Páscoa e passagem

José Horta Manzano

Muito antes que o primeiro humano se equilibrasse sobre dois pés, a Terra já estava lá naturalmente. E também o ciclo da natureza que se renovava a cada ano. Dizem os cientistas ‒ e, certamente, terão razão ‒ que os primeiros hominídeos surgiram no continente africano. Faz sentido. Desprovidos do pelame de um urso e da independência de uma águia, os humanos só podiam ter aparecido em terras tropicais sob clima quente e clemente.

O aumento da população, a escassez da caça, secas devastadoras impeliram os primeiros grupos a migrar. Muitas e muitas gerações depois de Lucy, os primeiros bandos alcançaram territórios mais ao norte onde o clima já não era marcado pela alternância de estações secas e úmidas, mas por uma estação quente e confortável, seguida por um período frio e agressivo.

As novas condições eram bem diferentes da suavidade tropical, mas os humanos já haviam desenvolvido novas capacidades. O uso de utensílios, o domínio do fogo e, finalmente, a invenção da agricultura permitiram a sobrevivência nos novos territórios. A adaptação não deve ter sido fácil nem rápida. Muitos milênios hão de ter corrido, mas o homem acabou por amoldar-se às novas condições. A prova maior dessa acomodação é o fato de estarmos aqui ainda hoje.

No verão, a vida é mais suave. A caça é farta. A agricultura nutre os viventes. Na estação fria, a paisagem é outra. A neve pode ser linda em cartão postal, mas os antigos temiam a chegada dos primeiros ventos gelados. As folhas caem. A vegetação adormece. A caça desaparece. Os dias encolhem. Se ainda hoje, com todo o conforto que o progresso nos legou, o inverno nos parece longo, fico a imaginar como deve ter sido para os humanos de milênios atrás. O fato é que a chegada da primavera, com pássaros cantando de novo e árvores vestidas de verde, traz um imenso alívio. A natureza renasce. A vida retoma a suavidade. É tempo de festa.

Desde as primeiras primaveras, os descendentes de Lucy sentiam-se animados com a volta dos belos dias. À medida que os homens foram desenvolvendo um sentimento de religiosidade, sentiram que era hora de agradecer a quem lhes devolvia a alegria de viver. Politeístas num primeiro momento, os agrupamentos humanos se habituaram a reunir-se em regozijo para comemorar o renascimento da natureza. Todos os deuses eram homenageados. Gregos, romanos, sumérios, egípcios sentiam a mesma euforia. Cada um desenvolveu maneira própria de demonstrar agradecimento. Fogueiras e sacrifício de animais foram as manifestações primitivas mais comuns.

O aparecimento do monoteísmo não eliminou o entusiasmo pela chegada da bela estação. Sacrifícios foram abolidos, abrindo espaço para práticas mais civilizadas.  O povo judeu insituiu o Pessach. O Êxodo e a travessia do deserto guardam uma inequívoca simbologia. A ideia de passagem está presente. Comemora-se o fim de um tempo de sofrimento e a chegada de uma era promissora.

Os cristãos seguiram na mesma linha. Escolheram o mesmo período do ano para fixar a Páscoa. O símbolo do renascimento continua presente na ressureição de Jesus, o nazareno. Não por acaso, chineses, turcos, curdos, persas e outros povos também elegeram a época do retorno da primavera para celebrar o renascimento, a renovação. Todos festejam um recomeço que traz consigo a promessa de uma vida melhor.

Que seja melhor para nós todos!

Boa Páscoa!