Standing ovation

José Horta Manzano

Até um mês atrás, a popularidade de Volodímir Zelenski, presidente da Ucrânia, andava baixa. Ele seguia o destino reservado a todos os políticos de quem os eleitores esperam milagres. Dado que, em tempos normais, milagres não costumam ocorrer, a população que conta com eles acaba se sentindo frustrada.

Acontece que a invasão das tropas russas virou o país de ponta-cabeça, e a situação mudou drasticamente. Calcula-se que, até agora, 10 milhões de cidadãos tiveram de fugir abandonando casa e bens. Isso representa 23% da população do país. Proporcionalmente, é como se 49 milhões de brasileiros tivessem sido obrigados a fugir, sem destino certo, só para salvar a pele. Uma calamidade!

O Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados informa que, até ontem 23 de fevereiro, 3,7 milhões de ucranianos – um contingente constituído basicamente de mulheres, crianças e anciãos – foram mais longe: atravessaram a fronteira e deixaram o país natal em busca de refúgio no estrangeiro, principalmente na Polônia.

Zelenski, o presidente em quem ninguém botava muita fé até outro dia(1), tem mostrado ser excelente chefe de guerra. Encarna o herói tal como é definido nos dicionários: aquele ser carismático que, em circunstâncias adversas, se destaca como figura protetora que mostra o caminho a seguir.

Seu passado de ator tem sido precioso na adversidade. O trabalho de anos diante das câmeras deu-lhe segurança na hora de falar ao público. Por meio de internet, zoom e telão, tem sido o convidado de honra de numerosos parlamentos ao redor do globo.

Sempre ovacionado de pé por parlamentares, já discursou ao vivo, por meio de telão, no Parlamento da União Europeia, no Congresso Americano, no Bundestag (Parlamento Alemão). Já se exprimiu também nos seguintes parlamentos: Canadá, Itália, Japão, Israel, Reino Unido. Ontem foi a vez da França, onde foi ouvido por deputados e senadores reunidos em sessão extraordinária. Recebeu a habitual standing ovation.

Zelenski sabe encontrar as palavras certas para tocar o fundo da alma dos que o escutam. Nos EUA, lembrou os ataques a Pearl Harbour e às torres gêmeas; na Europa, mencionou as invasões da Segunda Guerra; na França, comparou as ruínas da cidade-mártir de Mariúpol à destruição da francesa Verdun, na Primeira Guerra.

Diferentemente de seu xará russo, que pensa muito em si e pouco no próprio povo, Volodímir Zelenski tem demonstrado pouco apego à própria vida e grande amor pelo povo que o elegeu. Sabe perfeitamente que, a todo momento, um míssil russo pode destruir o palácio do governo, que ele transformou em seu quartel-general. Transpira coragem, enquanto Putin, seu agressor, vive cercado por um batalhão de seguranças e não come nada que não tenha sido antes experimentado por um dos provadores oficiais.

A Ucrânia, a Europa e o mundo inteiro torcem para que esse pesadelo termine logo. Esta é uma guerra que só deixará perdedores. Perde a Ucrânia, um país destruído. Perde a Rússia, um país condenado a passar as próximas décadas à margem da civilização. Perde o mundo, que vê ressurgir o pavor do urso soviético, que todos imaginavam morto e enterrado.

Folha de São Paulo, 20 out° 1977

Zelenski não discursou para os parlamentares brasileiros. Desconheço a razão. Talvez, ocupados com escândalos paroquiais, tenham esquecido de convidá-lo. Ou talvez nosso Congresso não disponha de telão – deve ser isso.

Em outubro de 1977, em pleno regime militar – só os muito antigos se lembrarão – nosso Congresso recebeu a visita da lindíssima atriz holandesa Sylvia Kristel. Ela tinha sido a estrela do filme Emmanuelle. A exibição do filme tinha sido proibida no Brasil, por ele ter sido considerado ousado demais. A censura só viria a liberá-lo 3 anos mais tarde.

Jornais da época relatam a tietagem de que a moça foi objeto por parte de assanhados parlamentares. (A palavra tietagem ainda não existia; dizia-se paparicação.) Sylvia Kristel conversou com deputados e senadores, todos encantados e admirativos. Foi recebida até pelos presidentes do Senado e da Câmara, respectivamente Petronio Portella e Marco Maciel(2).

Não se deve tirar nenhuma conclusão apressada. Seria injusto afirmar que nossos parlamentares se encantam mais com a visita de uma beldade estrangeira do que com um drama que sacode a Europa e que trará, é certeza, repercussões (negativas) para a economia nacional e para o dia a dia de nossa população.

Vai ver que só não convidaram Zelenski para discursar por videoconferência por não disporem do número de telefone dele.

(1) Muitos não botavam fé em Zelenski, é verdade. Mas eu não soube de nenhum chefe de Estado que tenha cometido a imprudência de zombar dele, logo nos primeiros dias da invasão, como fez nosso capitão Bolsonaro, quando fez pouco e tentou rebaixar o colega ucraniano chamando-o de “comediante”. Com direito a muxoxo.

(2) Marco Maciel, que foi vice-presidente do Brasil ao longo dos dois mandatos de FHC, faleceu no ano passado. Ele e um certo Olavo de Carvalho foram as únicas personalidades falecidas durante o governo Bolsonaro que tiveram direito a um decreto de luto oficial. (Coincidentemente, ambos faleceram de covid, doença que o capitão diz que não existiu.) Diga-se, em desagravo à memória de Maciel, que ele dificilmente terá cruzado algum dia com o outro homenageado. Não frequentavam a mesma paróquia.

Ministro evangélico

José Horta Manzano

O comportamento de doutor Bolsonaro e dos bolsonarinhos tem marcas peculiares. Uma delas é a intempestividade – qualidade daquilo que ocorre fora do momento ideal. Timing errado é como se deve dizer em portinglês(1). Outra característica dos atuais gestores do país é o costume de dirigir a fala ao auditório presente, esquecendo-se de que tudo o que dizem em público é gravado, filmado e reproduzido para plateia nacional. O Lula costumava fazer isso, só que, naquela época, internet e redes sociais estavam engatinhando. Hoje mudou. O que se diz a um público alegre e receptivo acaba extravasando e chegando aos ouvidos de uma multidão mal-humorada que rechaça aquela ideia. Aí, danou.

Na sexta-feira 31 de maio, o presidente esteve de visita a um templo da associação religiosa Assembleia de Deus, um dos numerosos grupos neopentecostais surgidos nos últimos vinte anos. Sentindo boa receptividade na fervorosa audiência, fincou pé e soltou o verbo. Disse estar convencido de que «está na hora de termos um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal». Abafou. Foi standing ovacionadover (1) durante quase um minuto, duração que o aplausômetro do envelhecido plantel atual de artistas brasileiros já não costuma registrar.

É, mas uma coisa é falar para plateia homogênea e outra é falar para o conjunto do eleitorado. Tudo o que o presidente diz em público, ainda que falando para círculo restrito, acaba ecoando no país inteiro. E a fala se alastra em questão de minutos. Levando em conta esse parâmetro, deduz-se que doutor Bolsonaro não foi muito esperto.

De fato, apesar do crescimento exponencial que vêm conhecendo estes últimos anos, as denominações neopentecostais (ditas ‘evangélicas’) englobam, grosso modo, um terço dos brasileiros. Por exclusão, conclui-se que dois em cada três conterrâneos não são adeptos de nenhum desses movimentos. É um contingente enorme.

Ao preconizar que o próximo ministro a ser nomeado para o STF seja ‘evangélico’, doutor Bolsonaro agrada um terço dos eleitores enquanto irrita os outros dois terços. Não me parece um bom cálculo. O marketing presidencial dá prova de continuar enguiçado.

E tem mais. A Constituição dá ao presidente total liberdade na hora de escolher ministro para o STF. Trocado em miúdos: quem decide é ele mesmo, sem precisar dar satisfações a ninguém. Portanto, além de imprudente, a fala presidencial é intempestiva – ocorre na hora errada. Irrita quem não devia, na hora em que não devia, sem necessidade real. É ruído desnecessário.

(1) Portinglês (ou portuglês, ou portenglish, ou portunglês) é uma língua mista – um crioulo, como dizem os linguistas – formado do encontro de uma língua estrangeira (inglês) com a língua nativa (português). A sintaxe segue o modelo da língua nativa, enquanto o léxico é fortemente alterado pela língua importada. O crioulo fica impregnado de termos ingleses tratados conforme a sintaxe portuguesa.

A parte importada é frequentemente truncada e sistematicamente pronunciada com sonoridade distante do original. Por exemplo, a palavra importada “doping” é pronunciada “dópinh”, quando o original é “dôuping”. Para o falante do crioulo, bem pronunciada ou não, a importada soa mais chique que a reles dopagem nacional – palavra, aliás, dicionarizada.