A retorção

José Horta Manzano

Pasma perante o óbvio, como de costume, dona Dilma descobriu uma verdade milenar: governos costumam espionar-se entre si. Mentes mais sutis pensariam em arquitetar um plano esperto, desses que se veem nos filmes de guerra, em que o espionado se finge de morto, faz que não sabe de nada, e aproveita o mesmo canal para fazer chegar ao espião falsas informações. (Foi assim que os aliados conseguiram desembarcar na Normandia em 6 de junho de 1944, praticamente sem encontrar resistência por parte dos ocupantes alemães.)

Fazer um casus belli da notícia dada com estardalhaço pela televisão não foi uma ideia genial. Astucioso teria sido minimizar ou mesmo ignorar a informação, justamente para tirar dela o melhor proveito.

Se o governo brasileiro não espiona as altas esferas americanas, é unicamente porque não dispõe dos meios necessários para isso. Mas que ninguém se engane. Sem manter uma rede complexa de informação mundial ― como fazem EUA, China, Rússia, França, Reino Unido ― o Brasil certamente utiliza os meios que pôde desenvolver para saber o que se trama nos gabinetes que lhe interessam.

Espião

Espião

Esse não é o tipo de notícia que costuma aparecer na imprensa nem nas redes sociais, o que não quer dizer que não exista. Portanto, não adianta representar o papel de moralista indignado. Pode impressionar a galeria, mas não fará cessar a espionagem. Pelo contrário, as técnicas futuras tendem a ser ainda mais sofisticadas.

A política é a arte de engolir sapos, como sabemos todos. O governo brasileiro tem engolido cobras e lagartos. Baixou a cabeça diante da invasão de uma refinaria da Petrobrás situada na Bolívia. Silenciou a propósito da inspeção de que foram vítima aviões da FAB naquele mesmo país. Enfiou o rabo no meio das pernas no dia em que palestinos e israelenses declararam alto e bom som que dispensavam nossa intromissão para resolver problemas deles.

Brasília até hoje não passou nem um pito nos venezuelanos por não terem cumprido a parte deles no financiamento da construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. O Planalto não reagiu quando Evo negou salvo-conduto ao senador refugiado ― deixou que a coisa se envenenasse ao ponto de a vítima ter de se virar sozinha para escapar do cativeiro forçado. Brasília tampouco se indignou quando Zelaya, o presidente deposto de Honduras, se aboletou em nossa embaixada em Tegucigalpa e transformou o local em comitê político.

Depois de tantas cobras e tantos lagartos, um sapinho a mais ou a menos não há de causar indigestão. Além do mais, que o governo brasileiro esperneie ou não, vai continuar sendo espionado. E não só pelos EUA. É o tributo que devem pagar os países mais relevantes.

Alguém ― além dos vizinhos de parede ― gastaria dinheiro e esforço para espionar o Nepal ou a Mongólia?

Que trapalhada!

José Horta Manzano

A Cinematográfica Atlântida, criada no começo dos anos 40, especializou-se nas chamadas chanchadas(*), gênero próximo do vaudevile burlesco. Durante 20 anos, produziu mais de meia centena de filmes. Depois, os tempos mudaram, a televisão criou músculos e acabou se impondo. A Atlântida não aguentou o baque e fechou seus estúdios.

Chanchada

Chanchada

Na época em que a companhia cinematográfica nacional encerrava suas atividades, apareciam os primeiros filmes com o personagem James Bond, agente dos serviços secretos britânicos. Contavam histórias rocambolescas, engalanadas por beldades de fechar o comércio e animadas por espetaculares efeitos especiais. No final, o espião e galã, de aparência eternamente impecável ainda que tivesse atravessado um deserto a pé, era sempre vencedor.

Dois meses atrás, com a defecção de Edward Snowden, teve início uma nova história em capítulos. É uma história real, começada como um bom filme de James Bond e que, pelo que o sacolejo da carroça indica, periga terminar em chanchada. Os capítulos têm trazido trapalhadas de dar inveja aos Três Patetas ― os Three Stooges, cômicos do cinema americano dos anos 30. Uma impressão geral de amadorismo impera.

Tudo começou quando um certo senhor Snowden, pequeno funcionário de uma empresa terceirizada contratada pelos serviços secretos americanos, teve um súbito acesso de dom-quixotismo. Ou terá sido de estrelismo, é difícil saber. O fato é que o homem fraudou a confiança que nele haviam depositado seus empregadores e se apoderou de informações que não lhe eram destinadas. Achou de bom alvitre divulgá-las. Estava armada a primeira trapalhada: como é possível que informação confidencial de tal importância seja deixada ao alcance de um funcionário não graduado?

Em seguida, nosso protagonista confia as informações ao correspondente de um jornal inglês, baseado no Rio de Janeiro. Por que essa escolha? Por que um jornal britânico? O Reino Unido é extremamente severo com toda transgressão. O amador Snowden certamente desconhecia esse pormenor. Melhor teria feito se optasse por um jornal francês, italiano, ou de qualquer outro país menos rigoroso com essas bizarrias.

O senhor Greenwald, correspondente do jornal inglês, teme ausentar-se do Brasil. Pressente que, assim que puser os pés em terra estrangeira, será detido e extraditado para o Reino Unido ou para os EUA. Assim, para fazer chegar certas informações a uma jornalista na Europa e de lá trazer outras, serviu-se de seu companheiro brasileiro como portador.

James Bond

James Bond

Parece brincadeira: deixou que o plano de viagem do amigo incluísse uma escala… em Londres! Justo ele, que conhece como poucos a teia de espionagem mundial, deveria saber que, ao dirigir os holofotes sobre si mesmo, tornou-se uma das pessoas mais vigiadas do planeta. Todos os seus atos e gestos estão sendo perscrutados e anotados em Londres e em Washington.

Em mais uma trapalhada ― desta feita, de autoria dos serviços secretos britânicos ―, o emissário de Greenwald foi detido quando da escala londrina. Só foi liberado depois de revistado, interrogado durante horas e despojado dos objetos e das informações sensíveis que carregava.

A desastrada intervenção da polícia britânica teve duas consequências, ambas nefastas. Primeiro, trouxe à ribalta um caso que já andava meio esquecido. Segundo, incomodou um cidadão brasileiro, obrigando Brasília a um protesto formal e despertando indignação no povo brasileiro. De tabela, cutucou nossos aliados bolivarianos. Como se sabe, nossos vizinhos de parede não deixariam passar esta excelente oportunidade de esbravejar contra o «império», em cuja conta debitam todos os males do globo.

Há maneiras mais sutis de subtrair um PC, um telefone celular e alguns bastõezinhos de memória. Uma valise pode desaparecer, por exemplo. Pode-se até organizar um pseudoassalto. Afinal, quem pode o mais, pode o menos.

E assim vai a valsa, de trapalhada em desastre. Os serviços secretos americanos, Snowden, as autoridades russas, Greenwald, os serviços secretos britânicos, todos deram sua contribuição para a geleia geral. Mas o fim do filme já se conhece: Snowden e Greenwald condenaram-se a si mesmos a um degredo ad vitam æternam. O primeiro cumprirá sua pena nas estepes siberianas. Já o segundo teve mais sorte: poderá circular entre Oiapoque e Chuí, com direito a mergulho nas águas de Copacabana.

Espiões continuarão espionando e serviços secretos continuarão servindo e secretando. A Terra não vai parar de girar. Francamente, não se fazem mais bons filmes como antigamente.

(*) Chanchada ― do espanhol, por via platina. Pelas bandas do Rio da Prata, significa baixeza, deslealdade, aquilo que é informal, enganoso. No Brasil, assumiu significado mais macio.

Hipocrisia

José Horta Manzano

Desde que o mundo é mundo, espia-se o próximo. Desde a esposa que remexe nos bolsos da calça do marido (e vice-versa) até altas esferas do governo do país A que bisbilhota os assuntos internos do país B. Desde o mordomo que escuta atrás da cortina, como nos filmes, até organizações oficiais ― complexas, estruturadas e gordamente financiadas ― especializadas no ramo.

Sempre foi assim e sempre será. No entanto, em nome da coabitação harmoniosa, convém tomar cuidado para manter a discrição. Seja debaixo do teto familiar, seja entre países. Assim como os mafiosos, os espiões também têm sua omertà, seu código de conduta.

Embora não se faça muito alarde sobre o assunto, a cada ano são organizadas em vários países (inclusive no Brasil) dezenas de feiras e exposições especializadas em armamentos. Expõem-se revólveres, carabinas, espingardas, bombas de fragmentação, minas antipessoais, até tanques de guerra. As balas são apresentadas em estojos almofadados. Coisa de louco.

Faz algum tempo, num salão desse tipo organizado em Paris, descobriu-se que os chineses haviam montado, no interior de seu estande, uma complexa central de escuta telefônica. Conseguiam captar todas as comunicações que circulassem via telefone celular no recinto da feira. Alguns poucos jornalistas ficaram sabendo. Para evitar um incidente diplomático, o Estado francês fez questão de abafar o acontecido. Ficou tudo por isso mesmo.

A História (não) registrou milhares de outros episódios de mesmo tipo. Dar publicidade a certos fatos pode ser mais danoso do que fazer de conta que não aconteceu.

Interligne 34e

Estes dias, um jovem com vocação para salvador do mundo tomou a ousada decisão de subir ao telhado para anunciar que espiões espionam. Não contou nenhuma novidade, o infeliz. Nada disse que especialistas no assunto já não soubessem. Mas rompeu velho acordo tácito, atributo básico da velha profissão de espião: manter a discrição a todo custo.

Os países espionados ― os quais, sejamos claros, também se espionam entre si ― mostraram-se indignados. «Oh! Como é possível? Entre amigos?» Esqueceram-se todos de que até marido e mulher cometem a mesma incorreção. Mutuamente, às vezes.

Aeroporto Шереметьево Chirimiêtiva Moscou, Rússia

Aeroporto Шереметьево Chirimiêtiva
Moscou, Rússia

Enfim, cada um tem de representar seu papel nesta grande comédia planetária. Ao mesmo tempo que juram respeito e amizade eterna, todos os países transgridem como podem. Espionam-se uns aos outros na medida da tecnologia de que cada um dispõe. Quando um é apanhado com a boca na botija, vem a grita generalizada: «Céus! Nunca esperava isso de você!».

Quanta hipocrisia! No final, vai ficar tudo por isso mesmo. O mundo não vai acabar. O infeliz denunciante, que tenha feito isso por ingenuidade ou por estrelismo, será o único prejudicado.

Que seja acolhido no Equador, na Venezuela ou no Sultanato de Omã, está condenado a viver em aflição permanente até o fim de seus dias. Terá palpitações a cada vez que tocar o telefone ou a campainha de casa. Não se quebram as regras do métier impunemente.

Interligne 34a

Preguiça mental
O site Wikileaks informa que o jovem imprudente enviou pedido de asilo a mais de 20 países. Não sei se por erro de digitação ou por ignorância, a nota informa que o Consulado Russo (sic) no Aeroporto de Шереметьево(*) está despachando os pedidos às embaixadas que os países solicitados mantêm em Moscou. Consulado russo em Moscou? É tão incongruente quanto falar de um consulado brasileiro em Brasília. Vivendo e aprendendo…

Mas não pára por aí. Os funcionários de plantão na Folha de São Paulo e no Estadão, meio sonolentos, repercutiram a informação tal qual a receberam. Engoliram sem mastigar. Confirmam todos a existência de um consulado da Rússia dentro da própria Rússia.

Mundo, mundo, vasto mundo…

 .

(*) Шереметьево = Na Rússia, a pronúncia “Cheremetiêvo” é considerada inculta. Faça como os moscovitas, diga Chirimiêtchiva, numa pronúncia proparoxítona.