Ágio

José Horta Manzano

Por coerência, quem diz “ágio acima” também deveria dizer “entrar pra dentro” e “descer pra baixo”. O “acima” sobra. Ágio é sempre calculado acima de um valor de referência, nunca abaixo.

Ex:
O dólar está sendo vendido no paralelo com ágio de 10%.
(ou seja, pelo valor do oficial com acréscimo de 10%)

A chamada do jornal deveria dizer:
“Com ágio de 40% sobre o valor cobrado em dinheiro vivo”

Se, ao contrário, o cálculo tivesse de ser para baixo, como um desconto, seria possível usar “deságio”, embora seja termo pouco frequente.

Ex:
O produto está sendo vendido com deságio de 15% com relação ao preço da semana passada
(ou seja, com desconto de 15% sobre o preço da semana passada)

Fiat lux

 

 

José Horta Manzano

É natural que Madame queira “dar luz” ao filho. Ela passou as últimas décadas sob os holofotes e se acostumou. Quer agora dar ao herdeiro um pouco da luz que tem recebido.

Brincadeiras à parte, não se deve dizer “dar luz ao pequerrucho”, mas sim “dar o pequerrucho à luz”.

No fundo, o significado das duas expressões até que se aproxima, mas o uso do falante fixou a segunda. No futuro, pode ser até que mude, nunca se sabe.

Toda poderosa

Iemanjá

 

 

José Horta Manzano

É todo-poderosa, com tracinho. Nessa expressão, a primeira parte (todo) resta invariável, visto que está por tudo. Ex:

Todo-poderoso
Na Rússia, Putin é todo-poderoso. (=pode tudo)

Todo-poderosa
No Reino do Mar, Iemanjá é todo-poderosa. (=pode tudo)

Todo-poderosos
Em seus países, ditadores são todo-poderosos. (=podem tudo)

Todo-poderosas
Numa civilização matriarcal, as mulheres são todo-poderosas. (=podem tudo)

Dieta crudívera

José Horta Manzano

Era de madrugada, o estagiário estava com sono, leu mal, não entendeu o que leu, escreveu o que lhe pareceu.

Dieta crudívera? Que será? Com tanta receita miraculosa pra emagrecer, pra engordar, pra desenrugar, pra tirar pelanca, pra parar de envelhecer, essa aí deve ser mais uma. O problema é que, às 4 da matina, ainda mais com sono, não é hora de pesquisar. Vamos de “dieta crudívera” mesmo.

Só que não. Um dia, no futuro, quem sabe, ainda vão inventar. Por enquanto, o que temos é a dieta crudívora, com o de olho vivo.

Como lembrar? É fácil. A família toda leva um o:

Devorar
Voraz
Vórtex
Voragem
Herbívoro
Carnívoro
Insectívoro
Frutívoro

E, naturalmente, nossa dieta crudívora. Quem a segue só ingere alimentos crus.

Doutor Eurípedes

José Horta Manzano

Não sabia quem era doutor Eurípedes Júnior, presidente de um partido político da República brasileira. Fui conferir.

Atualmente é presidente de um partido chamado Solidariedade (sic). Anteriormente, foi presidente de outro partido político de nossa infeliz República. Um certo Partido Republicano da Ordem Social (Pros).

Doutor Eurípedes Júnior saiu do Pros mas as marcas de sua brilhante atuação ficaram. Ele é hoje investigado por:

  • organização criminosa,
  • lavagem de dinheiro,
  • furto qualificado,
  • apropriação indébita,
  • falsidade ideológica,
  • apropriação de recursos destinados ao financiamento eleitoral.

Agora que meus distintos leitores já têm o cartão de visitas de Sua Excelência, vamos à chamada d’O Globo.

Talvez impressionado diante dessa folha corrida, o funcionário encarregado de resumir o caso em poucas palavras não hesitou. Tascou: “Desvio de fundo”.

Imagino que o autor seja um menino com idade para ser meu neto. Me deixa mais com pena do que indignado. Ele deve ter sido o melhor numa seleção entre dezenas de outros candidatos. É o Brasil de hoje, que fazer?

Desvio de fundo
Numa fábrica de garrafas, uma máquina engasgou e um vasilhame saiu torto. Olhando pela boca, se vê um “desvio de fundo”.

No oftalmologista, o cliente tem hora marcada para um exame de fundo de olho. Está receoso de que seja constatado um “desvio de fundo” (de olho).

Ainda que pareçam meio absurdas na vida real, essas frases estão gramaticalmente corretas. Dona Santinha, professora de Linguagem, não daria reguada em ninguém.

Já quando o desvio é de dinheiro, precisa botar um s no final e falar em ‘Desvio de fundos.

Aí, dona Santinha vai dar nota 100 com louvor.

Follow the money

José Horta Manzano

Você sabe o que é rastrear? É seguir o rastro (de alguém ou de algo). Pois é, é tão simples, mas parece que o estagiário que bolou a chamada não sabe.

Relatando uma ocorrência de resgate pago em dinheiro, a chamada diz que a polícia e o Ministério Público rastreiam o caminho do dinheiro. Está errado.

Ninguém rastreia o caminho, nem o policial mais meticuloso do mundo. Rastreia-se o dinheiro, não o caminho.

Reescrevendo a chamada, fica assim:

“Resgate de sequestro foi depositado em 40 contas; polícia e MPRJ rastreiam o dinheiro.”

Descriminação

José Horta Manzano

Em princípio, não é na escola que surgem casos de descriminação, como está escrito na chamada. Termo empregado em textos jurídicos, a descriminação é o resultado do ato de isentar de crime um fato.

Já o que costuma, infelizmente, acontecer em escolas, são casos de discriminação. Significa tratar de modo injusto ou desigual alunos de religião, origem social ou cor de pele diferente da maioria. Quem agir assim estará cometendo ato de discriminação, ofensa prevista na lei penal.

Portanto:

  • descriminação (isentar de crime um fato) – começa com des
  • discriminação (tratar um grupo de indivíduos de forma desigual) – começa com dis.

Na minha opinião, o autor do título do artigo d’O Globo cometeu hipercorreção, que é o escriba substituir a forma correta por outra que lhe pareça ainda mais de acordo com o português culto.

É o mesmo mecanismo que leva muita gente a abandonar dispensa (que, embora seja a forma correta, soa errado) e substituir por despensa. Assim:

  • Estava resfriado e pediu despensa” da aula de Educação Física. (hipercorreção)

O artigo d’O Globo trata de casos de discriminação na escola, é claro.

Amor à mesa

José Horta Manzano

A fronteira entre a Coreia do Norte e a Rússia tem comprimento de escassos 17 quilômetros. Pois é ela que permite ao ditador norte-coreano, Kim Jong-un visitar Vladímir Pútin. Paranoico como todo ditador Mr. Kim não põe os pés em avião.

(Considerando o que aconteceu outro dia com Evguêni Prigôjin, do Grupo Wagner, que caiu junto com seu avião num “acidente” ocorrido em espaço aéreo russo, o coreano até que tem razão – com Pútin, nunca se sabe.)

Ao não entrar em avião, Mr. Kim só tem uma opção para viajar: o trem. Desse modo, só pode ir de visita a seus dois vizinhos de parede: a China e a Rússia (graças aos 17km de fronteira).

Mandou fazer um trem blindado, coisa que não se via desde os tempos da Revolução Paulista de 1932. Assim, estará protegido caso algum camponês exaltado resolva dar-lhe uma estilingada. E lá se foi ver o colega russo.

Foi bem recebido. O Washington Post nos traz o cardápio do banquete. Serviram uma certa massa recheada de “carangueijo”. Falar de guerra enquanto se come “carangueijo” é indigestão na certa.

Banquete com queijo?
Perfeito!

Banquete com beijo?
Bem, entre aqueles dois, tudo pode acontecer. Há gosto pra tudo.

Banquete com carangueijo?
Evite! Tem o poder de arruinar qualquer negociação. Prefira sempre caranguejo, o legítimo.

Quiroprata

Chamada do Estadão

José Horta Manzano

Se é seguro entregar o pescoço para um quiroprata manipular? Olhe, fosse o meu pescoço, não deixava de jeito nenhum. Sabe-se lá que formação tem esse camarada?

A primeira parte da palavra [quiro] é raiz grega que significa mão. Quanto à segunda, tudo indica que seja prata mesmo.

Logo quiroprata pode ser um garimpeiro que gira a bateia com as mãos pra encontrar prata.

Outra possibilidade é que seja um rei Midas pobre, que não consegue transformar em ouro o que toca com as mãos, por isso vai-se contentando com prata mesmo.

Pensei ainda num carregador de mochila presidencial que tivesse poderes especiais. Mas não bate; se fosse mochileiro do ex-presidente, não se diria quiroprata, mas quiro-ouro.

Deixando brincadeiras de lado, o termo utilizado na chamada do Estadão não está dicionarizado. Nem nunca ouvi.

Essa técnica de manipulação se chama quiropraxia ou quiroprática. Quanto ao terapeuta, descarte todo quiroprata. Prefira sempre um quiroprático. É mais seguro.

Cochilou

Chamada da Folha de São Paulo

José Horta Manzano

O autor da chamada cochilou. O escritor Salman Rushdie não é iraniano. Iraniano era o aiatolá Khomeini, que, em 1989, lançou sentença de morte sobre sua cabeça. A chamada do jornal confundiu sujeito e objeto.

Sir Ahmed Salman Rushdie nasceu em 1947 na cidade indiana de Bombaim, numa época em que a Índia integrava o Império Britânico. Cresceu na Índia e, jovem ainda, estabeleceu-se na Inglaterra.

Desde o ano 2000, vive nos EUA, país do qual adquiriu a nacionalidade em 2016. Tem, assim, as duas cidadanias: britânica e americana.

Butcha

José Horta Manzano

Uma guerra de conquista travada na Europa em pleno século 21, de tão anacrônica e assustadora, não pôde passar despercebida. Repórteres, jornalistas, cinegrafistas do mundo todo estão de olho grudado no desenrolar dos acontecimentos.

Se a intenção de Putin era lançar uma Blitzkrieg (=guerra relâmpago), deu-se mal. Analisando desse ponto de vista, já perdeu. O bumerangue voltou mais rápido e com mais força. Em maior ou menor medida, o planeta inteiro vai sofrer; mas as consequências da insanidade serão ainda mais pesadas para Putin e seu povo.

Filmado por repórteres e sacramentado por imagens de satélite, um massacre foi cometido numa cidadezinha tranquila, situada na periferia de Kiev, povoada por 35 mil pessoas antes da guerra.

Agências internacionais deram a notícia. Como se sabe, despachos vêm em inglês. Sonolentos, alguns encarregados de traduzir para a mídia nacional descuidaram de adaptar para nossa fonética o nome da cidade agredida.

A grafia cirílica Буча, transliterada para o inglês, dá Bucha, sequência de letras que, lida por um inglês, corresponde à pronúncia original. Não sei como o nome está sendo pronunciado pelo rádio e pela tevê no Brasil. O que sei é que boa parte de nossa mídia escrita adotou, sem refletir, a grafia inglesa.

O problema é que, em inglês, as duas letrinhas “ch” são pronunciadas “tch” – coisa que a gente aprende na primeira aula. Portanto, para permitir que um leitor brasileiro pronuncie corretamente o nome da cidade, é preciso escrever Butcha, não Bucha.

Sempre alerta, a Folha de São Paulo entendeu.

Folha de São Paulo

Já os outros dois grandes órgãos da imprensa nacional continuam cochilando.

Estadão

O Globo

 

Línguas lusófonas

Chamada da Folha de São Paulo, 9 fev° 2022

José Horta Manzano

A Europa abriga grandes famílias linguísticas. Há as línguas latinas, as germânicas, as eslavas. As latinas também podem ser chamadas neolatinas, romances ou românicas.

Com toda sinceridade, é a primeira vez que ouço falar em “línguas lusófonas”. Suponho que a língua portuguesa entre nessa curiosa categoria. Quais seriam as outras? Ou será que o jornal já dá de barato que o português e o brasileiro são línguas diferentes?

Em tempo
O adjetivo lusófono define o indivíduo que fala português. A língua propriamente dita, não se deve dizer que é “lusófona”, mas lusa.

Deriva continental

Folha de São Paulo, 6 dez° 2021

José Horta Manzano

Numa aula sobre deriva continental, este blogueiro aprendeu que o subcontinente sul-americano se desprendeu de um supercontinente ao qual se costuma dar o nome de Pangeia.

Isso aconteceu por volta de 145 milhões de anos atrás, no Jurássico – período geológico de que todos já ouviram falar por causa do filme. A América do Sul se destacou inteira desde o que é hoje o Canal do Panamá até a Terra do Fogo, na ponta do Cone Sul. De lá pra cá, tirando alguma pequena distorção, conservou a silhueta original.

Bom, isso era o que se acreditava. No entanto, tem um estagiário na Folha de SP que, sempre trabalhando quietinho, na moita e noturnamente, surpreende, às vezes, seus leitores. Estes dias, comunicou uma descoberta extraordinária.

Não se sabe se o rapaz foi picado por mosca varejeira ou por sapo jururu. O fato é que ele ficou sabendo que o Estreito de Magalhães, aquele que separa a Terra do Fogo do continente sul-americano, desrespeitou a cronologia da deriva dos continentes.

O braço de mar não tem os milhões de anos que se imaginava, mas sua abertura é bem mais recente. Está fazendo apenas 501 anos. Uma surpresa e tanto, não? Se existisse um Prêmio Nobel de Geografia, o estagiário estaria certamente entre os indicados.

Passa ser

José Horta Manzano

Não acredito que a pisada na bola seja consequência da intromissão do Bolsonaro no Enem; se bem que, pensando bem, tem um pouco a ver, sim senhor.

Não é de hoje que a Instrução Pública vem sendo mandada pra escanteio “nesse país”, como diria nosso guia. Mas há que reconhecer que, com os personagens peculiares que escolheu para chefiar o Ministério da Educação, o capitão está dando sequência ao que outros já vêm fazendo faz tempo. Tem se esmerado mais que os anteriores, é verdade, mas a linha de conduta é a mesma. O intuito de todos eles é desinformar. Afinal, povo desinformado é mais facilmente manipulado. Ou não?

Aos ouvidos de quem não está acostumado a ler, a expressão “passa a ser”, pode ser entendida como “passa ser”. O escorregão na chamada da Folha não decorre de falta de atenção; é falta de conhecimento mesmo. Os que escrevem “passa ser” são os mesmos que escreveriam “vai começar chover”.

Falta instrução, que só viria com mais leitura. Falta leitura, que teria de ser incentivada pela escola. Falta escola, que teria de ser implantada pelo governo. Falta governo, que teria de ser eleito por um povo instruído. Falta povo instruído… e o círculo vicioso se fecha. Será que um dia vai se romper?

Rainha Isabel

José Horta Manzano

O aportuguesamento de nomes e sobrenomes era comum nos antigamentes. Todas as línguas procediam exatamente da mesma maneira. Há exemplos a dar com pau.

No original italiano, Cristóvão Colombo era Cristòforo Colombo. Em inglês, ficou Christopher Columbus; em espanhol, Cristóbal Colón; em francês, Christophe Colomb; em alemão, Christoph Kolumbus.

O português Fernão de Magalhães virou Fernand de Magellan em francês, Ferdinando Magellano em italiano, Fernando de Magallanes em espanhol.

Em nossa língua, o polonês Mikołaj Kopernik transformou-se em Nicolau Copérnico. Ingleses e alemães conhecem nosso D. Pedro II como Peter II, enquanto italianos dizem Pietro II e franceses preferem Pierre II.

Os espanhóis, até hoje, traduzem o nome dos membros da realeza estrangeira. Quando se referem à família real inglesa, é divertido ouvir falarem da rainha Isabel e dos príncipes Carlos, Guillermo, Henrique e Jorge. A gente precisa retraduzir mentalmente pra saber de quem estão falando.

No Brasil, hoje em dia, é raro ver nome estrangeiro traduzido ou adaptado. Mas de vez em quando escapa um. Foi o que fez o estagiário do Estadão, ao mencionar o nome daquele que (parece que) acaba de ser eleito para o cargo de presidente do Peru: Castillo virou Castilho.

Mas vamos ser justos: foi sem intenção. Na hora de escrever, o automatismo falou mais alto e os dedinhos correram soltos.