Venezuela: donas de casa e aposentados

José Horta Manzano

Os atos de certos políticos são às vezes difíceis de entender. A gente lê a noticia, coça a cabeça, reflete um pouco, relê um parágrafo, e continua sem perceber a intenção por trás do gesto. O que é que está por trás? Nem sempre é claro.

Já faz meses que Donald Trump vem ameaçando a Venezuela. E não é só ameaça verbal, chegou a deslocar uma frota de três navios de guerra abarrotados de sofisticado material, transportando um contingente de 4.000 fuzileiros navais.

Uma armada desse calibre tem potencial de mandar a capital do país a nocaute em três tempos. Mas, se fosse pra mandar Caracas pelos ares, não precisava despachar uma flotilha. O exército americano tem condições de fazer isso a partir de suas bases, sem deslocar ninguém. Mas então, por que a presença dos militares no Mar das Caraíbas (Caribe)?

É aí que fica difícil entender Trump e seu movimento ostensivo de tropas. Ele acusa Nicolás Maduro de chefiar um narcotráfico sofisticado, cujo principal objetivo é contrabandear cocaína para os Estados Unidos. Outros, antes de Trump, já descreveram esse cenário com detalhes. Dada a concordância de numerosas fontes, é possível acreditar que seja assim mesmo, o que coloca os altos coturnos do governo venezuelano no topo de uma rede narcomafiosa.

Ainda assim, não vejo bem o que é que navios de guerra podem fazer para desbaratar esse sistema. Aniquilar um sistema mafioso com tiros de canhâo? Não parece sensato. Nem eficaz. Por que os navios, então?

Só vejo uma hipótese. Seria nosso amigo Trump trabalhando para mostrar que está atento ao seu “quintal” e cuidando bem dele. “Quintal dos USA” é qualificativo dado outro dia por um de seus assessores à América Latina. Quem cuida bem de seu rebanho e aí mantém paz e concórdia merece o Nobel da Paz. (Deve ser o que ele pensa.) Cada um tem direito a suas ilusões.

Agora, comovente mesmo é a ideia de um previdente Maduro que, sabendo que Caracas não será mandada pelos ares por tiros de canhão, arrebanha assim mesmo seu povo num movimento caseiro de defesa nacional. Tal um Hitler nos derradeiros dias da Segunda Guerra, quando os canhões soviéticos já ribombavam nos arrabaldes de Berlim, Maduro alista “donas de casa, aposentados e servidores” para formar um escudo humano, com cidadãos prontos a morrer pela pátria.

A foto que ilustra este artigo nos mostra alguns convocados recebendo as instruções para manejo de bazucas. Não vejo donas de casa, certamente virão mais tarde. Estão todos devidamente uniformizados. (Diferentemente do Brasil, em que patriotas costumam se vestir de bandeira, os de lá trajam vermelho vivo, uniforme decerto providenciado pelo poder.)

Num eventual combate na selva, a cor não serve como camuflagem, mas também não se pode pensar em tudo. De todo modo, Maduro sabe que combate na selva, não haverá. Trump não é besta de expor sua tropa e registrar baixas. Bastaria um marine morto, um só, para sua popularidade ir pro beleléu.

Se tem certeza de que guerra não haverá, por que razão Maduro faz essa mise-en-scène? Há de ser para contentar seu povo, para mostrar a todos que o pai da nação está de olho, ciente da ameaça do “Imperio” e preocupado com ela. Pra confirmar que patriotas de uniforme rubro estão dispostos a arriscar a vida para defender a pátria. Não é bonito?

E assim vamos indo. Para os movimentos de ambos, Trump e Maduro, não há razões claras. Só razões ocultas.

De toda maneira, ambos sabem que não é desbaratando uma rede de traficantes que se elimina o narcotráfico. O fim do tráfico só virá no dia em que não houver mais demanda, quando ninguém mais pedir sua dose diária de estupefaciente (palavra hoje em desuso, mas ainda sugestiva).

Enquanto esse dia não chegar, derrube-se uma rede, outra brotará no dia seguinte.

A briga de vizinhos e o relógio

José Horta Manzano

Você sabia?

Eu me lembro que, quando era criança, havia um relógio em casa. Um só. Soberano, reinava pendurado na parede do corredor. Empoleirado lá em cima, dominava o ambiente. Dono e senhor do tempo, ditava o ritmo da família.

Hoje não é mais assim. A gente vive rodeado de relógios. Tem o do celular, o do computador, o do micro-ondas, o de pulso, o de cabeceira, o do rádio, o do banheiro, o do carro, o de cima da geladeira, aquele que anda esquecido no fundo da gaveta em pré-aposentadoria. Ah, e tem ainda o do corredor, bastante deprimido com tanta concorrência.

Em princípio ‒ digo bem: em princípio ‒, todos deveriam marcar a mesma hora, questão de coerência. Na prática, todavia, a teoria se perde. Ao marcar um minuto a mais ou a menos que o vizinho, parece que cada um dos reloginhos faz questão de afirmar a própria singularidade. Um resto de rebeldia adolescente, sem dúvida.

Lá pelo meio de janeiro, notei que o relógio do forno elétrico andava meio preguiçoso. Fugindo ao costume de empatar com o do rádio, deu de atrasar. Começou com um minuto. Uma semana depois já atrasava dois minutos que, dias mais tarde, já eram três. Imaginei que o mecanismo estivesse sofrendo de reumatismo em razão da velhice. Achei até curioso que relógio também sofresse esses achaques.

Mas a coisa foi piorando. Na segunda semana de fevereiro, quando a defasagem já atingia seis minutos, resolvi dar uma colher de chá ao ancião: acertei o relógio. Não deu uma semana, e o rebelde já corria, penosamente, dois minutos atrás da hora certa. Cheguei a pensar em trocar de forno, mas uma reflexão mais profunda me acalmou. Não vale a pena usar canhão pra caçar pardal.

Eis senão quando fiquei sabendo da razão desse desarranjo. Nulo em física, não tenho condições de explicar tim-tim por tim-tim. Vou-lhes vender o peixe pelo preço que paguei. O problema vem de uma briga de vizinhos que ocorre a dois mil quilômetros daqui, lá pelas bandas da Península Balcânica.

Para entender, precisa saber duas coisas. A primeira é que a rede elétrica europeia é toda interligada, providência bastante prática. Quando um país não tem como responder a um aumento da demanda interna, compra energia dos vizinhos. Esse toma lá dá cá se faz de maneira semiautomática. A segunda informação é que o Kosovo, pequena província que se separou unilateralmente da antiga Iugoslávia, não é reconhecido pela Sérvia como país independente. Os dois vivem mostrando a língua e tentando passar rasteira mutuamente.

Em meados de janeiro deste ano, o Kosovo decidiu privar a Sérvia do excedente de energia. Só para atazanar o vizinho, as autoridades kosovares preferiram desperdiçar eletricidade em vez de ceder ao vizinho, como manda o figurino. Esse pequeno incidente gerou reflexo no sistema de distribuição da Europa inteira. A frequência da rede, normalmente de 50 herz, baixou a 49,996 herz. Essa minúscula variação não altera em nada a potência da eletricidade. Lâmpadas continuam acendendo e motores funcionam sem problema.

Acontece que relógios elétricos ‒ isso eu não sabia ‒ são regulados pela frequência. Se ela foi maior que 50 herz, os bichinhos adiantam. Se for menor, atrasam. Daí o descompasso de reloginhos de forno e de despertadores ligados na tomada. Os governos europeus estão atualmente empenhados em reconciliar os vizinhos bicudos. Não há perigo de estourar uma guerra, mas permanece o risco de muito cidadão continuar chegando atrasado ao trabalho.

O Gueto

José Horta Manzano

Você sabia?

O que vou dizer em seguida periga não agradar a muita gente. Mas estou aqui pra dizer o que penso. Se quisesse apenas repetir palavras de ordem ditadas por hierarcas, entraria pra um partido político. Ainda prefiro usar a própria cabeça pra tirar minhas conclusões. Aconselho a almas sensíveis parar por aqui. Se continuarem a leitura deste post, será por vontade própria. Que não venham, depois, reclamar.

Não se escandalize o distinto leitor, mas enxergo as religiões cristã e hebraica como ramos de um mesmo e único tronco. O tempo e a história se encarregaram de afastar as duas vertentes, mas pouco importa: as raízes são exatamente as mesmas. Esse é um fato que não se poderá modificar. Antes de se tornar religião de características próprias, o cristianismo foi uma dissidência do judaísmo. Uma prova? Pois os escritos que os cristãos chamam Velho Testamento são os mesmos que os judeus adotam. Outra prova? Jesus nasceu, cresceu e se formou em comunidade judaica ‒ portanto, carregava necessariamente ideias e valores inerentes ao meio em que circulava.

Vicissitudes seculares se encarregaram de apartar os dois ramos a ponto de os fazer parecer antagônicos, inimigos até. Em número de adeptos, a vertente cristã logo superou a dos judeus tradicionais. O sentimento mútuo de hostilidade só fez crescer durante a Idade Média. Os cristãos, amplamente majoritários na Europa, tomaram-se de antipatia pelos hebreus a ponto de os perseguir, agredir e combater. Em múltiplas ocasiões, estes últimos foram obrigados a abandonar a terra natal para refugiar-se em plagas menos adversas.

Grosso modo, entre 1450 e 1650, a República de Veneza viveu seu período de maior esplendor. Trocas comerciais com outros portos do Mediterrâneo trouxeram fortuna à cidade e fizeram que seus habitantes lançassem olhar menos tacanho a forasteiros. Ainda que não se possa dizer que Veneza abrisse os braços a estrangeiros, acolhia-os com menos desconfiança do que outras cidades importantes da época.

Nos anos 1500, judeus perseguidos acorreram de diversos pontos da Europa. Vinham do norte do continente, da orla mediterrânea, da própria Itália. Quando a quantidade de novos habitantes começou a incomodar os antigos, as autoridades decidiram confinar os hebreus num ponto preciso da cidade. Era um quadrilátero bem delimitado, de onde não podiam sair sem autorização. Especialmente à noite, eram obrigados a permanecer dentro do perímetro.

O lugar que lhes foi atribuído tinha acolhido, muitos anos antes, uma dúzia de oficinas de fundição de bronze. Era ali que se fabricavam os canhões para equipar a marinha de guerra da República. Em italiano moderno, o ato de entornar o metal em fusão no molde se diz «il getto». Em dialeto veneziano, a pronúncia e a grafia variam entre «el geto» e «el gheto», pronunciadas respectivamente «el djeto» e «el gueto». Era justamente o nome daquele lugar mal-amado, meio pantanoso, onde ninguém queria morar.

Campo de Gheto Novo, Veneza

Com o passar dos séculos, a importância da República de Veneza declinou. A invasão napoleônica deu o golpe de misericórdia. Os hebreus chegados em 1500 e 1600 acabaram se dispersando pelo resto da cidade. Foi abolida a obrigação de viverem confinados no gueto. Hoje em dia, o turista que decidir visitar o lugar vai encontrar comércios e restaurantes de propriedade de judeus, embora praticamente nenhum deles seja remanescente dos antigos habitantes. São gente que se instalou recentemente.

Aos venezianos, cujo dialeto difundiu pelo mundo poucas palavras ‒ entre as quais arsenal e gôndola ‒ cabe o ingrato privilégio de ter dado nome a um dos grandes símbolos de segregação e de discriminação.