Eduardo Affonso (*)
Noêmia se preparava para sair do cemitério, amparada pelos filhos, quando Moacirzinho a puxou pelo braço.
– Mãe, tá ouvindo?
Soluçando e fungando, Noêmia não ouvia nada.
– Mãe, escuta.
Todos pararam. Zirlene, que não tinha largado o celular um minuto durante todo o sepultamento, tirou o fone do ouvido e também ouviu.
– O barulho. Lá embaixo.
Havia mesmo um tum tum tum abafado, vindo debaixo do montinho de terra fofa.
Tudo bem que não tinha havido velório, que Moacir fora entregue envelopado e ninguém pudera ver o corpo, mas…
Começou o corre-corre, o escava-escava. O coveiro com a pá, Moacirzinho e o os primos e tios, com as mãos. O tum tum tum cada vez mais forte, até que chegaram ao caixão, abriram-no, puxaram o fechecler do saco plástico e lá estava Moacir, de olhão arregalado.
Noêmia não sabia se desmaiava de emoção ou de pavor.
– Papai! – contra todas as recomendações médicas, era Moacirzinho que se jogava sobre o corpo do pai, dando como no reencontro o abraço que não tinha podido dar de despedida.
Içaram Moacir enquanto Noêmia recuperava os sentidos.
Claro que estavam todos perplexos e felizes, mas era nítido que havia algo errado com Moacir.
Ele não respirava.
– Pai, você tá bem?
Moacir não respondeu.
Valdemar apalpou o irmão e declarou:
– Ele está duro.
– Rigor mortis – pontificou o coveiro, gastando o único latim que sabia.
Zirlene, de celular em punho, decifrou o mistério.
– Foi o governo. Papai não está mais morto. Ele e mais 352 foram ressuscitados na recontagem.
Ficaram todos imóveis. Moacir mais imóvel que os outros. Quiseram levá-lo para casa, mas ele não andava.
– Rigor mortis, eu falei – repetiu o coveiro. As juntas não dobram.
Carregaram-no até o Uno, mas logo viram que iam precisar de uma Kombi ou, quem sabe tivessem que levá-lo em pé, de ônibus.
Moacir não só não respirava como não piscava, e só parava em pé porque Valdemar e Moacirzinho o seguravam.
Noêmia pensava num jeito de desmaiar de novo e acordar apenas quando tudo aquilo tivesse acabado.
– Gente – falou Zirlene, ainda mexendo no celular – parece que o Globo, a Folha e o Estadão estão fazendo uma contagem paralela dos óbitos e…
No meio da frase, Moacir caiu para trás. Mais duro do que antes.
(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.
Adorei a ilustração!
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O seu cabo de guerra, então, está excelente. Sofisticado, é pra pensar em casa.
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