Hino recuperado

José Horta Manzano

Estava lembrando da primeira vez que, num jogo do Brasil de Campeonato Mundial, percebi que nosso hino tinha sido truncado. Aconteceu faz umas três ou quatro Copas. A execução parou no “salve, salve”. Foi esquisito. Cioso do respeito aos símbolos da nação, cheguei a pensar que a vitrola tivesse enguiçado, como ocorria nos discos de antigamente. Depois me informaram que o problema não era de toca-discos, o encolhimento era decisão da Fifa. Como assim?

Pois é, a imensa (e bilionária) empresa que regula o futebol no planeta um dia decidiu que nenhum hino poderia mais passar de 90 segundos (um minuto e meio). O nosso, incluindo a introdução, excedia o prazo estipulado. Portanto, guilhotina nele!

Achei revoltante. A meu ver, a Fifa não é a instância adequada para determinar o tempo de execução de hinos nacionais. Podem decidir, por exemplo, que hinos não sejam mais tocados. Mas não faz sentido alocarem um tempo “tamanho único” para todos.

Essa é minha visão. O Brasil de 2014, ansioso por hospedar a Copa, passou por cima dessas miudezas. Não se avexaram e engoliram o hino truncado. Cutucado, o público deu o troco. Uma vez desligado o som nos estádios na altura do “salve, salve”, o povo continuou cantando a cappella, sem orquestra, num espetáculo de dar arrepio.

Este ano, talvez o leitor já tenha reparado, nosso hino voltou a ser cantado até o fim. Talvez alguém tenha feito uma reclamação à Fifa, argumentando que do “Ouviram do Ipiranga” até o “Pátria amada, Brasil” correm 95 segundos, ou seja, somente 5 a mais que o permitido. Não era pedir muito. Foi concedido.

Bom, graças à Fifa, já recuperamos o hino. Falta que nos devolvam a bandeira, que anda por aí, coitada, tomando chuva e envolvendo ombros zumbis.

Ciência, devotos e rebotalho

José Horta Manzano

93%
Esse é o percentual da verba cortada pelo governo de Jair Bolsonaro para gastos com estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos três primeiros anos da sua gestão – a comparação é com os três anos imediatamente anteriores.

Dados levantados pela BBC News Brasil mostram que, nos três anos anteriores (2016 a 2018), os investimentos nessa área foram de R$ 31,1 milhões. Ja na gestão Bolsonaro (2019-2021), foram R$ 2,1 milhões.
A notícia é do portal G1

Os devotos
Como provam os números levantados pela BBC, temos um presidente que, enquanto suborna parlamentares, foge da ciência. E atrás dele, vai a corte obediente, exatamente como nos tempos do “Ancien Régime”. De fato, quando o rei Luís XV se deslocava de Paris a Versailles, por exemplo, toda a corte ia junto – centenas de pessoas, com armas e bagagens. Todos diziam amém ao rei, pois dele dependiam.

Quando menciono os “devotos” de Bolsonaro, que nada mais são que a versão 4.0 da corte dos Luíses, não me refiro unicamente aos que se enrolam na bandeira para aclamar o “mito”. Incluo os personagens que têm mais destaque na vida nacional. São todos aqueles que, por ideologia ou interesses variados, fazem parte dos “agregados” do clã presidencial expandido: militares palacianos, parlamentares bolsonaristas, ministros de ocasião, blogueiros remunerados, e tanta gente mais.

A bandeira
Essa história de aparecer em passeatas e manifestações enrolado na bandeira brasileira não é costume habitual em outras partes do mundo. Bandeira foi feita para ondular ao vento, solta, livre, altaneira, desprendida de agarras humanas.

Esses que adquiriram o bizarro hábito de se enrolar nela, como se manipulassem um trapo ou um cobertor, deveriam saber que, se fizessem esse gesto nos tempos da ditadura militar (cuja volta eles reclamam ingenuamente), iriam direto para a prisão.

Os militares eram – imagino que ainda sejam – ciosos do bom uso dos símbolos nacionais. A execução do hino e a exposição da bandeira e do brasão de armas eram objeto de regras precisas e minuciosas. A cadência (velocidade) de execução do hino é normatizada, assim como a tonalidade (fá maior).

Querem um exemplo das limitações da exposição da bandeira? Nos anos 1960, surgiu um movimento global de liberação dos costumes. Muitas proibições caíram. Na Grã-Bretanha, popularizou-se o uso de roupa com o desenho estilizado da bandeira. Não me consta que isso tenha causado escândalo. Já no Brasil daqueles anos, ninguém ousaria estampar bandeira na camiseta. Sair à rua enrolado no pavilhão nacional dava cadeia. Direto.

Para entrar em conformidade com o regulamento, os que apreciam sair às ruas enrolados em bandeira deveriam abandonar o pavilhão nacional e criar um uniforme qualquer que os distinguisse. Sugiro um retalho de tecido tamanho bandeira – de flanela no inverno, de algodão no verão.

A cor tanto faz, mas é indispensável que haja um imenso B desenhado atrás. O B, é claro, se refere a Bolsonaro. Para os mais exaltados, pode até lembrar o nome de nosso país (sem ferir as regrar que proíbem o uso da bandeira como peça de vestuário). E pode ainda, para os não-devotos, evocar a letra inicial da palavra que designa o excremento dos bovinos. Deixa a todos sorridentes. Não é uma maravilha?

Rebotalho
Há uma emissora paulista de rádio, antiga, tradicional, que chegou a ter certa importância. Um dia, por razões que ignoro (embora desconfie), tornou-se abertamente bolsonarista, daquelas que preferem fechar os olhos para todos os horrores da administração atual, como se não existissem. Agem como blogueiros de aluguel.

Essa empresa acaba de contratar, como comentarista, o doutor Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente refugado alguns meses atrás. Salles caiu por ter sido acusado de estar acumpliciado com contrabandistas de madeira extraída ilegalmente da Amazônia.

Depois que ele saiu de cena, não se ouviu mais falar do andamento do respectivo processo penal. Talvez agora, com sua volta aos holofotes, alguém se lembre de desenterrar o assunto. (Se é que a dita estação de rádio ainda conta com alguma audiência além dos devotos do capitão.)

O jogo

José Horta Manzano

Você sabia?

Imagine o distinto leitor que a Seleção viaje a um país estrangeiro pra enfrentar a seleção local num jogo classificatório de uma copa qualquer. Chega o dia da partida. Estádio repleto, bandeiras desfraldadas, apitos, risos, gritos, torcidas organizadas, ambiente de festa. E de tensão.

Antes do apito inicial, é hora dos hinos. Pelo alto-falante, vem a voz do lucutor: “And now, ladies and gentlemen, please stand for the national anthem of Brazil – E agora, senhoras e senhores, queiram levantar-se para o hino nacional brasileiro”. Os jogadores perfilados, rosto sério, mão no coração, esperam os acordes da introdução. Eis senão quando… soa o hino argentino!

Estupefação geral. Os jogadores se entreolham sem entender. Ninguém sorri, ninguém faz cara feia, todos arregalam os olhos. Na arquibancada, os torcedores brasileiros que acompanharam a Seleção vaiam com estrondo. O hino continua irritantemente a tocar. Vai até o fim. Ninguém aplaude. Em seguida, soa o hino dos donos da casa. O estádio explode de contentamento.

by Kopelnitsky, desenhista ucraniano-americano

O árbitro faz menção de dar início à partida, mas a equipe visitante se nega a jogar. “Não vamos jogar enquanto não tocarem nosso hino!” Os minutos passam sem que os organizadores se deem conta do que está acontecendo. Por que não querem jogar? Demorou até entenderem que tinham tocado o hino errado. E demorou mais ainda até encontrarem o hino certo.

Chega mais uma vez a ordem pra ouvir os hinos. Os jogadores voltam a perfilar-se. “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas” – desta vez, foi. Quando a coisa estava pra entrar nos eixos, a diretoria do estádio decidiu jogar flores na equipe visitante. Ecoa de novo a voz tonitruante do locutor: “Damos as boas-vindas à seleção da Bolívia!”. No alarido do ambiente, poucos se deram conta do disparate. Mas os jornais deram no dia seguinte.

Tem cara de piada, não é? Pois fique sabendo que aconteceu de verdade. Foi ontem à noite, 8 de setembro. Na campanha de classificação para a Eurocopa 2020, a França recebeu a Albânia para um jogo no imponente Stade de France, nas cercanias de Paris. Os fatos se desenrolaram como contei. Em vez do hino albanês, ouviu-se o hino de Andorra – que, aliás, quase ninguém conhecia. E o locutor deu boas-vindas à seleção da… Armênia.

O time francês acabou vencendo a Albânia por 4 a 1. Não se sabe até que ponto os incidentes do início desestabilizaram os visitantes. Compungida, a federação francesa apresentou humilde pedido de desculpa.

Hino espanhol

José Horta Manzano

Você sabia?

Antes do pontapé inicial de jogos de futebol internacionais ‒ amistosos ou de campeonato ‒ é costume tocar o hino de cada país. O momento é solene, com jogadores e árbitros perfilados. Alguns atletas cantam a música, outros não. Cada um terá suas razões. Talvez o distinto leitor já tenha reparado que os jogadores da Espanha nunca cantam o hino. Nenhum deles. Jamais. Por que será?

A resposta é simples: porque o hino espanhol não tem letra. O caso é curioso. Esse clube dos sem-letra conta somente com dois membros ‒ o outro é a República de São Marino. Com um senão: o hino são-marinense tem palavras, só que elas não são oficiais. O da Espanha não tem letra mesmo.

A história começou 250 anos atrás. A música, de autoria de um certo Manuel Espinosa, começou como marcha militar, o que explica que a letra fosse desnecessária. Com o passar do tempo, firmou-se o hábito de tocar o hino em ocasiões oficiais. Dado que, nesses momentos, o rei costumava estar presente, a marcha passou a ser conhecida como Marcha Real ou Marcha de Honra.

Desde o século 19 tem havido tentativas de dar letra ao hino. A primeira, de 1843, deu em nada por não ter sido cantada por ninguém. Uma segunda tentativa foi feita em 1909. Embora tenham sido cantadas em atos oficiais, essas palavras nunca obtiveram apoio popular e acabaram caindo no esquecimento.

Durante a ditadura franquista houve mais uma tentativa, assim como outra em 2007. Nenhuma delas vingou. A mais recente ocorreu dois dias atrás. Numa apresentação no madrilenho Teatro de la Zarzuela, a cantora Marta Sánchez comemorava trinta anos de carreira. De repente, sem aviso prévio, pôs-se a cantar a Marcha Real com letra de sua autoria. A interpretação, acompanhada unicamente por um piano, surpreendeu o público. Aplausos choveram.

Dado que a moça é bastante conhecida, a façanha ecoou nos quatro cantos do país. Até o primeiro-ministro se manifestou por meio de um tuíte dizendo que era «muy buena iniciativa». Líderes partidários e gente conhecida também se mostraram receptivos à ousadia da artista.

A letra tem acentos lírico-patriotas. Saúda a terra «que viu nascer meu coração». Lembra as cores da bandeira e termina pedindo à pátria que «se um dia eu não puder voltar, guarda um cantinho para eu poder descansar». Quem sabe, desta vez vai.

No fundo, o problema espanhol vem do fato de diversas línguas serem faladas no território nacional. Aliás, todas elas têm estatuto de língua co-oficial, cada uma no respectivo território. Uma letra unicamente em castelhano daria um tapa no orgulho dos falantes dessas línguas.

Talvez devessem fazer como fez a Suíça. O hino helvético tem quatro letras oficiais, uma para cada língua nacional. Quando é executado, cada um canta sua letra, e tudo bem. Ninguém se sente rebaixado.

O melhor da Copa

José Horta Manzano

Cada um enxerga a Copa com seus próprios olhos. Para um jogador de futebol em começo de carreira, pode ser a vitrine que o vai propulsar ao estrelato mundial. Para um técnico profissional, pode significar a abertura de interessantes oportunidades. Para autoridades nacionais, pode servir de trampolim para angariar simpatia e votos. Para empresários corruptos, é o momento de contar e recontar a fortuna amealhada nas costas dos bobões habituais.

Para indiferentes ― que os há, acredite! ― é hora de tirar uns dias de férias e desaparecer do mundo dos mortais. Para torcedores, é um momento de emoção, de alegrias, de tristezas. E no final ― quem sabe? ― pode até chegar a hora de gozar a alegria suprema de ver a esquadra nacional subir ao degrau mais alto do pódio. A todos, é permitido sonhar.

Como não sou jogador, nem selecionador, nem autoridade, nem empresário corrupto, não lanço à Copa olhar profissional. Aprecio o esporte em si. Gosto muito daquele balé colorido e imprevisível em que a partitura é inventada e reinventada a cada instante.

Um dos atrativos maiores do futebol é justamente essa incerteza quanto ao resultado. Em outros esportes, o melhor costuma vencer. É raro que, em atletismo, o mais rápido ou o mais ágil deixe de levar a medalha. No futebol, não é assim. Já vi a Itália perder para a Coreia do Norte. Aconteceu na Copa de 1966. O resultado deixou trauma que, passado meio século, ainda não se dissipou.

Há momentos mágicos em que um jogador manda a bola por cima de meia dúzia de adversários para aterrissar aos pés de um companheiro que, por sua vez, dá sequência à coreografia. Sejam quais forem os times em campo, o espetáculo é sempre bonito. Se houver emoção, melhor ainda.

Homem com a mão no coração (detalhe) by Frans Hals, pintor flamengo, séc. XVI

Homem com a mão no coração (detalhe)
by Frans Hals, pintor flamengo, séc. XVI

Mas há um momento, nesses jogos internacionais, que ― para mim ― paira acima de todos: é a hora do hino. O nosso é fabuloso. Se hino bonito ganhasse Copa, o nosso teria mais estrelas que a Marselhesa. O nosso é de escutar em pé, mão do coração, nó na garganta.

Recortei e guardo até hoje um artigo que o jornal londrino Guardian publicou doze anos atrás, por ocasião da Copa de 2002. O autor faz esfuziantes elogios ao hino brasileiro dizendo que é o mais gentil, o mais alegre, o mais melodioso, o mais envolvente. Parece escapado de uma ópera de Rossini. Chega a dizer que nosso hino é um dos grandes presentes que o Brasil deu à felicidade humana. É mole?

Parece que a Fifa impõe que a execução do hino de cada país não exceda um minuto e meio. Muitos cabem nessa exigência. O nosso, não. O resultado é que nosso cântico nacional costuma ser truncado, sustado na metade, deixando os jogadores com cara de bobos e o público com um gosto de quero mais.

Hino BrasilEntendo que regra é regra. Leis não são feitas para serem discutidas, mas para serem cumpridas. Mas, convenhamos, nossos (sempre) distraídos congressistas, aqueles que assinaram sem ler a Lei Geral da Copa, deviam ter pensado nesse detalhe.

Posso até entender que se desviem alguns bilhões do dinheiro brasileiro para construir estádios monumentais, mas tenho dificuldade em aceitar que um de nossos símbolos nacionais mais fortes seja desfigurado diante de bilhões de terráqueos.

Os bilhões de dólares, com «arenas» ou sem elas, com «Copa das copas» ou sem ela, seriam desviados de qualquer maneira. Mas truncar o hino, ah, está aí um crime facilmente evitável.

No momento em que escrevo, faltam ainda algumas horas para a abertura do campeonato. Quem sabe uma luz terá baixado nos organizadores? Quem sabe nos deliciaremos com a execução integral da primeira parte do hino?

O futebol é esporte que sempre reserva alguma surpresa. Vamos torcer. Esperemos que seja executado sete vezes. Por inteiro.

Sinto vergonha de mim

Cleide Canton (*)

Sinto vergonha de mim
por ter sido educadora de parte desse povo,
por ter batalhado sempre pela justiça,
por compactuar com a honestidade,
por primar pela verdade
e por ver este povo já chamado varonil
enveredar pelo caminho da desonra.

Fonte: site da escritora

Fonte: site da escritora

Sinto vergonha de mim
por ter feito parte de uma era
que lutou pela democracia,
pela liberdade de ser
e ter que entregar aos meus filhos,
simples e abominavelmente,
a derrota das virtudes pelos vícios,
a ausência da sensatez
no julgamento da verdade,
a negligência com a família,
célula-mater da sociedade,
a demasiada preocupação
com o “eu” feliz a qualquer custo,
buscando a tal “felicidade”
em caminhos eivados de desrespeito
para com o próximo.

Tenho vergonha de mim
pela passividade em ouvir,
sem despejar meu verbo,
a tantas desculpas ditadas
pelo orgulho e vaidade,
a tanta falta de humildade
para reconhecer um erro cometido,
a tantos floreios para justificar
atos criminosos,
Bandeira chorandoa tanta relutância
em esquecer a antiga posição
de sempre “contestar”,
voltar atrás
e mudar o futuro.

Tenho vergonha de mim
pois faço parte de um povo que não reconheço,
enveredando por caminhos
que não quero percorrer…

Tenho vergonha da minha impotência,
da minha falta de garra,
das minhas desilusões
e do meu cansaço.

Bye bye BrasilNão tenho para onde ir
pois amo este meu chão,
vibro ao ouvir meu Hino
e jamais usei minha Bandeira
para enxugar meu suor
ou enrolar meu corpo
na pecaminosa manifestação de nacionalidade.

Ao lado da vergonha de mim,
tenho tanta pena de ti,
povo brasileiro!

(*) Cleide Canton é educadora, advogada, escritora e poeta
www.cleide.poeta.ws/

Ary, o mineiro de Ubá

José Horta Manzano

Ary Evangelista de Rezende Barroso (1903-1964), mineiro de Ubá, está entre os maiores compositores que o Brasil já conheceu. Compartilha o panteão com Tom Jobim, Baden Powell, Pixinguinha, Nazareth e mais um punhado de gente fina.

Ary Barroso

Ary Barroso

Compositor fecundo, legou-nos algumas centenas de criações desde a Aquarela do Brasil ―  uma das peças musicais mais executadas no planeta, espécie de Hino Nacional bis ― até obras desconhecidas e jamais gravadas.

Da obra de Ary Barroso, nada menos que 321 músicas foram gravadas. Num trabalho beneditino, o pesquisador Omar Jubran, apaixonado pela boa música brasileira, dedicou dez anos de sua vida para descobrir, coletar, analisar e remasterizar essas preciosidades. Seu trabalho está pronto desde 2006, faz 7 anos.

Já dois anos atrás, o carioca Dacio Malta postava em seu blogue um artigo relatando a dificuldade que o pesquisador Jubran estava enfrentando na busca de um patrocínio para publicar seu impressionante trabalho sobre um dos maiores músicos brasileiros. Naquela época, a chegada de Ana de Hollanda ao Ministério da Cultura parecia promissora. No entanto, o máximo que nosso pesquisador conseguiu foi… um diploma de honra ao mérito.

Mais dois anos se passaram. Um artigo de Lucas Nobile, publicado no Estadão de dois dias atrás, nos dá conta de que o obstinado cultor da memória musical brasileira conseguiu algum patrocínio. Infelizmente, não veio tudo o que era necessário. Por conseguinte, somente 1000 exemplares da caixa de cedês poderá ser fabricada, em vez dos 2000 previstos. Nada mais que mil exemplares da obra completa de Ary Barroso! O pobre Ary, lá onde estiver, há de estar bem triste ao ver o pouco-caso com que sua obra vem sendo tratada.

Disco de Ary Barroso & orquestra prensado no Uruguai, anos 50

Disco de Ary Barroso & orquestra
prensado no Uruguai, anos 50

Segundo Jubran, o patrocínio da empreitada representaria dinheiro de pinga para qualquer grande empresa. Mas nenhuma se habilitou. Só para constar, repito a informação que já dei em post anterior: faz pouco mais de um mês, Dona Marta Suplicy, atual ministra da Cultura, concedeu 7 milhões e 400 mil reais(!) a três criadores de moda brasileiros para permitir-lhes promover desfiles em São Paulo, Paris e Nova York. É dinheiro que, gostemos disso ou não, sai de nossos impostos. É o governo promovendo a cultura nacional!

Sem memória, não há cultura. É revoltante constatar a inversão de valores em vigor no ministério que foi justamente criado para cuidar do assunto. É afligente ver um povo varrer sua memória e atirá-la ao lixo como se poeira fosse. E ― frise-se ― sob o olhar de enfado das autoridades.

Acabou a copinha

José Horta Manzano

Pois é, a seleção brasileira de futebol levantou a copinha! Foi um triunfo saboroso justamente porque não era esperado. Até o mês passado, nosso País estava em 22° lugar na classificação da Fifa. Até a Suíça estava (bem) à frente.

Ok, vocês me dirão que não se pode botar muita fé no que vem da Fifa. Uma instituição que lida com rios de dinheiro torna-se, paradoxalmente, vulnerável. É, por conseguinte, susceptível a sucumbir a certas distorções.

Seja como for, todos convirão que ninguém esperava que o Brasil chegasse à final. Muito menos que vencesse o jogo. Um jornalista chegou a escrever que a seleção nacional era o azarão da copinha. Daí a (grata) surpresa com o resultado final, incontestável.

Copa das Confederações

Copa das Confederações

O povo compareceu em massa, num Maracanã festivo e tingido de amarelo. Ninguém estranhou muito a ausência de dona Dilma na cerimônia de encerramento do torneio. A vaia monumental não era uma probabilidade, mas uma certeza absoluta. Acho que ela fez bem em não ir ― dos males, o menor.

Já uma coisa me intrigou: a ausência de nosso messias, homem sabidamente chegado às coisas do futebol. Logo ele, que trabalhou tanto pela conquista do direito de sediar a copinha e a copona. Logo ele, homem notoriamente venerado e aclamado pelo povo entusiasta. Logo ele, sempre preocupado em preservar a esplêndida herança que deixou ao País. Logo ele, arroz de festa de todos os momentos de glória nacional. Logo ele, que, sólido e altruísta, jamais abandonou nenhum companheiro nem pulou do barco nas horas difíceis.

Dizem que estava na África. O compromisso na Etiópia ― país que constitui, como sabemos todos, pedra angular na pauta de relações exteriores do Brasil ― era, de certeza, mais importante do que trivialidades futebolisticas.

Sejam louvados o desapego e a abnegação de nosso intrépido e visionário estadista. Muitos anos se passarão antes que apareça no Brasil um outro com as mesmas qualidades.

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Hino
Hoje é dia de ouvir o Hino Nacional. E de pé, faz favor! Se você mora no Brasil ― e é madrugador ― procure sintonizar a Rádio Cultura FM de São Paulo. Para hoje, não dá mais. Mas diariamente, pouco antes das 6h da manhã, vai ao ar uma excelente versão do hino, com banda e coro. Para quem aprecia, é um deleite.

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Desrespeito
Por imposição da Fifa ― sempre ela! ―, a execução dos hinos nacionais não pode exceder um minuto e meio. Para a maioria deles, não há problema. São curtos e cabem perfeitamente no tempo fixado. É o caso da Alemanha, dos EUA, da França, da Itália, do Reino Unido.

Nosso belo cântico oficial, saído direto de um teatro de ópera de Rossini, como já li em algum lugar, não se ajusta ao figurino estabelecido. Um pouco mais longo, vai além de dois minutos. A Fifa não hesitou: amputou-lhe um naco.

Em pelo menos duas ocasiões durante essa copinha, a multidão presente no estádio passou por cima da injunção dos cartolas. Continuou cantando o hino a cappella até o fim da primeira parte. Fato nunca visto antes, foi ressaltado até pelo comentarista da televisão suíça.

Que se aceitem certas exigências da federação internacional de futebol, é inevitável. Mas não se pode admitir que o hino ― um dos símbolos da nação, segundo nossa Constituição ― seja executado pela metade e em andamento mais rápido que a norma. E há mais: que isso ocorra em território nacional com a complacência das autoridades e na presença de pelo menos um ministro da República. Por ironia, justamente aquele que apresentou, faz anos, um projeto de lei ultranacionalista visando a blindar a língua falada no Brasil contra influências estrangeiras.

Como o mundo dá voltas!