Perda da nacionalidade

José Horta Manzano

Faz alguns dias, saiu uma notícia que, vista a proximidade das eleições, passou quase despercebida. Trata-se de um processo de perda de cidadania a ser possivelmente instaurado contra uma das ex-esposas do capitão.

 


Entre parênteses
Bolsonaro, que proclama alto e bom som ser “conservador nos costumes”, tem cinco filhos de três esposas diferentes. O objeto da notícia é uma delas.


 

O fato é que a referida senhora se casou com um norueguês, deixou o Brasil e acabou adquirindo a nacionalidade norueguesa. Nossa confusa Constituição, que às vezes parece ter sido feita no século 19, estipula que “será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que […] adquirir outra nacionalidade”.

O texto é aparentemente suavizado na alínea seguinte. Ela reza que, se a naturalização tiver sido imposta ao brasileiro “como condição para permanência no território ou para o exercício de direitos civis”, ele escapará da penalidade e não perderá a nacionalidade brasileira.

A ressalva mencionada no parágrafo anterior é apenas aparente, pois aborda um caso que não existe na vida real. Nunca ouvi falar de nenhum país que impusesse a naturalização de todo estrangeiro que quisesse permanecer em seu território.

Portanto, todo compatriota que ousar adquirir outra cidadania será punido com a perda da nacionalidade de origem.

A mim, que passei a vida rodando mundo, essa visão parece medieval. Vê-se que a Constituição (assim como as leis comuns) foi preparada por parlamentares com pouca vivência internacional. O mundo é vasto, variado, colorido, bem maior do que a cachola da maioria dos que estão refestelados no Congresso com o intuito de engordar o próprio patrimônio. O “exterior” não se resume a Paris ou Miami.

Países mais avançados não costumam confiscar a nacionalidade de seus filhos por terem adquirido outra(s) nacionalidade(s). A cidadania pode ser concedida a estrangeiros que tenham vivido um certo número de anos no território. A nacionalidade do país X pode ser outorgada por matrimônio, ou seja, ao estrangeiro que tiver vivido um certo número de anos casado com alguém originário do país X. O país Y pode ainda facilitar a naturalização de estrangeiros com filhos nascidos em território Y.

Sabendo-se que cerca de 3 milhões de compatriotas vivem no exterior, é permitido crer que boa parte deles adquiriu um segundo passaporte – não por imposição de ninguém, mas por iniciativa própria. Pela legislação brasileira, estão todos na ilegalidade, passíveis de perda da nacionalidade brasileira.

Fechar os olhos e fingir que o problema não existe não é a melhor solução. Entendo que nenhum parlamentar vai abraçar essa causa, visto que eleitores do estrangeiro não votam para deputado e senador. Eis por que defendo a criação de uma nova circunscrição eleitoral: o estrangeiro, no mesmo plano que os estados da Federação, com senadores e um determinado número de deputados. Esses seriam os defensores de nossos interesses.

Quanto à ex-mulher do capitão, não sei como terminou o caso. Fico devendo.

Quem é brasileiro?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 janeiro 2018.

Semana passada, uma cidadã de cinquenta e poucos anos foi extraditada para os Estados Unidos. Pesa sobre ela uma acusação de homicídio. Segundo a demanda da Justiça americana, a moça teria assassinado o marido, um militar americano. Como é de praxe, o Brasil só acedeu à demanda dos EUA depois de ter recebido garantias de que a extraditanda não seria condenada a pena mais pesada do que as que vigoram em nosso país. Nada de pena de morte ‒ na pior das hipóteses, trinta anos de cadeia.

O processo de extradição foi anormalmente demorado. Desde que chegou o pedido americano, onze anos se arrastaram. O processo atravessou as devidas instâncias, foi alvo de apelação e aterrissou no STF, onde a decisão final foi tomada. O caso era realmente espinhoso e sem precedentes. A senhora reclamada pela Justiça estrangeira era brasileira nata, tanto pela lei do sangue quanto pela do solo. Como nossa Constituição veda a extradição de nacionais, foi preciso despossuir nossa compatriota da nacionalidade brasileira antes de abandoná-la a tribunal estrangeiro.

Tendo-se estabelecido nos EUA há um quarto de século, a acusada tinha obtido, já fazia anos, a cidadania americana. Não tivesse caído nas malhas da lei pela acusação de homicídio, teria mui provavelmente vivido tranquilamente, com dois passaportes na gaveta, sem que ninguém considerasse isso uma aberração. Não me cabe entrar no mérito da acusação que pesa sobre a (ex-)compatriota. O que me incomoda é a insegurança jurídica que a mais alta corte brasileira gerou ao cassar-lhe a nacionalidade por motivo de aquisição de outra cidadania.

Nosso dispositivo legal nessa matéria é nevoento. A Constituição admite que o brasileiro adquira cidadania de Estado estrangeiro quando for «imposição para permanência em seu território ou para exercício de direitos civis». Fica evidente a falta de vivência internacional de quem redigiu tais linhas. Que se saiba, nenhum Estado impõe naturalização a estrangeiros presentes em seu território. Quanto ao exercício de direitos civis, seria preciso esclarecer a que direitos o legislador alude. Residir e trabalhar são direitos civis para os quais não se exige naturalização. Votar e ser eleito são direitos civis para cujo exercício a aquisição da cidadania local é obrigatória. Como é que ficamos?

As normas de aquisição e de perda da nacionalidade brasileira dão mostras de que nossa Constituição, outorgada há 30 anos, envelheceu. De lá pra cá, o mundo mudou. Três milhões de conterrâneos vivem hoje em terra estrangeira. Não há estatísticas sobre os que adquiriram a nacionalidade do país em que vivem, mas é lícito supor que sejam centenas de milhares. A julgar por nosso embaçado texto constitucional, todos esses cidadãos são usurpadores de uma nacionalidade à qual perderam o direito. Pela letra fria da lei, todos eles cometem continuado crime de falsidade ideológica.

À semelhança de outros dispositivos do arcabouço jurídico brasileiro, as condições de aquisição e de perda da nacionalidade não estão delineadas com nitidez. Deixam margem a interpretação aleatória. Decisões são tomadas caso a caso, aprofundando a insegurança jurídica em que vivemos mergulhados. Num tempo de GPS, ainda somos forçados a nos guiar pelo sextante, num rematado e absurdo anacronismo.

É urgente alinhavar. Ou bem o Brasil permite que seus filhos adquiram outra nacionalidade sem perder a originária, ou bem rejeita esse quadro. Se pode, pode. Se não pode, não pode. De boa fé, milhares de compatriotas vivem hoje na delinquência. Não é justo. Os direitos humanos, por cuja defesa tanto se tem empenhado nosso legislador neste limiar de século 21, estão sendo menosprezados. É insuportável a insegurança em que vivem os brasileiros que, sem renegar as origens, procuraram adquirir uma nacionalidade suplementar para facilitar-lhes a existência.

Antes de encerrar, gostaria de sublinhar uma coincidência indigesta. Ao assumir a pasta da Justiça, logo no início da gestão de Dilma Rousseff, doutor José Eduardo Cardozo mostrou-se favorável ao asilo concedido a Cesare Battisti ‒ aquele estrangeiro que, condenado na Itália à prisão perpétua por envolvimento em quatro assassinatos, está até hoje agasalhado por nossa Justiça apesar da demanda de extradição. Pois foi esse mesmo ministro que, em 2013, assinou portaria determinando a perda da nacionalidade da brasileira que acaba de ser extraditada. Seria cômico, não fosse trágico.