Caminho traçado

José Horta Manzano

Fascismo 4Lúcida e interessante é a visão do escritor boliviano Juan Claudio Lechín(*) sobre as diferenças entre ditadura e fascismo. Seu livro Las máscaras del fascismo, publicado em 2011 por Plural Editores (La Paz, Bolivia), corajoso e didático, põe o dedo na ferida. O livro traz subtítulo sugestivo: Castro, Chávez, Morales, um ensaio comparativo.

Um decálogo (dodecálogo seria melhor dito) elenca as principais características do perfeito caudilho fascista.

Interligne vertical 11c1. O caudilho fascista é messiânico, carismático e de origem plebeia.

2. Os braços do caudilho são o partido e a tropa de choque, seja paramilitar, seja militar ― com forte componente de aventureiros descompromissados e de delinquentes.

3. A língua do caudilho: a propaganda política.

4. A fé do caudilho: uma fantasiosa promessa política redentora.

5. O ouvido do caudilho: serviços de inteligência repressiva, espiões e delatores.

6. O caudilho toma carona na refundação da pátria e/ou na mudança do nome; na reforma constitucional e/ou na modificação da constituição e em novos símbolos do Estado.

7. O caudilho dedica-se a destruir atos eminentemente liberais ― valores e instituições.

8. O caudilho é antiliberal e antiamericano.

9. O caudilho transforma em igualdades políticas os seguintes conceitos: caudilho = partido = Estado = nação = pátria = povo = história épica.

10. O adeptos do caudilho: adesão popular militante. Retorno à servidão.

11. A perpetuação do caudilho no poder: governo vitalício, com ou sem eleições. Monarquia plebeia.

12. Valores medievais: coragem militar, arrojo, prestígio de morrer combatendo, valores marcadamente viris (machistas), senhoriais e homofóbicos. Inflamar a militância com inflamados discursos de confrontação, lutar por um ideal santo, contra o herege irreconciliável.

Com base nas características elencadas, o autor não reconhece o chileno Augusto Pinochet nem o argentino Jorge Rafael Videla como fascistas, apesar de seus crimes. Comandaram ditaduras, mas não fascismos.

A essência do pensamento de Lechín está resumida nestas poucas linhas:

Fascismo 3«El fascismo es un modelo pragmático para la toma absoluta del poder por parte de un caudillo mesiánico, por medio de la seducción o el crimen, las urnas o los fusiles, el discurso o el golpe, la nacionalización o la privatización y cualquier otro instrumento eficaz para el objetivo absolutista. En este concepto se inscriben todos los caudillos, cada uno ciertamente impulsado o frenado por las características de su propia realidad; de ahí que muestren diferentes desempeños aunque subyazca la misma naturaleza.»

Traduzindo, fica assim:

«O fascismo é modelo pragmático para a conquista absoluta do poder por parte de um caudilho messiânico por meio da sedução ou do crime, das urnas ou dos fusis, do discurso ou do golpe, da nacionalização ou da privatização, e de qualquer outro instrumento eficaz para alcançar o objetivo absolutista. Nesse espírito, inscrevem-se todos os caudilhos, cada um, por certo, estimulado ou freado pelas características de sua própria realidade. Eis por que, embora o modus operandi possa diferir, a mesma natureza esteja sempre latente.»

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Qualquer parecença com a realidade brasileira destes últimos anos pode não ser mera coincidência.

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(*) Juan Claudio Lechín Weise (1956-) é homem de letras e pensador boliviano, agraciado em 2004 com o Premio Nacional de Novela. Seus estudos começaram em seu próprio país e prosseguiram na Itália, no Peru, na Venezuela e nos Estados Unidos. Diplomado cum laude em Economia pela Universidade de Boston.

Grande jogada

José Horta Manzano

A partir do século XVII, os habitantes de grandes países começaram a se dar conta de que não era normal que uma pessoa ou um pequeno grupo desse as cartas e governasse sozinho. Foi assim na Grã-Bretanha de Cromwell, na França da Revolução, nas colônias da Nova Inglaterra. Aqueles povos se consideravam já maduros para dar um basta à oligarquia. Regimes absolutistas ― com rei sol ou sem ele ― já não combinavam mais com os novos tempos.

Boca de urna 1No Brasil, demorou um pouco. Durante o período imperial, o monarca detinha o Poder Moderador, que, na prática, lhe conferia atributos dignos de um soberano absolutista. Foi preciso esperar até 1889, quando um golpe de Estado derrubou o regime e instaurou a República. A partir de então, nosso país disse adeus, pelo menos em teoria, a governantes discricionários.

Tivemos recaídas. Com golpes em 1930 e em 1937, Getúlio Vargas fez retroceder o Brasil a um regime fechado, no qual uma pequena casta voltava a deter o poder. A liberalização de 1945 durou pouco. Menos de vinte anos depois, as rédeas do País eram entregues a um grupo de militares de alta patente. Novo retrocesso. Finalmente, a democracia voltou em 1985, abrindo para todos os cidadãos a possibilidade teórica de ter acesso a postos de mando.

Por um erro ― proposital? ―, a Constituição de 1988 dava ao chefe do Executivo o poder de editar medidas provisórias. A intenção do legislador há de ter sido nobre: visava a evitar a paralisia do governo. A medida provisória deveria ser reservada para casos de extrema urgência, quando não se pudesse aguardar um voto do parlamento. Deveria servir para prevenir casos como a queda de braço a que estamos assistindo estes dias entre o presidente dos EUA e seu Congresso.

Boca de urna 3Mas, sabemos todos, a carne é fraca. Com uma arma tão poderosa na ponta da caneta, nenhum presidente se privou de lançar mão de MPs intempestivas e mesmo de abusar delas. Fizeram isso, com frequência, em casos não justificados por urgência. Estes últimos tempos, o abuso de MPs tem crescido a ponto de se tornar flagrante, escancarado, indecente. Vê-se que o Executivo continua governando um povo anestesiado. Um novo golpe sem armas está sendo assestado contra a democracia.

Um editorial do Estadão de 15 de outubro nos informa que a MP 615, editada por dona Dilma em maio passado, foi aprovada pelo Senado. A nova lei é verdadeira colcha de retalhos. Subvenciona produtores de cana, autoriza agentes penitenciários a portar arma em horário de folga, alarga prazo de renegociação de dívidas fiscais, regulariza terras ocupadas por templos no DF.

Entre esses variegados balangandãs, um sobressai. A atribuição de licença para motoristas de táxi deixa de ser concessão sujeita a licitação e passa a ser hereditária (sic). Como as Capitanias, lembram-se das aulas de História? Como os cartórios. A partir de agora, filho de taxista, taxistinha será. Por direito adquirido. Não é a prova cabal de que o Brasil está enfim se tornando um país civilizado? O Estadão explica o absurdo da situação tim-tim por tim-tim. Não vale a pena repetir o arrazoado aqui.

Em meu artigo A bolsa eleição, publicado pelo Correio Braziliense de 7 de setembro, denunciei a intenção que se oculta por detrás da importação maciça de médicos cubanos. Vejo em cada um daqueles profissionais um cabo eleitoral pronto a influenciar os mais ingênuos de seus pacientes a apoiar, com seu voto, a oligarquia reinante no Planalto.

Boca de urna 2Se analisarmos sob esse aspecto a concessão de licença hereditária a todos os taxistas, entenderemos que o raciocínio é o mesmo. Motoristas de táxi estão em contacto com dezenas de pessoas a cada dia. Muitas vezes, uma conversa amistosa se estabelece entre o profissional e seu passageiro. Se todos os taxistas do País ― que devem ser muitos milhares ― agirem como cabos eleitorais e derem uma forcinha ao governo, a aristocracia que nos governa estará mais próxima do sonho de se perpetuar no comando.

Um taxista que recebeu, de mão beijada, um patrimônio transmissível a seus herdeiros há de estar muito satisfeito com o inesperado presente. Não precisa nem doutriná-lo para elogiar o governo ― ele fará isso espontaneamente.

Grande jogada, não?