Fim de ano na Terra Brasilis

Myrthes Suplicy Vieira (*)

É um pesadelo, só pode ser. Meu coração bate mais acelerado do que de costume. Sinto a boca seca, o peito apertado, a musculatura tensa de braços e pernas e o desejo incontrolável de fugir ou me esconder.

O medo de que, na virada do ano, não haja um dia seguinte é meu velho conhecido. Todo fim de ano, a despeito do calor sufocante, sinto o vento gélido do final dos tempos me rondando. É um medo parecido com aquele que os velhos marinheiros portugueses deviam sentir ao se aventurar por mares nunca dantes navegados, temendo despencar no abismo da quadratura da terra.

by Ame Sauvage, artista francesa

by Ame Sauvage, artista francesa

Este ano, porém, há algo de podre no ar que ajuda a reforçar meu habitual desconforto. Em todos os planos da vida nacional, respira-se um ar denso de degradação moral, torpor, constrangimento e profundíssimo cansaço. É como se estivéssemos todos amontoados no fundo do cenário, assistindo impotentes o desenrolar de uma pornochanchada de péssimo gosto. A cada nova performance acrobática, nossos corações e pulmões se comprimem ainda mais na busca desesperada pelo oxigênio da dignidade e da conciliação. A realidade tenebrosa, francamente indecente, estende seus tentáculos e nos enreda a todos num cipoal orgiástico do qual preferiríamos poder nos livrar.

As revelações bombásticas se sucedem e explodem sobre nossa cabeça com a força de tiros de canhão. Eu, que sempre me esforcei para não parecer moralista, sucumbo à indignação geral e exijo em troca da minha delação a cabeça de João Batista. Quando a seguro em minhas mãos, percebo, no entanto, que nem mesmo ela pode me servir de amuleto para esconjurar o fato de que sou natural de Sodoma e Gomorra.

by Ame Sauvage, artista francesa

by Ame Sauvage, artista francesa

Sento-me no sofá da sala para assistir ao noticiário da televisão, com o coração aos pulos, na ânsia de conhecer os detalhes escabrosos do escândalo mais recente. Na tela, juízes de toga, de peito estufado e empertigados em suas cadeiras de espaldar alto, leem com voz monocórdia seus pareceres legais. De repente, talvez como resultado daquele som monótono e do mormaço, começo a alucinar. A tela da tevê funde-se com insólitas imagens mentais. Penetro num labirinto de escatologias.

Diante dos meus olhos atônitos desfilam personagens e cenas grotescas. Juízes, advogados e réus falam todos ao mesmo tempo em salas de tribunal lotadas. Cada um que toma a palavra o faz com pretensa autoridade técnica, escandindo as palavras, brandindo argumentos e alterando o tom de voz em momentos cruciais. Esforço inútil, ninguém ouve, ninguém compreende, ninguém se interessa. Estão todos se preparando para, quando chegar a sua vez de falar, apresentar o arrazoado definitivo, o detalhe técnico que escapou à atenção dos demais, as palavras capazes de gerar máximo impacto.

A seriedade do ambiente não é circunstancial, como se poderia pensar à primeira vista. Há um indisfarçável odor libidinoso no ar. As palavras vão sendo manipuladas ‒ bolinadas mesmo ‒ por cada orador. Depois, vão sendo enfileiradas com afinco num crescendo de tensão para que explodam ao final como fogos de artifício. Mas o orgasmo não acontece, o alívio da tensão não vem, é preciso recomeçar mais uma vez e sempre.

by Ame Sauvage, artista francesa

by Ame Sauvage, artista francesa

Bruxas voam pelos ares sentadas em suas vassouras e gritam com voz esganiçada que o fundo do poço ainda não foi alcançado, que a descarga não virá nem agora nem nunca. As pragas que nos assolam já não são mais as sete bíblicas. Frutificaram, multiplicaram-se e se transformaram em pragas emocionais. Os gafanhotos da concupiscência agora atacam e devastam plantações inteiras de dinheiro e poder. Os sapos da intolerância entoam seus cânticos de acasalamento nos brejos que criamos em nosso seio.

Figuras esdrúxulas, de peito estufado e queixo erguido, revezam-se diante de microfones imaginários e vão elencando, uma a uma, suas transgressões, com a mesma indiferença de quem prepara uma lista de supermercado. Não há misericórdia, não há compaixão, não há arrependimento em seus olhos. Eles estão vazios, baços, sem vida.

Pelas ruas, multidões vagueiam acabrunhadas e sem direção. A aridez inclemente do clima é espelho a refletir os embates de tantas mentes, corpos e almas áridos. A desesperança ressecou tudo, criou couraças, estancou o fluxo de vontades. A tecnologia ainda tenta seduzir com novas respostas para perguntas que já não podem ser formuladas. Clima de deserto na terra e no âmago de cada um.

by Ame Sauvage, artista francesa

by Ame Sauvage, artista francesa

Um profeta coberto de andrajos abre espaço em meio à multidão. De cabeça baixa, ele chora e, em tom acusador, alerta os passantes para o perigo de rompimento de novas barragens emocionais. A lama acumulada no coração das pessoas, diz ele, precisa continuar sendo expelida até que a natureza humana reencontre seu equilíbrio e volte a se purificar.

Saio à rua cambaleante e esbarro com uma mulher grávida sentada na calçada, já em meio às dores do parto. Ela me pede ajuda em pânico. Estendo as mãos para amparar o recém-nascido que desponta e constato que ele tem a cabeça pequena demais. Ligo para o hospital mais próximo e peço uma ambulância. O atendente, com voz indiferente, diz que a única disponível quebrou no mês passado e que não há dinheiro para consertá-la.

Eu ainda tento argumentar que é Natal, que é preciso acolher com todas as honras o deus que renasce, mesmo que defeituoso na origem. Em vão. Olho em volta, desanimada e penso com meus botões: será que ainda vale a pena gestar novos deuses e tentar salvar esta humanidade?

Interligne 18h

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Juízes são humanos?

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Uma questão tão sensível quanto esta requer, sem dúvida, uma análise criteriosa e demorada. Precisamos examinar o tema sob a ótica de múltiplos fatores. Comecemos pelo mais prosaico deles: o corpo, a matéria física.

JustiçaÉ inegável afirmar que juízes desfrutam de um aparato físico completo, em tudo semelhante ao de quaisquer outros exemplares da fauna humana. A diversidade de formas que seus corpos assumem também reproduz a que podemos encontrar entre profissionais de diversas outras categorias. Há juízes altos e baixos, gordos e magros, atléticos e sedentários, velhos e jovens, homens e mulheres.

A imagem caricatural com que magistrados vêm sendo representados há séculos em todos os continentes é, no entanto, a de sujeitos atarracados, de costas encurvadas, ancas largas, barriga proeminente, pernas frágeis e sem músculos salientes, rostos flácidos e edemaciados, mãos finas e dedos longos, olhos pequenos, o mais das vezes auxiliados por óculos posicionados na ponta do nariz.

Os analistas mais sensíveis poderão objetar quanto a esse padrão corporal caricato: “Ora, é sabido que o uso do cachimbo deixa a boca torta”. Verdade, instados que são ao longo de sua vida estudantil e profissional a permanecer longas horas sentados examinando pastas com centenas de páginas e documentos com letras muito pequenas, tendo de registrar à mão inesgotáveis anotações e pareceres, não lhes restam muitas alternativas para escapar dessa configuração global. Entretanto, voltando à pergunta inicial, mesmo que não se aprecie esse enquadramento físico, a resposta será sempre a de que juízes indubitavelmente têm, sim, um corpo humano. Ponto para eles.

Examinemos agora o aspecto psicológico da questão. A magistratura é, sem dúvida, uma profissão solitária. Relacionar-se, formar vínculos afetivos, confraternizar-se podem não ser os pontos mais fortes desses profissionais. Para conhecer as percepções e opiniões de seus colegas de cátedra, por exemplo, juízes precisam se isolar em seus gabinetes e recorrer a…. papéis. Por outro lado, também haverá, é claro, ao longo da vida profissional, ocasiões em que eles poderão desfrutar de animados intercâmbios de opiniões, como quando da realização de algum congresso acadêmico, a posse de um colega de classe na Ordem, algum evento social que desperte o interesse de outros juristas, além de figuras emblemáticas da República. Alguém poderá observar quanto a isso: “Mas, em todas essas ocasiões, os juízes estarão revestidos da imponência de sua figura pública, portanto seus comentários estarão sempre atrelados ao poder da toga”. Mais uma vez, verdade.

Justiça 4E perguntemo-nos como será então a vida anímica desses servidores da Justiça no recôndito de seus lares e nas relações cotidianas com simples mortais? Parece não haver qualquer evidência em contrário de que, também nesses aspectos, juízes podem vir a ser categorizados como maníacos, fóbicos, esquizóides, equilibrados, autocentrados, paranóides, bem como todas as demais formas de funcionamento psíquico, tudo isso sem considerar que também estarão expostos a surtos, traumas diversos, desequilíbrios temporários.

Dessa forma, goste-se ou não de seu perfil psicológico padrão, forçoso é reconhecer que juízes também dispõem de uma psique. Será sempre possível identificar juízes curiosos, afetivos, sensíveis, autoritários, agressivos, extrovertidos, ensimesmados, etc. Outro ponto que os aproxima da espécie humana.

Se juízes têm corpo e têm alma, onde estarão, então, os pontos que podem nos levar a suspeitar de que eles se afastam da envergadura psicossocial comum de outros humanos? Gastei muitas horas refletindo sobre isso e cheguei à conclusão de que é na simples convergência de seus aspectos físicos, emocionais e sociais que reside a grande dificuldade de afirmarmos que juízes se enquadram plenamente na moldura humana padrão.

Explico melhor: todos nós sabemos ― e sentimos ― como um determinado componente de nossa configuração humana influencia outros. Se acordo com alguma indisposição gástrica ou intestinal, meus pensamentos tornam-se mais lentos, minha lucidez fica diminuída, meu estado de espírito prejudicado para o acolhimento de outras ideias ou de outras pessoas. Da mesma forma, se é um resfriado o que me incomoda, minha disposição para formar ou aprofundar laços afetivos tende a ser dissipada junto com os perdigotos que escapam em velocidade de meu nariz. Enxaquecas, dores lombares, vista cansada, artrites e artroses, tonturas, febres ― enfim, pode-se afirmar com certeza que toda essa miríade de distúrbios físicos atinge também e interfere pesadamente no raciocínio de magistrados.

TribunalInversamente, se o que me aflige é uma discussão acirrada em família, uma preocupação com o bem estar físico, psicológico ou espiritual de um parente ou amigo, um estado depressivo que toma conta de todo meu organismo ou, ainda, uma grande onda de excitação amorosa ou raivosa que precisa ser descarregada, minha isenção de julgamento escorre para o ralo imediatamente. Conflitos dessa ordem parecem ser mesmo inevitáveis sob o prisma estritamente humano.

A mesma similaridade pode ser identificada entre juízes e cidadãos comuns no plano social. Nenhum argumento racional pode eliminar a hipótese de juízes estarem sujeitos a tentações e desvios de conduta social. Há casos famosos, ao menos por aqui, de juízes que vendem sentenças, desviam recursos públicos, favorecem certas elites e até daqueles que assumem sem pudor sua homofobia e discriminam certas crenças religiosas.

Tribunal 1Por que, então, juízes parecem ignorar solenemente a existência de interrelação entre uma instância e outra de sua constituição humana ao emitirem seu parecer final numa causa? Será que o cachimbo da razão pura deixou a boca de seus afetos torta? Será que a energia libidinal represada ― ou, em bom português, seu tesão de viver inexoravelmente perdido ― os incapacitou para a dúvida, para a relativização e para o discernimento entre o que é legal e o que é moral?

Afinal, considerando que o conceito de humanidade pressupõe necessariamente a existência de imperfeições e limitações, parece que a dura conclusão a que devemos tristemente chegar é a de que juízes escapam, ainda que por poucos milímetros, da órbita comum dos seres humanos. Comportando-se como semideuses, posicionando-se acima das atribulações peculiares à espécie, eles nos deixam com uma sensação amarga de impotência. Se até na astronomia já se admite a “equação pessoal do observador” para dar credibilidade e caráter científico a eventuais descobertas individuais, será que já não está na hora de os senhores juízes incorporarem a “equação pessoal do julgador” em suas interpretações pessoais da lei?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

STF e mensalão

José Horta Manzano

Finalmente, a presidente desvelou o nome de seu preferido para ocupar a 11a. cadeira do Supremo Tribunal Federal. Cabe agora ao Congresso nacional referendar a concessão da toga ao ungido. Nossos representantes podem até, numa remotíssima hipótese, desautorizar a indicação presidencial e negar assento no STF ao postulante. Com o Congresso que temos, porém, essa conjectura está mais para delírio do que para realidade.

Até pouco tempo atrás, raros brasileiros acompanhavam as atividades do STF. Acredito até que a maioria nem sequer soubesse para que servia esse tribunal, nem quem eram seus componentes. O cidadão comum se interessava pela composição do colegiado do STF tanto quanto se importava com a diretoria do IBGE ou da Embrapa.

Mas… o mensalão perpassou pelo cenário nacional. E o palco para o qual se orientaram todos os holofotes foi justamente o Supremo. Como por acaso, o Brasil descobriu que o regime dispõe de um terceiro (ou seria apenas segundo?) poder, independente e autossuficiente. No ideário do brasileiro médio, o STF passou a exercer o papel que antes cabia à oposição. É a única instância que ousa enfrentar o governo. Aliás, muitos chegam a enxergar em seu atual presidente um sério concorrente a ocupar o Palácio do Planalto.Boi

No Brasil deste século XXI, um Executivo hipertrofiado mascara um Legislativo encolhido, afônico e submisso. O Planalto não se limita a orientar sua maioria no Congresso, mas frequentemente se susbtitui a ela. Sob forma de medidas provisórias, leis importantes são costuradas diretamente no seio do Executivo, passando ao largo de deputados, de senadores e de debate público. Os congressistas têm-se tornado meros referendadores de pacotes já decididos e embrulhados sabe-se lá por quais obscuras camarilhas. Pacotes que já vêm prontos, acabados e com laço de fita.

O 11° ministro do STF começou bem. Constitucionalista de formação, não parece apreciar a atual confusão de papeis. Fiel a Montesquieu, continua achando que decisões políticas devem ser tomadas pelos que foram eleitos para isso. Em resumo, cabe aos legisladores legislar, aos governantes governar, aos magistrados dirimir conflitos. É uma questão de bom-senso, mercadoria assaz escassa no País ultimamente.

Todos se perguntam como se comportará Luís Roberto Barroso com relação ao epílogo do julgamento do mensalão. Tanto pode declarar-se incompetente para interferir num processo que já vai adiantado quanto pode considerar-se apto a apanhar o bonde andando e participar das decisões que estão por vir. O tempo dirá.

Quanto ao mensalão, uma eventual confirmação das condenações não deverá alterar o estado atual das coisas. Muito pelo contrário. Após meses de processo público e ultramidiatizado, o Brasil pensante já formou sua convicção.

Conquanto alguns medalhões petistas tenham sido condenados por crimes vários, num acachapante revés para o principal partido situacionista, a popularidade da presidente não parece ter sofrido. É curioso, mas assim é.

Uma eventual confirmação da condenação, portanto, não deverá alterar o quadro. Já uma atenuação das penas pronunciadas ou ― pior ― a absolvição de condenados pode envenenar a situação e gerar uma onda de indignação, descrédito e revolta. Não seria bom para a atual maioria.

Paradoxalmente, os que se sentem contentes com a maneira pela qual o Brasil vem sendo dirigido nos últimos dez anos devem torcer para que a entronização do novo ministro no STF faça pender a balança no sentido da confirmação das penas.

Se assim acontecer, os condenados terão representado o papel de boi de piranha: sacrifica-se uma meia dúzia para permitir que o grosso da tropa de companheiros atinja incólume a outra margem do rio. Tanto a presidente quanto seu partido conservarão todas as chances de continuar no topo por mais alguns anos.

É melhor entregar os aneis para não perder os dedos.