Os presentes que os anos trazem

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 25 julho 2024

Correligionários e amigos do peito podem acompanhar teu corpo moribundo até o pé da cova. Podem chamar o padre para a extrema-unção. Podem até despejar pétalas quando teu caixão for baixado. Mas não esperes que algum deles se atire na cova contigo: nenhum o fará. Chega um momento em que o interesse pessoal de cada um sobressai e prevalece.

Basta ver o que aconteceu com Joe Biden. Correligionários antigos, admiradores fervorosos e financiadores generosos, daqueles que por anos o apoiaram, foram, um a um, se afastando da campanha de reeleição. Até personalidades célebres anunciaram publicamente ter desistido de apoiá-lo. Ponto alto da humilhação, o New York Times, jornal mais importante do país, declarou a seus milhões de leitores que considerava ser chegada a hora de Biden renunciar à candidatura e ceder o posto a outro pretendente.

Tudo se precipitou na sequência de um debate televisivo entre Joe Biden e Donald Trump. O desempenho de Biden foi tão calamitoso que o eleitor americano se pôs a duvidar que ele estivesse em condições de governar o país por mais quatro anos. Suas falas foram confusas e nebulosas a ponto de constranger a plateia.

Teorias de complô floresceram. Uma das mais interessantes garantiu que o ataque proveio de uma arma de energia dirigida, de origem russa, manipulada por agente infiltrado instalado no auditório, arma que bloqueou e baqueou Biden. Se os deslizes do presidente tivessem se resumido ao desempenho naquele debate, podia até ser. O problema é que ele foi vítima das mesmas perturbações em numerosos outros pronunciamentos. A “arma de energia dirigida” pôde, assim, ser descartada.

O problema de Joe Biden parece ligado a uma afecção neurológica fomentada pelo avanço da idade. A rápida degradação de sua higidez mental foi observada atentamente mundo afora. Na França, parlamentares já estão propondo um limite de idade para cargos eletivos. Um exemplo dessa prudência já existe no Brasil, com a aposentadoria compulsória dos ministros do STF.

Em princípio, velhice não rima obrigatoriamente com caduquice. Mas há que convir que, quanto mais avançam os anos, mais propenso fica o indivíduo a sofrer certa diminuição do desempenho mental. Para um cidadão qualquer, é chato mas… que fazer? Já para o dirigente máximo de um país, o cenário é mais dramático. Aos 81 anos, Biden não resistiu à pressão e finalmente decidiu entregar as rédeas. Devia tê-lo feito antes. Uma desistência assim, de última hora, ficou com cara de derrota.

Por falar em idade, Luiz Inácio da Silva completa 79 aninhos daqui a três meses. Caso a saúde não lhe falte, ele é bem capaz de tentar a reeleição em 2026. Se o fizer (e se for bem sucedido), já terá completado 81 anos ao assumir o próximo mandato – exatamente a idade de Joe Biden hoje.

Lula é impulsivo e falante. Como se sabe, quem fala muito às vezes desliza. Temos visto as encrencas que as falas de nosso presidente lhe têm trazido. Arrumou briga feia com Israel, se desentendeu com o presidente argentino, deixou os países vizinhos assustados com o apoio explícito a Maduro, causou ressábio geral na Europa com seu respaldo a Putin e seu rechaço a Zelenski. Nenhum dirigente de país grande tropeçou tanto.

Pesquisa recente diz que 55% dos eleitores acham que Lula não merece nova chance em 2026. A dois anos da eleição, não se pode cravar, mas esse resultado deveria acender no Planalto um pisca-pisca amarelo vivo. É sinal sério e grave. Com o drama de Biden ainda fresco na memória, o eleitorado pode se assustar.

Logo será dada a partida da corrida presidencial de 2026. Por enquanto, os candidatos principais não se apresentaram. Vai chegando o momento em que Lula, em seu íntimo, deveria reconhecer que chegou a hora de designar seu herdeiro político. O mais importante é convencer-se de que esse é o melhor caminho. O anúncio público pode vir mais tarde. Se Lula insistir em se apresentar como candidato, a crescente rejeição que ele sofre vai poluir a campanha. Uma avenida estará então aberta para a volta dos bolsonaristas.

É sempre melhor saltar do bonde por vontade própria do que ser atirado fora do veículo.

Maioridade penal e eleitoral

José Horta Manzano

Tem coisas curiosas. Faz anos que se discute sobre a idade em que o cidadão deve ser considerado apto a enfrentar processo penal. Volta e meia – principalmente quando algum crime escabroso, cometido por menor, provoca comoção nacional –, o assunto vem à pauta. Serenados os ânimos, volta à gaveta.

Enquanto isso, num reconhecimento de que o homem amadurece cada vez mais cedo, outros pisos etários têm sido alterados. Já faz tempo que se concedeu, a jovens de 16 anos, o direito de votar. Estes dias, a Câmara aprovou, assim sem mais nem menos, importantes alterações relativas à idade mínima.

Criança 5Candidato a senador(*) não precisa mais esperar até ter completado 35 anos: com 29 já pode postular. Também aos 29, todo cidadão que estiver no gozo de seus direitos civis poderá disputar chefia de governo estadual.

Na mesma votação, suas excelências mudaram até a idade exigida de candidatos a deputado federal ou estadual. A linha demarcatória da idoneidade foi adiantada de 21 para 18 aninhos.

Em tese, adolescentes de 16 anos podem agora não somente eleger deputado de 18, como também governador e senador de 29. No entanto, surpreendentemente, o mesmo adolescente que decide sobre os rumos do País é considerado penalmente irresponsável. É contraditório.

Criança 6Julgo que não é possível ser e não ser ao mesmo tempo. Se o jovem está suficientemente maduro para a importante decisão de escolher seus dirigentes, há de estar também para distinguir entre o bem e o mal, entre o que é permitido e o que não é.

Assim mesmo, maioridade penal é assunto complexo demais para ser tratado levianamente, ao sabor do humor político do momento. Envolve considerações filosóficas, psicológicas, criminológicas, políticas, sociológicas, econômicas.

Criança 4No meu entender, todo o sistema penal brasileiro merece ser revisitado. A nova roupagem não ficará pronta na semana que vem. Uma comissão de doutos e peritos tem de se debruçar sobre o assunto. Terão de responder a uma questão filosófica básica: «A finalidade da pena de privação de liberdade é castigar o condenado, vingar-se dele, exclui-lo da sociedade ou recuperá-lo?»

A resposta a essa pergunta orientará a discussão. Enquanto isso não acontecer, não me parece oportuno alterar o patamar da maioridade penal.

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(*) Senador deriva do termo latino senatus, que designa um conselho composto pelos cidadãos mais velhos. A família de descendentes, em nossa língua, inclui sênior, senectude, senescente, senecto. Inclui também senilidade, transtorno que tem demonstrado não ser necessariamente apanágio de idosos.

Revendo…

Myrthes Suplicy Vieira (*)

“Na véspera de não partir nunca,
ao menos não há que arrumar as malas”

Fernando Pessoa

– Você me disse que ia passar a vida toda tentando fazer-me feliz. – É que eu não imaginava que fosse viver tanto.

Há pouco tempo, registrei aqui neste espaço minhas percepções sobre o lado obscuro do envelhecimento. Hoje quero alterar meu ângulo de visão e tentar listar as mudanças que caracterizam o lado luminoso da velhice.

Antes de mais nada, sinto em mim que estou mais conectada com aquilo que alguns especialistas em psicologia e psiquiatria chamam de “energias sutis”. Explico melhor: ao longo da vida, vamos aos poucos abrindo mão das experiências de alta intensidade que atraem tanto os mais jovens. Aprendemos a trocar adrenalina por endorfina, a substituir a paixão por velocidade pela degustação lenta dos prazeres.

Vin 1Exemplos? Vários, a maior parte dos quais ligados aos órgãos dos sentidos: a sensação prazerosa de uma brisa tocando nosso rosto, o calor gostoso na pele quando nos sentamos ao sol em um dia frio, nosso palato e nossa língua absorvendo lentamente os sabores e os aromas de um bom vinho, nossa pele arrepiando e nossos pelos se eriçando quando alguém sussura alguma coisa íntima em nosso ouvido, nossos olhos se enchendo de água diante da ternura ou da beleza.

– Não fiquei de todo satisfeita com o transplante de quadril.

– Não fiquei de todo satisfeita com o transplante de quadril.

Depois vem a “idade do conforto”. Já não prestamos tanta atenção aos ditames da moda e às regras sociais. Em vez do salto agulha, um bom mocassim. Em vez das sensuais roupas apertadas, vastidão de tecidos de toque macio. Em vez da cirurgia plástica, um bom spa. Em vez dos almoços de negócio em lotados restaurantes fashion, comidinha caseira ingerida bem devagar em meio a um papo descontraído com os amigos. Em vez do mobiliário Bauhaus, afundar gostosamente num velho sofá que, de tão usado, já assumiu a forma de nosso corpo.

Entramos então em pleno desfrute do “tempo da delicadeza”. Nada de som muito alto, nada de comida muito temperada, nada de gargalhadas histéricas, nada de arroubos passionais, nada de ativismo político exacerbado. Mais vale observar em silêncio emocionado uma flor se abrindo do que participar de um espetáculo circense. É nossa alma que começa a exigir autocontenção.

Edgar Walter Simmons (1917-1994), artista mineiro Óleo sobre tela

by Edgar Walter Simmons (1917-1994), artista mineiro
Óleo sobre tela

Chega mais tarde, lá pelos 75 anos, uma fase que uma amiga descrevia como a da “adolescência reciclada”. Passamos a nos permitir viver experiências que nos eram proibidas em nossa juventude. Pular de paraquedas? Por que não? Ir ao cinema sozinha? Pode ser. Deixar o medo do ridículo de lado e agitar num baile da terceira idade? Hum, dá para pensar. Paquerar aquele vizinho viúvo metido a descolado? Topo! Praticar “sincericídio” o tempo todo com parentes e amigos também pode ser uma experiência libertadora. O que importa é buscar o próprio prazer, tomando apenas o cuidado de não ferir intencionalmente outras pessoas.

Dança 3Pelo que observei no comportamento dos ainda mais velhos, depois dos 80 anos tem início uma fase que passo a denominar de “infância reciclada”. Comer todas aquelas comidas gordurosas que o médico contraindicou, esquecer de tomar o remédio, cabular o banho, talvez até fugir de casa – tudo adquire um gosto delicioso de transgressão desejada, de molecagem consentida, de verdadeira autoexperimentação.

Sol 1Loucura, diria você, ou será que, pensando bem, é uma sutil demonstração de sabedoria? Afinal, estaremos nos despedindo com savoir-faire das últimas cores e sabores de nossa vida.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.