Quem é brasileiro?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 janeiro 2018.

Semana passada, uma cidadã de cinquenta e poucos anos foi extraditada para os Estados Unidos. Pesa sobre ela uma acusação de homicídio. Segundo a demanda da Justiça americana, a moça teria assassinado o marido, um militar americano. Como é de praxe, o Brasil só acedeu à demanda dos EUA depois de ter recebido garantias de que a extraditanda não seria condenada a pena mais pesada do que as que vigoram em nosso país. Nada de pena de morte ‒ na pior das hipóteses, trinta anos de cadeia.

O processo de extradição foi anormalmente demorado. Desde que chegou o pedido americano, onze anos se arrastaram. O processo atravessou as devidas instâncias, foi alvo de apelação e aterrissou no STF, onde a decisão final foi tomada. O caso era realmente espinhoso e sem precedentes. A senhora reclamada pela Justiça estrangeira era brasileira nata, tanto pela lei do sangue quanto pela do solo. Como nossa Constituição veda a extradição de nacionais, foi preciso despossuir nossa compatriota da nacionalidade brasileira antes de abandoná-la a tribunal estrangeiro.

Tendo-se estabelecido nos EUA há um quarto de século, a acusada tinha obtido, já fazia anos, a cidadania americana. Não tivesse caído nas malhas da lei pela acusação de homicídio, teria mui provavelmente vivido tranquilamente, com dois passaportes na gaveta, sem que ninguém considerasse isso uma aberração. Não me cabe entrar no mérito da acusação que pesa sobre a (ex-)compatriota. O que me incomoda é a insegurança jurídica que a mais alta corte brasileira gerou ao cassar-lhe a nacionalidade por motivo de aquisição de outra cidadania.

Nosso dispositivo legal nessa matéria é nevoento. A Constituição admite que o brasileiro adquira cidadania de Estado estrangeiro quando for «imposição para permanência em seu território ou para exercício de direitos civis». Fica evidente a falta de vivência internacional de quem redigiu tais linhas. Que se saiba, nenhum Estado impõe naturalização a estrangeiros presentes em seu território. Quanto ao exercício de direitos civis, seria preciso esclarecer a que direitos o legislador alude. Residir e trabalhar são direitos civis para os quais não se exige naturalização. Votar e ser eleito são direitos civis para cujo exercício a aquisição da cidadania local é obrigatória. Como é que ficamos?

As normas de aquisição e de perda da nacionalidade brasileira dão mostras de que nossa Constituição, outorgada há 30 anos, envelheceu. De lá pra cá, o mundo mudou. Três milhões de conterrâneos vivem hoje em terra estrangeira. Não há estatísticas sobre os que adquiriram a nacionalidade do país em que vivem, mas é lícito supor que sejam centenas de milhares. A julgar por nosso embaçado texto constitucional, todos esses cidadãos são usurpadores de uma nacionalidade à qual perderam o direito. Pela letra fria da lei, todos eles cometem continuado crime de falsidade ideológica.

À semelhança de outros dispositivos do arcabouço jurídico brasileiro, as condições de aquisição e de perda da nacionalidade não estão delineadas com nitidez. Deixam margem a interpretação aleatória. Decisões são tomadas caso a caso, aprofundando a insegurança jurídica em que vivemos mergulhados. Num tempo de GPS, ainda somos forçados a nos guiar pelo sextante, num rematado e absurdo anacronismo.

É urgente alinhavar. Ou bem o Brasil permite que seus filhos adquiram outra nacionalidade sem perder a originária, ou bem rejeita esse quadro. Se pode, pode. Se não pode, não pode. De boa fé, milhares de compatriotas vivem hoje na delinquência. Não é justo. Os direitos humanos, por cuja defesa tanto se tem empenhado nosso legislador neste limiar de século 21, estão sendo menosprezados. É insuportável a insegurança em que vivem os brasileiros que, sem renegar as origens, procuraram adquirir uma nacionalidade suplementar para facilitar-lhes a existência.

Antes de encerrar, gostaria de sublinhar uma coincidência indigesta. Ao assumir a pasta da Justiça, logo no início da gestão de Dilma Rousseff, doutor José Eduardo Cardozo mostrou-se favorável ao asilo concedido a Cesare Battisti ‒ aquele estrangeiro que, condenado na Itália à prisão perpétua por envolvimento em quatro assassinatos, está até hoje agasalhado por nossa Justiça apesar da demanda de extradição. Pois foi esse mesmo ministro que, em 2013, assinou portaria determinando a perda da nacionalidade da brasileira que acaba de ser extraditada. Seria cômico, não fosse trágico.

Pensamentos soltos ‒ 2

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Uma senadora petista tem repetido compulsivamente uma analogia para convencer seus colegas e a população de que o impeachment é golpe: “É como condenar à morte uma pessoa por ela ter cometido uma infração de trânsito”.

Golpe 1Data venia, Excelência, o que está acontecendo na minha visão é que a tal pessoa foi pega dirigindo embriagada e se recusa a aceitar perder a carteira, como prevê a lei, argumentando que só tomou cerveja – e que cerveja é sabidamente uma bebida não alcoólica!

Dilma está repetindo, sem querer e sem ter consciência disso, uma frase do famoso escritor português Luís Vaz de Camões: “Amei tanto minha pátria que não me contentei em morrer nela, mas com ela”.

Bebida 4Só que com uma diferença importante: enquanto o lusitano se desesperava com os rumos que maus governos haviam dado à sua pátria, a brasileira vem contribuindo com extremo empenho e eficácia para promover o fim trágico da nossa.

Sei não. Para mim, José Eduardo Cardozo quase conseguiu provar que uma decisão monocrática do presidente da Câmara dos Deputados pode ser danosa para todo o país e que constitui, sem dúvida, um golpe contra o Estado democrático de Direito.

Golpe 2Falhou no seu intento por apenas 72% do total da meta.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Boca torta

Dora Kramer (*)

Os comunistas antigamente diziam-se pautados pela “linha justa”. Os petistas atualmente demonstram se conduzir pela linha injusta. Entre outros exemplos, está a carga pesada feita contra os ministros da Fazenda e da Justiça.

Joaquim Levy e José Eduardo Cardozo desagradam ao PT não pelos defeitos, mas pelas qualidades. Levy segue a direção lógica do ajuste realista na condução de uma política econômica que, embora recessiva, é a única capaz de levar o País à correção do rumo perdido. Cardozo faz o que lhe cabe por dever de ofício e não procura interferir onde não pode: no trabalho da polícia, da Justiça e do Ministério Público.

Sinalização curva 2Na visão petista, quem faz o certo está errado e, por isso, deve deixar o governo. Por essa ótica, o ministro da Fazenda deveria ser irresponsável e o titular da Justiça, transgressor da Constituição.

O partido talvez pense assim por ter-se acostumado ao padrão de irresponsabilidade e transgressão estabelecido desde o governo Luiz Inácio da Silva – modelo este fundado na crença de que é permitido fazer tudo errado acreditando que no fim possa dar certo.

(*) Dora Kramer, em sua coluna do Estadão, 25 out° 2015