matusalém vivia e os bichos ainda falavam. Viajava-se de navio, que avião custava os olhos da cara e não era pra qualquer um. A viagem era demorada, mas ninguém tinha pressa.

Embarquei num navio misto, um cargueiro que dispunha de cabines para poucos passageiros, uns vinte no total. O bilhete saía bem mais em conta que em navio de linha, dada a incerteza quanto às datas de partida e chegada. Cargueiro não segue percurso rigoroso, podendo a todo momento ser desviado da rota para apanhar carga nalgum porto.

Entre os passageiros, lembro-me de um senhor de certa idade, que falava nossa língua com forte sotaque estrangeiro. Contou-me sua história. Judeu originário da península balcânica, tinha sofrido deportação e todos os horrores da Segunda Guerra. Ao fim das hostilidades, encontrava-se numa terra que não era a sua, sem família, sem dinheiro e sem nacionalidade. Apátrida.

A apatridia é situação insuportável. Solto no mundo, o indivíduo não goza de garantias civis como os demais. Rejeitado pela sociedade, tem dificuldade para viajar, para se alojar, para trabalhar. Leva existência de pária.

Esse senhor tinha conseguido, alguns anos antes de nos encontrarmos, um visto de imigração para o Brasil. Viveu em nosso país o tempo suficiente para adquirir o direito de solicitar a cidadania brasileira. Assim que conseguiu, guardou no bolso o precioso documento, juntou os trapos e empreendeu a viagem de volta às origens. Foi quando nossos caminhos se cruzaram, naquele barco.

Naqueles tempos, nosso passaporte era cobiçado por gente que fugia da miséria, da violência, da errância provocada pelas guerras. Dos que desembarcavam no Brasil, alguns retornavam à terra de origem, mas a maioria acabava ficando. Muitos conterrâneos descendem desses imigrantes.

O tempo passou e os horrores da guerra foram se esmaecendo. A procura pelo Brasil diminuiu. Nesse meio-tempo, surgiu outro tipo de candidatos. A partir dos anos 1960-1970, nosso país começou a ser procurado por gente, digamos assim, menos recomendável. O Brasil passou a ser visto como refúgio de assaltantes, mafiosos ‒ aquele tipo de gente que não é flor que se cheire.

Essa tendência está certamente sendo freada em virtude da Operação Lava a Jato. A bandidagem internacional já deve estar-se dado conta de que aqui já não é paraíso de malfeitores. Vinte anos atrás, não era assim.

Ontem, ficamos sabendo que, em meados dos anos 1990, o então ditador da dinastia norte-coreana e o filho conseguiram passaporte brasileiro. Era um documento «falso verdadeiro». O suporte era de verdade, livreto impresso na Casa da Moeda, nos conformes. Já os dados inscritos eram totalmente falsos.

Acredito que a coleção de passaportes «falsos verdadeiros» do ditador e do filho aprendiz não se restringisse ao brasileiro. É permitido supor que tivessem em mãos documentos similares emitidos por outros países. Pode sempre ser útil quando se deseja viajar incógnito ou ‒ nunca se sabe ‒ caso um dia tivessem de escapar a toque de caixa.

Fica no ar uma pergunta: como conseguiram os passaportes, emitidos pelo serviço consular da embaixada do Brasil em Praga? Parece mais que provável que tenham contado com cumplicidade no seio do pessoal da representação brasileira. Ouso imaginar que o responsável maior não faça parte do complô: cabe a ele nada mais que assinar os passaportes preparados pelos funcionários. O buraco é mais embaixo.

Passaram-se mais de vinte anos, é verdade, mas o crime é grave. Espero que o Itamaraty vá fundo nas investigações. Nem que fosse para reforçar controles que coibam esse tipo de fraude no futuro. Se bobear, ainda vai aparecer algum Bin Laden com passaporte tupiniquim.

Romário e a conta

José Horta Manzano

Banco 4Pergunta-me uma amiga do Brasil o que acho dessa história de o futebolista (e agora senador!) Romário de Souza Faria manter um punhado de milhões numa conta bancária suíça, não declarada ao fisco brasileiro.

O avô de meu avô já dizia que «onde tem fumaça, tem fogo». Para ser honesto, o bisavô de meu bisavô também já afirmava que «nem tudo o que reluz é ouro». Como sói acontecer, a cada provérbio se opõe outro que declara exatamente o inverso. Até aí, ficamos na mesma.

Para reforçar a tese de que todo esse auê é intriga da oposição, lembro os pontos seguintes:

Interligne vertical 17b● com seu falar franco e desabusado, o senador há de ter colecionado inimigos;

● em tempos de denúncias a torto e a direito, basta olhar meio de lado pra ser acusado de corrupto;

● a prova maior – a confirmação do banco – está aí, preto no branco, papel timbrado, assinatura em baixo.

Por seu lado, há pontos que me deixam com um pé atrás:

Interligne vertical 17b● cáustico, o senador zombou dos que o acusavam. Ao mesmo tempo, prudente, decidiu revelar que, tendo mantido conta em vários países, era possível que alguma tivesse restado adormecida e esquecida. (Afinal, dois milhões de dólares são uma merreca, não é mesmo?);

● mostrando que tinha sentido o golpe, Romário não quis saber de telefone ou videoconferência: precipitou-se no primeiro avião para conversar, cara a cara, com seu banqueiro;

● a carta do banco declara, sim, que aquele estrato é falso e que a conta mencionada não pertence ao senhor Romário de Souza Faria. O BSI, banco sério, não tem nenhum interesse em fazer declaração falsa. Estranhamente, porém, não há menção do que todos gostariam de saber.

A carta do banco não informa:

Interligne vertical 17b● se a conta mencionada no extrato existe

● caso exista, a quem pertence? A alguma empresa offshore?

● se o senador não é o titular, será ele o beneficiário dos fundos?

● o senador – ou algum seu preposto – é (ou já foi) titular ou beneficiário de alguma conta?

● na afirmativa, em que período e com que saldo?

Pronto, aí está o que se sabe. Perduram mais perguntas que respostas. Achar isto ou aquilo não nos levará a lugar nenhum. Somente os envolvidos – correntista, banco e advogados – conhecem a verdade integral.

Nós, mortais comuns, jamais saberemos qual dos dois provérbios funcionou desta vez: se «onde tem fumaça tem fogo» ou se «nem tudo o que reluz é ouro». Talvez os dois sejam verdadeiros.

Interligne 18c

PS: Como já expliquei a meus distintos leitores, em post de dois meses atrás, a banca suíça faz nítida diferença entre titular de uma conta e beneficiário dos fundos. Não ser titular não significa não ser beneficiário do dinheiro.

Personagens muito conhecidos costumam se esconder por detrás de laranjas ou de empresas offshore. Em casos assim, o banco pode declarar, sem mentir, que fulano não é titular de nenhuma conta. Para estrangeiros não inteirados da astúcia, costuma funcionar. O inquérito morre aí.