Doa a quem doer

José Horta Manzano

A expressão “doa a quem doer” me traz à memória a gafe histórica perpetrada por Fernando Collor, então presidente do Brasil. Há exatos 30 anos, em entrevista à televisão argentina, Collor afirmou que estava preparado para punir os culpados por quaisquer irregularidades em seu governo. Em refinado portunhol, acrescentou: “duela a quién duela”, que lhe pareceu ser a melhor tradução para “doa a quem doer”.

Expressões idiomáticas não devem ser traduzidas ao pé da letra porque, em geral, dá linha cruzada (essa é do tempo do Onça). Por exemplo, se você pegar a expressão “ao pé da letra” e traduzir para o inglês – ao pé da letra –, fica “to the foot of the letter” – sequência de palavras incompreensível para ouvidos anglófonos.

Dando de ombros a toda prudência, Collor ousou. E se estrepou. Naquela circunstância, um ouvido hispanofônico esperaria algo do tipo “no importa a quién le duela”.

Só ouvintes muito espertos devem ter entendido o “duela a quién duela”. Mas Collor não era esperto.

Classe é pra quem tem

José Horta Manzano

Classe é pra quem tem, não adianta fazer de conta. Quem não tem, fica sem. O mundo nos tem brindado com alguns figurões políticos que brilham justamente pela falta de classe.

Mr. Donald Trump tem doutorado na matéria. Suas escorregadelas são diárias. A última surpreendeu até admiradores. Foi quando, no dia de Natal, perguntou a uma criança de sete anos se ainda acreditava em Papai Noel. Fez isso diante das câmeras que levavam a cena a todas as famílias do país. Baita pisão de bola.

Chirac na praia de meia preta

Certa feita, quando era presidente da França, Jacques Chirac hospedou-se no Forte de Bregançon ‒ residência presidencial de verão. Uma bela manhã de sol, dirigiu-se à praia em companhia de dois assessores. Os acompanhantes iam convenientemente trajados de bermuda e chinelo ou sapatinho raso sem meia. Monsieur Chirac respeitou o código vestimentar com exceção de um detalhe: calçava meias pretas. A caminho da praia. De bermuda. Passaram-se anos, mas os franceses comentam até hoje.

Nos últimos anos de vida, quando já o chamavam «coma andante», Fidel Castro deixou-se fotografar algumas vezes no retiro secreto onde definhava aos poucos. A cada vez, seu agasalho portava, bem visível, o logo de conhecida marca alemã de roupas esportivas. Nas costas alquebradas do dono de uma ditadura comunista, essa adesão explícita à fé capitalista pegou mal.

Bolsonaro de Nike

Lula da Silva, quando inaugurou seu primeiro mandato, não tinha mais classe do que tem hoje. Antes de ser repreendido por seu entourage, apresentou-se mais de uma vez em público vestindo terno e gravata e levando, picado na lapela, un pin com a estrela vermelha do PT. Todos ficaram chocados de constatar que o recém-empossado não se considerava presidente de todos, mas chefe de um partido. Precisaram sacudi-lo pra ele acordar.

O atual presidente eleito e excelentíssima senhora também têm, visivelmente, um problema vestimentário. Semana passada, doutor Bolsonaro mandou ao ar um vídeo com uma espécie de prestação de contas. Inspirado ironicamente no falecido ditador cubano, apareceu vestindo um agasalho de conhecida marca americana de roupas de esporte. Pra quem se declara nacionalista e defensor dos interesses da pátria, ficou esquisito. Em se tratando de presidente eleito, ficou pior ainda.

Dona Michelle Bolsonaro e seu lulu

Doutora Michelle Bolsonaro mostrou comportamento concordante com o do marido. Esta semana, passado o Natal, chegou de barco ao Iate Clube de Itacuruçá, no Rio. No desembarque, foi fotografada carregando seu lulu no colo e vestindo camiseta preta com os seguintes dizeres estampados: «Se começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema». Como se lembram todos, a frase foi pronunciada pela juíza Hardt, quando do mais recente interrogatório de Lula da Silva. Ficou a pergunta: o que é que tem o interrogatório do Lula a ver com as férias de madame? Tivesse ela usado camiseta com o escudo do Corinthians ou do Flamengo, não teria sido mais brega.

Faz tempo que bom-tom e presidência não rimam.

Rain forest

José Horta Manzano

Doutor Temer visitou a Noruega esta semana. O porquê da viagem não ficou suficientemente claro. Terá havido alguma razão específica, mas ignoro qual seja. A mídia brasileira não deu grande importância à vilegiatura presidencial. O mais comentado foi a gafe cometida pelo doutor ao declarar diante de microfones que estava para se encontrar com o rei da Suécia. (Na verdade, ia ser recebido pelo rei Harald, da Noruega.)

Primeira-ministra deixa claro que, caso o desmatamento no Brasil aumente de novo, a ajuda norueguesa será cortada.
Chamada do jornal Adresseanvisen, Oslo.

Mais do que irritar os anfitriões, esse tipo de deslize faz sorrir e mostra ignorância do hóspede. Volta e meia acontece. Lembro-me quando o presidente americano Ronald Reagan, de visita ao Brasil, levantou um brinde de agradecimento ao governo da Bolívia. Ponha-se na conta do despreparo do discursante e adicione-se uma pitada de cansaço e de defasagem horária. Não é o fim do mundo.

Já a primeira-ministra norueguesa pronunciou crítica azeda à corrupção no Brasil. Mas isso faz parte do jogo de cena. De qualquer maneira, o Brasil ‒ assim como os demais países da América Latina ‒ são vistos como corruptos, pelo menos do ponto de vista escandinavo. Ainda que, por um milagre, nossos governantes se transformassem subitamente em arcanjos, os povos daquelas bandas levariam muito tempo pra se convencer. Os clichês têm vida longa.

O problema maior levantado pela primeira-ministra e repercutido por manifestantes nas ruas foi outro. A preocupação mais aguda é o desmatamento que continua, impávido e impune, na Amazônia. A cabeça de um nórdico não concebe que empreiteiros botem abaixo extensas áreas de floresta úmida sem que ninguém os impeça e sem que nenhuma punição lhes seja infligida. O Brasil tem território vasto, é verdade, mas os modernos meios de observação permitem vigilância permanente. Nada escapa ao olho de lince de um satélite. Se nenhuma ação é tomada contra os infratores, é porque aí tem coisa.

Oslo: manifestação durante visita de doutor Temer

O resultado é que o governo norueguês, chateado, vai cortar pela metade a ajuda de milhões de coroas que dava ao Brasil todos os anos para cuidar melhor do patrimônio florestal. Há que entender que fornecem esse auxílio não por serem bonzinhos mas por entenderem que a extinção das florestas tropicais será catastrófica para o clima do planeta inteiro ‒ inclusive o deles.

Caso o Brasil não dê um basta ao desmatamento, Oslo periga fechar definitivamente a torneirinha de dólares a partir do ano que vem. A gente acaba se convencendo de que deve haver extraordinários interesses ocultos por detrás da impunidade de desmatadores. Como contraponto à Lava a Jato, está na hora de instalar uma Serra a Jato.

Visita de Estado

José Horta Manzano

Não sei se o rancor aparece entre os traços de caráter marcantes dos chineses. O que sei que é que, apesar da aparência fria e distante, são muito sensíveis. Apegados a valores tais como a acolhida a visitantes, dão grande importância à maneira como são recebidos no estrangeiro.

Talvez pelo pouco caso com que foram tratados durante séculos pelos europeus, mostram susceptibilidade exacerbada ao mínimo deslize no modo como são recepcionados quando estão de visita ao exterior. Altas personalidades do governo chinês fazem questão de ser tratadas nos conformes.

Presidente da China: Xi Jingping & esposa Presidente da Suíça: Doris Leuthard

Presidente da China: Xi Jingping & esposa
Presidente da Suíça: Doris Leuthard

Tradicionalmente, a Suíça só recebe uma visita de Estado por ano. Dirigentes estrangeiros podem vir ao país quando desejarem, mas somente uma vez por ano se oferecem honrarias oficiais ao dirigente de um país. Este ano, é vez da China. A última visita de Estado de um presidente chinês tinha ocorrido no século passado, em 1999.

Naquela ocasião, a passagem do dirigente oriental tinha constituído verdadeiro desastre. No exato momento em que o ilustre visitante atravessava a praça em frente ao Palácio Federal, um grupo de cidadãos munidos de faixas, bandeiras e cartazes iniciou uma ruidosa manifestação contrária à anexão do Tibete ‒ assunto supersensível em Pequim.

No discurso que pronunciou logo em seguida, o presidente da China não escondeu a fúria. Mostrando-se amargo e ofendido, disse não entender como a Suíça não tinha capacidade de controlar o próprio povo. Azedo, acrescentou: «Vocês acabam de perder um bom amigo». Pegou muito mal.(*)

suisse-28-xi-jinping-1Mas o tempo dissipa querelas. O presidente mudou, os tempos mudaram. Mais poderosa que vinte anos atrás, a China se esforça para mostrar que merece o lugar de destaque que lhe vinha sendo negado por séculos. Para provar que o antigo comunismo já não existe e que o país se transformou em economia de mercado, o presidente Xi Jinping está na Suíça há dois dias. Veio chefiando a delegação de seu país para participar, pela primeira vez, do Fórum Econômico de Davos. É excelente ocasião para mostrar aos donos dos dinheiros do mundo que vale a pena investir na China.

O governo suíço, escolado pelo fracasso da visita anterior, fez o necessário para não ofender os visitantes. Os entornos do Palácio Federal transformaram-se em praça de guerra. O exército foi chamado para dar uma mão. Há barreiras por toda parte. Atiradores de elite estão posicionados em cima dos telhados. Ninguém circula pelas ruas. Até mesmo moradores da vizinhança têm de ser filtrados, identificados e revistados. Para não tolher completamente o direito de livre expressão, uma manifestação em favor do Tibete foi autorizada ‒ longe do palácio e horas antes da chegada do ilustre visitante.

suisse-29-xi-jinping-2Desta vez, pelo menos até agora, nenhuma gafe foi registrada. Apesar das estonteantes diferenças entre os dois países ‒ a região de Pequim, sozinha, abriga três vezes a população da Suíça ‒ há interesses comuns. A Suíça, que não faz parte da União Europeia, está de olho no imenso mercado chinês. A China, por seu lado, está interessadíssima na tecnologia de vanguarda que lhe faz tanta falta e que a Suíça domina.

Está aí uma das vantagens de não pertencer a nenhum bloco econômico ou político: a liberdade de estabelecer tratados e relações privilegiadas com outras nações. Amarrados por pactos rigorosos, membros da União Europeia ou do Mercosul nem sempre podem agir como melhor lhes parece. Têm de obter anuência prévia dos sócios.

No que diz respeito ao Brasil, está chegada a hora de afrouxar certos nós que nos mantêm atados ao bloco «devagar quase parando» ao qual nosso destino está unido.

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(*) Esse episódio já foi mencionado em artigo meu de quatro anos atrás.

Brasil x Bolívia

José Horta Manzano

Enganar-se ao mencionar nome de país acontece aqui e ali. Quando ocorre em âmbito privado, ninguém liga e acaba ficando por isso mesmo. Se o escorregão sobrevem em público, a saia fica mais justa.

Ronald Reagan 1Lembro-me como os brasileiros se sentiram ofendidos quando Ronald Reagan, então presidente americano, caiu na cilada durante um jantar que lhe foi oferecido em Brasília em 1982. A certa altura, o visitante propôs um brinde ao “povo da Bolívia”. Passados mais de trinta anos ‒ e falecidos todos os protagonistas ‒ muita gente ainda se lembra.

Dona Dilma é especialista em artes desse tipo. Troca nome de autoridades, de visitantes, de cidades, de Estados. Não me ocorre que sua tendência à confusão tenha atingido países. Não é tarde demais: ainda há tempo.

Com maior razão, jornais tampouco escapam do perigo. Conceda-se, em desagravo, que notícias são tratadas e trituradas no sufoco. Essa pressa, se não justifica, pelo menos explica a frequência de atentados como o de Reagan.

Chamada do jornal suíço Neue Zürcher Zeitung, 24 fev° 2016 Clique para ampliar

Chamada do jornal suíço Neue Zürcher Zeitung, 24 fev° 2016
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O mais recente, que me chamou a atenção hoje de manhã, foi cometido pelo Neue Zürcher Zeitung, de Zurique ‒ jornal suíço de referência ‒ em notícia sobre o referendo convocado por Evo Morales para tentar eternizar-se no poder. Na mesma linha de Reagan, o jornal se enrosca entre Brasil e Bolívia.

Bem, há que relativizar. Pela ótica de um europeu mediano, Brasil e Bolívia não são tão diferentes assim. Diferenciar Paraguai de Uruguai deve ser mais difícil ainda. Mas não podemos atirar a primeira pedra. Qual de nós já não hesitou entre Letônia e Lituânia?

Fugiu de medo

José Horta Manzano

Este último fim de semana, importante reunião de cúpula do Mercosul teve lugar na capital paraguaia. Como se sabe, porém, grandes decisões costumam ser acertadas em reuniões de corredor e de sala de café, dificilmente em encontro de chefes de Estado.

Mercosul 5Cúpula solene, com aquela imensa mesa retangular ao redor da qual se sentam mais de cem pessoas, com todo aquele aparato, aquelas reverências, aqueles convidados ilustres, não é lugar propício para discussões. Cada figurão já vem com discurso pronto, escrito, burilado, ensaiado. Não há surpresa, a atmosfera é modorrenta.

Desta vez, no entanto, havia expectativa de ebulição. Señor Macri, recém-empossado presidente da Argentina, já havia deixado claro que cobraria de señor Maduro, presidente da Venezuela, mudança radical de atitude com relação à democracia em geral e a presos políticos em particular.

Mercosul 6Receoso de passar vergonha em público, ainda por cima em terra estrangeira, Maduro renunciou à viagem na última hora. Dilma, Mauricio Macri (Argentina), Tabaré Vazquez (Uruguai) e Horacio Cartes (Paraguai) ‒ os chefes de Estado do Mercosul ‒ estavam lá. Até Michèle Bachelet, presidente do Chile, compareceu. A deserção do brutamontes venezuelano foi gritante e pegou pra lá de mal.

De pouco adiantou ter fugido. Cumprindo o que havia prometido, Macri balançou o coreto ao pedir publicamente «por la pronta liberación de los presos políticos en Venezuela». Para enfatizar seu pensamento, acrescentou que «no puede haber lugar para la persecución política por razones ideológicas ni la privación ilegítima de la libertad por pensar distinto». Mais claro, impossível. Dona Dilma deve ter engolido em seco.

Como se sabe, não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. O castigado povo argentino, finalmente, começa a avistar luz no fim do túnel. Ainda vai demorar pra chegar lá, mas estão em boas mãos. Resta-nos a esperança de que os bons (e novos) ares de Buenos Aires soprem em nossa direção e nos ajudem a livrar-nos dos miasmas que nos sufocam.

O lado folclórico da cúpula ficou por conta de dona Dilma. Apesar de pronunciar discurso já escrito e de estar sendo atentamente vigiada pelo inefável assessor Marco Aurélio «top-top» Garcia, tropeçou.

Na intenção de prestar homenagem ao Paraguai, país que organizava a reunião, declarou: «O povo e o governo brasileiros têm, pelo povo e pelo governo uruguaio (sic), uma grande amizade.» Desculpou-se em seguida, mas o mal estava feito.

Senhora Rousseff acrescentou uma pérola a seu (já extenso) rosário.

Interligne 18h

PS: Notei que nenhum dos participantes se servia de fone de ouvido, daqueles que costumam transmitir tradução simultânea. Cada um falava sua língua e os outros que se virassem. Fico aqui a me perguntar até que ponto dona Dilma terá entendido o que diziam os hermanos. E, principalmente, até que ponto os hermanos terão entendido a fala claudicante de dona Dilma.

Ooops!

Carlos Brickmann (*)

MitraCerto dia, alguém liberou, na France Presse de Paris, a prematura notícia da morte do papa Paulo VI. Na Rádio Bandeirantes, uma das principais emissoras do país, o excelente locutor Lourival Pacheco, que estava no ar, deu a informação.

A emissora já entrava com o aparato fúnebre (biografia, música sacra, personalidades dando depoimentos sobre a perda, prognósticos sobre os possíveis sucessores) quando chegou de Paris a informação de que tudo tinha sido um engano.

Lourival Pacheco, preocupado em esclarecer a situação para os ouvintes, empostou sua esplêndida voz e corrigiu: “Lamentamos informar que, infelizmente, o papa não morreu”.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação. Publica a Coluna Carlos Brickmann em numerosos jornais. O texto aqui reproduzido é fragmento da coluna.