A solidão do Brasil

by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense

Artigo publicado no Correio Braziliense de 29 setembro 2025

José Horta Manzano

Se fosse possível ir dormir, logo mais à noite, e só acordar nos anos 2030, descobriríamos um mundo bem diferente do que conhecemos hoje. As mudanças não serão impactantes, detectáveis ao primeiro olhar. O arroz e o feijão continuarão a frequentar o prato do brasileiro, o sol continuará estalando mamona, as aves que aqui gorjeiam continuarão gorjeando melhor que lá.

Talvez o assustado recém-desperto precise observar o mundo por uns dias, conversar aqui e ali, ler as notícias. Vamos deixar essa leitura das notícias entre parênteses por enquanto. Mais adiante, vosmicê vai entender por quê.

Até outro dia, o planeta já não andava bem. Guerras mortíferas e intermináveis na Ucrânia e na Palestina; a França expulsa de suas antigas colônias africanas, que preferiram o guarda-chuva russo; na Venezuela, em El Salvador e na Nicarágua, a ditadura apertando cada dia mais o torniquete. Não, as coisas não andavam nada bem.

O povo dos EUA teve a – a meu ver, infeliz – ideia de eleger Donald Trump para a Presidência. Há apenas nove meses no poder, ele tem tomado atitudes do arco da velha. Por decreto, lançou um festival de aumentos nos impostos de importação afetando praticamente todos os países, e o Brasil em especial. Deu o tiro de largada a uma verdadeira caça às bruxas na mídia: quem não disser o que ele quer ouvir será perseguido. Estrangulou as finanças das universidades que não se comportassem como ele queria.

Na feliz expressão de Garry Kasparov, tradicional estrela do enxadrismo, Trump pôs os EUA em processo de “putinização”. Kasparov referiu-se à crescente tomada de controle, determinada por Trump, da formação universitária dos jovens americanos e da triagem prévia da informação, visando a abafar toda voz crítica ou discordante antes que circule. Por “triagem”, entenda-se censura.

É permitido supor que, ao despertar daqui a seis ou oito anos, vosmicê se depare com os Estados Unidos já espoliados do regime democrático que um dia serviu de farol ao mundo. Terão se tornado um país de regime autoritário, fechado, semiditatorial, hostil a estrangeiros, um país no qual o cidadão pensará duas vezes antes de fazer uso da palavra ou de postar um comentário nas redes.

Se os Estados Unidos fossem um país de segunda linha, o fato de seu regime ter endurecido não traria problemas ao planeta. Mas trata-se do país mais rico e mais poderoso, o que causa, sim, um problemão. Um país fechado e hostil não terá mais os requisitos para ocupar um dos polos do tabuleiro mundial.

Dessa forma, os grandes países terão se tornado ditaduras ou semiditaduras: EUA, China e Rússia entram nesse figurino.

O Brasil, por seu lado, segue sua trajetória particular. Num momento de recrudescência autoritária das grandes potências, nosso país não aceita mais o papel de submisso ou avassalado. Nossa índole e nossa vivência já não admitem receber ordens de potência nenhuma, nem Washington, nem Pequim, nem Moscou. Com diplomacia voltada para a paz, prezamos nossa independência e nossa soberania.

Um mundo de governança multipolar é o que o Brasil tem almejado estes últimos tempos. Acordar daqui a alguns anos e constatar que todos os polos dessa nova governança são potências ditatoriais será um choque. E uma decepção. Nesse contexto, o Brasil dificilmente se entregará de peito aberto a uma das doutrinas dominantes. Nosso país não aceitará transformar-se em mero parafuso na engrenagem das potências.

A situação trará um problema. Sem aderir plenamente à órbita de atração de nenhum dos polos dominantes, como fazer para nos manter firmes na defesa de um sistema aberto, democrático, pluralista e humanista, quando todos ao redor tiverem sucumbido à lei da selva? O Brasil está condenado a flutuar, sem órbita fixa, como elétron livre no vácuo. Até quando resistiremos à força de atração das potências maiores?

Nossa escolha será complicada. Por um lado, temos de pensar no custo de uma luta solitária para manter nossa soberania e nossas liberdades. Por outro, temos de considerar o preço a pagar pelo abandono das liberdades que conseguimos conquistar com tanta luta.

Há fortes indícios de que teremos de refletir sobre o tema dentro em breve. Diante do dilema, teremos de decidir. É possível que nosso cacife não seja suficiente para nos permitir ficar em cima do muro.

Pessoa em situação de mendigo

Antonio Prata (*)

Tenho ódio sempre que ouço essa aberração do politicamente correto: “Pessoa em situação de rua”. Primeiro porque não existe, em nosso idioma, ninguém “em situação” de nada. Nunca estive ou conheci alguém “em situação de gripe”. Lá pelo meio-dia não estou “em situação de fome” e depois da meia-noite nunca me descreveria “em situação de sono”. Não sei de onde importaram essa frase horrível, só sei que ela não foi bem adaptada à nossa “situação de língua”.

Não é a “situação de aberração”, porém, que me revolta mais ao falarmos “pessoa em situação de rua”. É a mentira que a frase, em sua deliberada assepsia semântica, tenta passar. É como se o sujeito que tá dormindo na calçada, em cima de uma caixa de papelão aberta, coberto com aquela manta de proteger móvel em mudança, com uma garrafa (vazia) de cachaça ao lado, sem tomar banho há semanas, sem laços sociais, familiares, talvez viciado em crack, enfim, é como se essa pessoa ferrada estivesse numa “situação” momentânea que logo, logo, vai ser resolvida. Tipo: o cara perdeu o último ônibus pro seu bairro, ficou em “situação de rua”, mas amanhã pegará o busão e estará “em situação de casa”.

Mendigo é o nome dessa pessoa. Mendigo não é alguém que simplesmente não tem casa. Não tá em “situação de rua” e nem é “sem teto”. É sem tudo. É o fundo do fundo do alçapão no fundo do alçapão do poço. Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa. É calhorda. É covarde. Em vez de tentar salvar a pessoa da degradação total, fingimos que ela não está assim tão mal. “Só uma situação”.

Fingir é uma grande habilidade nossa, brasileira. Difícil viver e ser são neste país sem fingir barbaramente um monte de coisa. Finge que o cara tá “em situação de rua”. Finge que não vê os miseráveis nos faróis de trânsito. Finge que não vê o mar de favelas sob o Rodoanel. Finge que não teve tentativa de golpe. Finge que é normal o “orçamento secreto”. Finge que a CBF tem algum interesse na melhoria do futebol brasileiro. Pensando bem, não é só um fenômeno brasileiro. O mundo finge que não tá acabando.

Tudo isso pra chegar na grande mágica, no grande fingimento, não só semântico, mas concreto, urbano, proposto pelo vice da prefeitura: trocar mendigos por carros embaixo do Minhocão. Tirar “pessoas em situação de rua” e colocar “carros em situação de estacionamento”.

Se a gambiarra semântica da esquerda parece bizarra, por “amaciar” a existência dos mendigos, o que a direita propõe agora em São Paulo vai muito além. É a metonímia feita ação. É a falta de vergonha: “vamos sumir com esses pobres!”. Vai ter matéria mostrando como a área do Minhocão ficou mais bonita. Mais segura. Vai gerar renda. Não tenho a menor dúvida. Varrer a miséria pra longe sempre melhora o perto. Eu, se morasse ali, não seria hipócrita. Adoraria a medida. A questão é que esses pobres existem. Continuarão na rua, em outra rua. Na frente da casa de outra pessoa. E continuarão sem casa, sem trabalho, sem banho, sem porra nenhuma, “em situação de mendigo”, em algum lugar.

(*) Antonio Prata é escritor e cronista.

França x Brasil: condenados lá e cá

by Kleber Sales

José Horta Manzano

Nicolas Sarkozy foi presidente da França por um mandato de 5 anos, de 2007 a 2012. Faz uns dias, foi condenado a 5 anos de prisão em regime fechado. A sentença estipula que Sarkozy permanece em liberdade por algumas semanas, mas que terá de cumprir a sentença, pelo menos inicialmente, atrás das grades. Um eventual recurso – com o qual o condenado já declarou que vai entrar – não terá efeito suspensivo. Em outras palavras, é cadeia ou cadeia.

A promotoria acusou o ex-presidente de ter recebido dinheiro da Líbia para sua campanha eleitoral. Observe-se que, à época, Muamar Kadafi era ditador do país. No entanto, a acusação não conseguiu provar o recebimento da alegada ajuda financeira. Assim sendo, Sarkozy não pôde ser condenado por corrupção.

Severo, o tribunal julgou que o acusado era assim mesmo culpado de formação de quadrilha, visto que ele tinha se reunido com dois amigos próximos para solicitar e receber o dinheiro vindo da Líbia, ainda que nenhuma transação tenha sido detectada na investigação.

Mesmo sem ser sarkozista, achei que os juízes foram muito severos. Enfim, se Sarkozy tivesse feito tudo certinho, dificilmente teria se encontrado diante de um tribunal. O que fica como marca desse julgamento excepcional são a pena de 5 anos e a obrigação de ser encarcerado imediatamente. Se deixaram algumas semanas de respiro ao condenado, foi em consideração por ele ter sido presidente da República e por já ter 70 anos.

Chamada Folha de S. Paulo
25 set° 2025

Todos nós conhecemos um outro ex-presidente que aprontou horrores, só que fez isso quando já estava na Presidência. Foi Bolsonaro. Como Sarkozy, também tem 70 anos – são do mesmo ano. Duas semanas atrás, Bolsonaro foi condenado, por um tribunal colegiado de 5 juízes, a 27 anos de prisão em regime inicialmente fechado. Apesar desse prontuário, está em “recolhimento domiciliar”, esperando não se sabe bem o quê.

Nosso sistema judiciário tem peculiaridades que o leigo tem, às vezes, dificuldade em entender. Julgado por um colegiado de magistrados da mais alta corte do país, com pena definida, o condenado continua em casa, na poltrona macia, de chinelas, dando ordens à família, à empregada e ao cachorro. Esperando o quê?

Hoje me diz a imprensa que “Bolsonaro toparia redução de penas com garantia de prisão domiciliar”. Toparia? Que quer dizer isso? Será que, antes de encarcerar o condenado, nosso sistema prisional propõe uma negociação? Tipo assim: o senhor quer redução de pena com prisão domiciliar ou prefere cumprir pena integral em regime fechado na Papuda? Francamente, não faz sentido.

Na França, o condenado Sarkozy, que está longe de ser um santinho, terá de provar a sopa rala que lhe servirão na Prison de la Santé ou outra qualquer onde for encarcerado. O camburão virá buscá-lo em casa assim que o juiz mandar. No Brasil, o condenado Bolsonaro, nosso ex-candidato a ditador mequetrefe, continua sentadinho na poltrona macia de sua mansão. Aguarda a garantia de prisão domiciliar. Com redução da pena.

Se, no púlpito da ONU, Lula tivesse lembrado de contar essa peculiaridade de nosso sistema, teria desarmado Trump. Imagine só: o bandido de estimação do presidente americano estará qualquer hora descondenado!

Lula & Trump: os discursos

José Horta Manzano

A 80ª Assembleia Geral da ONU abriu hoje com o discurso dos dois. O Brasil antes, porque assim manda uma tradição não escrita. Em seguida, Trump, por ser o anfitrião.

Quem se acostumou com os discursos de nossos presidentes nos últimos anos, de Bolsonaro e do próprio Lula, se surpreendeu com a fala deste ano. Parece que o Lula andou frequentando aulas de “estadismo”, se é que essa disciplina se ensina nalgum lugar. Falou como estadista. Não tivesse feito menção, no finalzinho, a Pepe Mujica e ao papa Francisco, – citação que me pareceu fora de lugar –, eu diria que o discurso foi perfeito.

Em vez de fazer como um infantil Bolsonaro, que se gabou um dia de “ter salvo o Brasil do socialismo”, o Lula fez um discurso digno de chefe de uma potência regional, que se respeita e que respeita o mundo. Mencionou, por alto, alguns feitos de seu governo, mas gastou bom tempo acentuando os ataques que o Brasil vem recebendo. Não mencionou o nome do agressor, mas insistiu na natureza do ataque.

Falou da carnificina que vem sendo praticada na Faixa de Gaza e deu nome aos bois: chamou a ação de Israel de genocídio, que é a descrição correta. Seu discurso foi interrompido uma meia dúzia de vezes por palmas. Não são todos os discursantes que fazem tanto sucesso.

Em seguida, veio Trump. Quem esperava ouvir Trump não se decepcionou: Trump se comportou como… Trump. Como se estivesse acima das regras do jogo, ultrapassou folgadamente os 15 minutos alocados a cada discursante. Veio com uma maquiagem de assustar. A pele do rosto estava escura, puxando para o alaranjado do cabelo. Ouvi dizer que ele usa um spray facial. Deve achar bonito.

Na primeira metade da fala, teceu elogios a si mesmo. Lançou à plateia um rosário de números inverificáveis referentes a inflação, desemprego, índice da Bolsa e inúmeros outros índices. Todos os números estão no melhor patamar desde que o mundo é mundo. Um verdadeiro milagre.

Me lembrou o Lula de outros tempos, quando dizia “nunca antes na história desse(sic) país”. O Trump de nossos dias vai pelo mesmo caminho “never before” nunca antes, etc. Mencionou o presidente anterior (Biden) uma meia dúzia de vezes, sempre para criticá-lo ou ridiculizá-lo. Chegou a mencionar o “sleepy President”, presidente sonolento.

Já na reta final, falou do Brasil. Me deu a impressão de estar desconfortável, de estar falando só pra dar uma resposta ao discurso do Lula. Pode ser só impressão minha. Começou a dizer que os EUA tiveram de agir (mas não disse de que ação se tratava) porque o Brasil estava exercendo pressões sobre firmas e cidadãos americanos, principalmente com censura, exercida por um “judiciário corrupto”. (O STF há de ter apreciado.)

Nessa altura, para não se enrolar ainda mais, fez uma digressão. Contou que, nos bastidores, antes de discursar, cruzou com o presidente do Brasil, Disse que os dois se cumprimentaram e se abraçaram(!). Revelou ainda que achou o Lula muito simpático e que tinha gostado dele. Acrescentou: “Ainda bem, porque, quando não simpatizo com uma pessoa, não faço conversa nem negócio”.

Trump não voltou mais a discorrer sobre as tensões com o Brasil. Por seu lado, explicou que, nos poucos segundos em que se encontraram, já tiveram tempo de marcar um encontro para a semana que vem.

Vamos cruzar os dedos para que essa simpatia mútua dure até a semana que vem, que se encontrem realmente e que a tensão se desanuvie. O Brasil está precisando.

Prato pra cima, prato pra baixo

Estadão, 18 set° 2025

José Horta Manzano

A bem apelidada “PEC da Blindagem”, atualmente em tramitação no Congresso, levanta duas questões. A primeira é a assombrosa quantidade de parlamentares enrolados com a justiça. A segunda é decorrência da primeira: por que razão esses inquéritos todos estão no STF?

O assunto é vasto. Vamos hoje nos dedicar ao primeiro espanto: a quantidade de pendengas judiciais de Suas Excelências.

O Brasil tem 513 deputados + 81 senadores = 594 parlamentares. Entre eles, 108 estão com alguma pendência com a justiça, ou seja, 18% do total, perto de 1 em cada 5 eleitos. A mim, parece um despropósito. Como é possível que 1 em cada 5 parlamentares, eleitos pelo voto popular, vão tropeçar na justiça?

Presumindo que essa contabilidade só inclua enroscos com o STF, excluindo outros que estejam tramitando em instâncias mais baixas, é permitido cogitar que, do jeito que vão as coisas, a banda podre de congressistas, que tem crescido estes últimos tempos, caminha para se tornar majoritária.

Agora fica fácil entender a motivação da grande maioria de deputados que votou pela aprovação da PEC da Blindagem, texto que visa a dificultar serem alcançados pelos braços da Justiça. É o medo que os motiva. Além dos que já são objeto de inquérito no STF, vem atrás uma procissão de Excelências que votou para se premunir. Homem precavido vale por dois.

Niemayer: croqui original Brasília

A supor que assim se ajeitem as coisas – congressistas sempre com foro especial e PEC da Blindagem aprovada –, resta uma derradeira providência para mitigar o cheiro de queimado que emana daquela dupla de pratos, um virado pra cima, outro pra baixo.

Para candidatos a cargo eletivo – em todos os níveis: federal, estadual e municipal –, há que instituir nova exigência. Além de serem de nacionalidade brasileira e em pleno gozo de seus direitos políticos, que seu prontuário não apresente condenações penais, e que não tenham, no momento da inscrição da candidatura, nenhuma pendenga com a Justiça (nem inquérito, nem pocesso em andamento).

Acredito (e espero) que essa medida – simples, afinal – ajudará a eliminar, pouco a pouco, essa escória que polui o Parlamento nacional e o torna próximo da inutilidade, na medida que vem empurrando, para o Executivo e para o Judiciário, as decisões que deveria tomar.

Ainda dá pra consertar.

Wake up, America!

José Horta Manzano

O processo e o julgamento a que Jair Bolsonaro teve direito não são fato corriqueiro. De fato, não é todo dia que se assistem às consequências judiciais de um golpe dado com a intenção de tomar (ou conservar) as rédeas do poder de um Estado. Golpes há, processos são mais raros.

O malogro contribui para a raridade do que ocorreu com Bolsonaro: só golpe malogrado dá processo. Golpe bem sucedido costuma dar execução sumária (dos adversários), exílio, “desaparecimento”, cadeia ou coisa pior. Tudo longe de qualquer processo. Se o golpe urdido por Bolsonaro tivesse dado certo, só quem vive fora do país estaria em condição de comentar ou criticar neste momento. No interior das fronteiras, o silêncio seria obrigatório.

Golpes costumam ser bem planejados, bem organizados, bem disciplinados e, como consequência, bem sucedidos. Bolsonaro quis dar o seu, mas não tinha gabarito para tal. Como diziam os metalúrgicos do ABC, comeu mortadela e tentou arrotar peru. Entupido na própria mentira, dançou.

No momento atual, ao redor do mundo, não há muitos, vamos dizer assim, “pré-golpes”, como o de Bolsonaro em andamento. Há o caso da Hungria, um golpe como aquele que o capitão sonhou. Só que a versão húngara está sendo conduzida com método, paciência e disciplina, qualidades que nunca fizeram parte do arsenal bolsonárico. A distorção da democracia húngara já passou do ponto de não retorno. A meu ver, pouco ou nada se pode fazer para evitar a consolidação de um regime iliberal ali.

Há, sim, um lugar do globo em que a queda e a condenação de Bolsonaro devem servir de sinal de alarme porque ainda dá tempo: são os Estados Unidos. Não sei se por respeito, susto ou medo, os eleitores que não votaram em Trump nem têm por ele nenhuma simpatia continuam encantados, hibernados, paralisados.

Faz 8 meses que o novo presidente assumiu, já retalhou discricionariamente instituições, entrou em conflito com magistrados, com personagens da sociedade e com o eleitorado não branco, já desferiu golpes pesados em empresas importadoras, já comprou briga com países amigos com impostos de importação proibitivos, já se indispôs com a Rússia, com a Índia, com o Brasil, com a Suíça, com a Dinamarca, com o México, com o Canadá, com a Venezuela, com a Ucrânia. Meteu-se pessoalmente a perseguir juízes de nossa Corte Maior e a exigir que julgamentos em andamento fossem anulados.

Diante de tudo isso, os eleitores que não votaram nele continuam entorpecidos, sem reação, sem palavras, sem um pio. Dá vontade de gritar: “Wake up, America!” – Acordem, Estados Unidos! Está passando da hora de se agitar, desenterrar o machado de guerra (olhe lá, metaforicamente!) e agir. Juntem bons advogados, que vocês devem ter, estudem a melhor maneira de enquadrar Trump, a melhor brecha na lei para alcançá-lo, e vão em frente!

Por prudência, comecem desde já a preparar a luta a travar quando ele sair do governo, por fim de mandato ou por renúncia. Se puderem impichá-lo antes, melhor ainda. Vocês não imaginam o que perderão caso permitam que seu sucessor seja um cafajeste da mesma espécie.

Corram, que ainda dá tempo!

É bom já ir

by Marília März
in Folha de S.Paulo

José Horta Manzano

Imaginem uma loja de comércio que pegou fogo. Depois do fogaréu, vem a hora do rescaldo. Limpa-se tudo e separam-se cuidadosamente artigos carbonizados de produtos ainda em estado de ser vendidos: são os salvados de incêndio.

Na semana que termina neste dia 13, o rigor de um julgamento, rígido e preparado nos conformes, foi perturbado pela explosão de vaidade de um dos julgadores que, esquecido de que a palavra é de prata e o silêncio, de ouro, autoimolou-se na fogueira das vaidades. Num surto de verborragia, deitou fora uma solitária fala de quatorze horas, na qual desafiou a lógica, destratou os colegas e insultou a inteligência dos ouvintes. Um despautério. Tentou livrar os réus da condenação, mas foi voto vencido. Há quem diga “voto vendido”, mas há controvérsia.

Entre os salvados do incêndio, está o pequeno Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente Bolsonaro. Coube ao rapaz o papel de bom menino, por ter sido o único a fornecer verdades importantes para a instrução do processo. Embora teoricamente condenado, na prática sai livre e solto. Foi o único.

De aplaudir é também o estoicismo dos julgadores que, apesar da ameaça bem real de Trump de privá-los de visto, de conta bancária e de cartão de crédito, não se encolheram e enfrentaram de peito aberto. (Não foi o caso de Luiz Fux, que preferiu o caminho da desonra.)

Entre os artigos carbonizados, está o próprio Bolsonaro. Por mais que seus defensores reclamem, gritem, esperneiem e se apliquem a requerer habeas corpus, revisão de processo e quejandos, não hão de conseguir mexer na essência. Uma condenação a 27 anos de cadeia, ainda mais pronunciada pelo STF, não é bagatela.

Em termos práticos, Bolsonaro, mesmo sem a sentença ter transitado em julgado, está preso. Em prisão domiciliar, é verdade, mas de lá não deve sair. Trancado e incomunicável, não tem como açular sua malta. Dele, estamos livres. Espera-se que nos deixe tranquilos para sempre.

Vêm aí as eleições. Já sabemos que a urna não emitirá papelzinho (pra ser mostrado ao patrão). Será eletrônica, como estamos acostumados. Tirando os Bolsonaros menos perturbadores, que costumam visar a vereança, não devemos ter nenhum dos dois graúdos na cédula. Um porque está preso; o outro, porque não vai ousar voltar para o Rio, vai continuar nos EUA. Meio sem ter o que fazer, é verdade.

Não se sabe ainda quais serão os nomes que enfrentarão Lula. Em todo caso, três ou quatro governadores, que estão de olho gordo no Planalto, já perderam meu voto. Foram aqueles que defenderam Bolsonaro e, ao mesmo tempo, atacaram o STF. São também aqueles que prometeram conceder indulto presidencial a Bolsonaro. Entre eles, estão Tarcísio, Zema, Caiado, Ratinho Jr.

É bom que apareça alguma figura menos interesseira, se não vamos ter de votar no Lula de novo. Ui!

Fux: desonesto e desleal

STF
Por fora, protegido contra pessoas mal-intencionadas
Por dentro, mal-intencionados estão soltos

José Horta Manzano

O escritor Sérgio Rodrigues argumentou que, no julgamento de Bolsonaro e sua gangue, o combate dos que detestam os carecas tem a oportunidade rara de despertar consciências para o valor de uma cabeça lustrosa, com sua linguagem pelada, em comparação com o dumping de juridiquices pilosas de uma peruca.

Convenhamos que o escritor soube deitar no papel, em letras claras, o que todos comentam à boca pequena.


É raro ver o voto de um magistrado, fosse ele do STF, provocar a unanimidade que a cachoeira de palavras de Luiz Fux provocou. Todas as críticas que li – e li muitas – mostram jornalistas, em maior ou menor grau, indignados.

A estas alturas, vosmicê já deve ter tido acesso a alguns comentários. Excluindo algum bolsonarista puro sangue, todos os brasileiros pensantes estão, se não indignados, espantados e/ou desorientados.

O STF é um colegiado de magistrados, senhores, não um cortiço de analfabetos. Decisões de tamanha envergadura, como a absolvição ou a condenação dos autores de nossa mais recente tentativa de golpe de Estado, devem ser avaliadas pelo colégio de juízes antes da apresentação ao público. O que aconteceu ontem é a prova de que essa fase foi zapeada.

Estivéssemos em tempos normais, as dez horas de fala de Luiz Fux seriam olhadas com condescendência e seriam consideradas um esforço de “ser estrela por um dia”. Uma exaltação da vaidade. A meia hora de glória que seria comentada pelo mundo todo no dia seguinte.

Mas acontece que não estamos em tempos normais – e doutor Fux sabe disso muito bem. Temos o presidente do país mais poderoso de olho nesse julgamento, ameaçando-nos até com sua força militar caso o processo não seja truncado imediatamente. Temos, no banco dos réus, um ex-presidente da República e seus áulicos, entre eles, generais.

Não é num julgamento desse quilate que Fux havia de rodar a baiana e pisar no pé dos colegas na contradança. Se o fez, foi por razões imperiosas. Não é pecado conjecturar.

Na minha visão pessoal, o inesperado refugo de Fux tem outra explicação. Não é fruto do desejo de épater la galerie, de impressionar a distinta plateia. Algo me diz que Sua Excelência agiu assim para sair da mira de Donald Trump.

Por algum motivo, o ministro faz questão de conservar seu visto americano e seu direito de visitar aquele país quando e por quanto tempo desejar.

    • Talvez tenha depositado suas economias numa caixa econômica do faroeste e queira continuar tendo acesso à grana.
    • Talvez esteja planejando uma viagem à Disneylândia em dezembro, no intuito de cumprimentar o Pateta e deixar os netinhos andar de xícara.
    • Talvez tenha dado entrada num apartamento em Miami, como tantos brasileiros, e tenha agora medo de perder o investimento.

Imagino que Fux será cobrado, por seus pares, sobre a razão da guinada. Uma boa explicação vai-lhe evitar ser mandado para a geladeira por alguns anos.

Revendo

A arrogância dos 18 anos

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Eu tinha cerca de 18 anos. Com a arrogância típica dos que ainda não haviam sofrido perdas importantes, construí uma frase de efeito para impressionar meus amigos: “Se as pessoas pudessem se odiar com a mesma liberdade interna com que amam, o mundo seria um lugar melhor”.

Acreditava piamente que a diminuição da hipocrisia social seria libertadora, na própria medida em que se abria automaticamente a possibilidade de o outro retrucar e apresentar sem pudor suas próprias ‘verdades’, mostrar outras perspectivas comportamentais, expor diferentes visões de mundo que resultassem em maior acolhimento das diferenças. Sabia que havia o risco de o insultado causar uma dor ainda maior naquele que houvesse dado início à divergência, mas me parecia que valeria a pena autorizar-se a fazer uma profunda faxina interior e livrar-se dos próprios preconceitos, medos, ilações indevidas e ressentimentos. Só não contava então com o surgimento de uma inovação tecnológica que permitisse que os haters se escondessem atrás de uma tela, anônimos e aspirando à impunidade. Para que minha tese de então funcionasse, compreendo agora, era preciso que o embate se desse presencialmente, olhos nos olhos.

Mostrei a frase a um amigo, que era um famoso ator de cinema, teatro e televisão. Durante uma entrevista, ele a utilizou todo orgulhoso para marcar seu posicionamento contra a censura. Foi um Deus nos acuda. A polarização que se sucedeu abriu meus olhos para a inconsequência última da mensagem. Descobri o óbvio: odeia-se, quase sempre, aquilo que nos perturba e nos assusta por existir também dentro de nós. E pouquíssimas pessoas têm estrutura emocional flexível o suficiente para digerir certas verdades que tentamos esconder a qualquer preço.

Coragem aliada à transparência, essa era a mensagem pretendida. Não a mera expressão exibicionista de desgosto, repúdio. Hoje assisto aterrorizada à expansão irreprimível dos ódios gratuitos, da oposição ferrenha a qualquer pessoa que possa nos colocar limites, do gabar-se de ter a coragem de dizer o que todo mundo pensa, mas não ousa comunicar, sem medo das consequências da própria verborragia iconoclasta. Da petulância de julgar indistintamente e acusar sem provas qualquer um que se transforme em obstáculo para a implementação de nossos projetos mais secretos.

O cenário de final de feira é tão nauseabundo que me resigno a inverter a lógica da primeira frase. A partir de hoje, passo a afirmar uma crença ainda mais revolucionária e libertadora: a de que “se as pessoas ousassem se amar com a mesma liberdade interior com que se odeiam, o mundo seria um lugar melhor”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Janus

Janus
by Andrey Kokorin,
desenhista bielo-russo

José Horta Manzano


“A gente está aqui para defender a anistia!”

“Ninguém aguenta mais a tirania de um ministro como Moraes!”

“Nós não vamos mais aceitar que nenhum ditador diga o que a gente tem que fazer!”

“Chega do abuso, chega!”


Quem disse isso? Jair Bolsonaro? Um dos seus filhos, talvez? Ou, com certeza, algum exaltado pastor de almas num discurso inflamado?

Não, nenhum desses personagens. Engana-se quem ticou uma das opções acima. O autor dessas frases contundentes é, nada mais nada menos, que Tarcísio de Freitas, antigo militar, hoje governador de São Paulo, eleito graças à indicação de Bolsonaro, antigo chefe de quem é pupilo.

Pronunciou essas palavras de guerra aberta contra o Poder Judiciário em comício que teve lugar dias atrás, no 7 de setembro, na avenida Paulista, São Paulo. Foi naquela mesma manifestação em que tremulou uma gigantesca bandeira dos EUA, curioso símbolo de vassalagem a potência estrangeira, assomado bem no dia em que se comemora nossa independência de uma potência estrangeira…

Desde que virou governador, Tarcísio tem se equilibrado na crista do muro estreito que separa o golpismo, entranhado na doutrina bolsonarista, da democracia, almejada por todos os brasileiros de boa fé. Tarcísio ora pende para um lado, ora para o outro. Com bom talento de equilibrista, tem surfado conforme sopram os ventos da atualidade, piscando o olho para o povo de lá, acenando para o de cá.

Janus é o deus romano dos começos e dos fins, das boas escolhas, da passagem e das portas. Deu nome a janeiro, o mês que se situa na passagem entre dois anos; que dá adeus ao ano velho e saúda o novo. É um deus sábio, bastando ver como consegue se desligar do passado e se inserir no presente.

Nosso Tarcísio, calculista que só ele, chegou a um ponto em que foi compelido a tirar a máscara e mostrar a cara. Não havia mais como contemporizar numa situação como a que vive o país. Com o julgamento de Bolsonaro & demais golpistas entrando na fase final, espera-se, de cada um, que assuma sua posição no tabuleiro político – e que a declare, alto e bom som.

Na hora H, o governador de São Paulo deu um salto do muro e escolheu cair do lado do golpismo. Deitou, rolou e se lambuzou. E, ao levantar, revigorado e reembebido da doutrina que professou desde sua fase de aprendizado junto ao clã dos Bolsonaros, pronunciou memorável (e definitiva) arenga, da qual tirei as frases que encabeçam este artigo.

Janus é o símbolo dos começos e dos fins. Preside também às boas escolhas. Tarcísio de Freitas vestiu a máscara do deus romano. Muitos acreditaram que ele tivesse absorvido um pouco da sabedoria da divindade, mas foi ilusão. Na hora H, já se pôs a fazer escolhas erradas e mostrar que não passa de um Bolsonaro 2.0, que já começa mal.

Eleitores do Brasil, tomem cuidado! Quem já começa insultando o STF antes mesmo de se inscrever como candidato à Presidência, está pondo as cartas na mesa. Ninguém vai poder dizer que não sabia. Tarcísio de Freitas tem uma dívida de gratidão para com seu padrinho, Jair Bolsonaro. E pretende pagá-la sendo-lhe fiel nas palavras e nos atos.

É bonito ver a gratidão de um beneficiário! Mostra não ser mal agradecido, o que é um bom traço de caráter. Pena que, neste caso, o padrinho é um pilantra. Agora, todo o Brasil se dá conta de que este futuro candidato a presidente já dá a largada com o rabo preso. E logo com quem…

Passamos quatro anos como espectadores, paralisados diante de uma tensão insuportável entre o presidente da República e os magistrados do STF. Agora que estávamos caminhando para a normalização das relações entre os Poderes, não queremos recomeçar a luta, com um eventual novo presidente que, desde que se candidatou, já mostrou como será a toada.

Xô, gente encrenqueira e oportunista! Já temos o Trump para semear pedras no nosso caminho. Não precisamos de mais um estagiário.

O meu exército

José Horta Manzano

«Nunca vou ser preso», gritou um soberbo Jair Bolsonaro alguns anos atrás, no tempo em que os áulicos eram muitos, solícitos, servis. Ninguém ousou contestar.

O mundo dá voltas. Taí, Bolsonaro está preso. Em casa, é verdade, mas não é mais senhor de seus movimentos. Se quiser ir até o shoppinho tomar um chopinho, não pode. E nem adianta pedir autorização, que não vão deixar.

“Canalha!”, bradou um destemperado e temerário Jair Bolsonaro alguns anos atrás, no tempo dos setes de setembro transformados em comício. O insulto era dirigido pessoalmente a Alexandre de Moraes, ministro do STF. O capitão tinha confiança na docilidade do “seu” exército.

O mundo dá voltas. Outro dia, quando compareceu ao STF, sentou-se ao lado do advogado e frente a frente com Alexandre de Moraes. Ao responder a uma pergunta de Moraes, Bolsonaro tratou-o por “Excelência”. O mundo dá voltas mesmo.

Estamos assistindo a coisas que a gente nunca imaginou presenciar um dia.

Veja o caso do Trump. Nem o Nostradamus mais perspicaz teria imaginado que, no século XXI, o presidente dos EUA se deixaria influenciar por um deputado brasileiro pilantra e, na sequência, se poria a pisar no calo do Brasil e a nos tratar como se fôssemos um povo de categoria inferior.

Veja outro caso, esse convescote que reuniu algumas dezenas de ditadores na China estes dias. Estavam lá os líderes da China, da Rússia, da Coreia do Norte, do Paquistão, da Índia, do Casaquistão, da Bielo-Rússia e outras eminências. Pois o Brasil deu um jeito de enviar um representante. O enviado não se envergonhou de figurar na foto de família em tão excelsa companhia. Era Celso Amorim, aquele amigo do Lula, que se pôs na ponta dos pés para aparecer no retrato.

Outro caso, bem próximo de nós: o julgamento de Bolsonaro. O Brasil se divide atualmente entre os cidadãos que gostariam de ver Bolsonaro condenado e encarcerado, se possível até o fim de seus dias – na Papuda ou em casa, tanto faz. Já outro contingente de eleitores, bem menor do que o alarido das redes deixa supor, gostaria de vê-lo absolvido, solto e sem mais enroscos com a justiça.

O que vou dizer agora, pode chocar alguns: para mim, tanto faz. Tanto faz que seja condenado a 43 anos ou que seja absolvido por insuficiência de provas. A meu ver, a boa justiça não precisa ser necessariamente vingativa. Acho que o importante, o que ficará na história, não é o resultado do julgamento nem o tamanho da pena. O que será lembrado é o julgamento em si.

É admirável que, diferentemente do que ocorreu nos EUA, onde Trump conseguiu escapar à justiça, Bolsonaro foi obrigado a aguentar até o fim, apesar do esperneio. Não adiantou ter escapado para os EUA em 2022, não adiantou o filho pilantra ter conspirado junto à Casa Branca, não adiantou a Lei Magnitsky, não adiantaram os impostos de importação de Trump. Imperturbável, o processo seguiu seu curso até o fim.

Agora, se o STF julgar que o capitão deve ser condenado, que o condene. Se achar que as provas são insuficientes, que o absolva. Seja como for, o Congresso encontrará, de uma maneira ou de outra, modo de lavar sua culpa, por anistia, graça, indulto ou outro nome que soe bonito. Ou então o capitão se livrará por ter idade avançada e uma polpuda lista de enfermidades.

Por minha parte, fico satisfeito de ele ter tido de enfrentar o Tribunal Maior, voz trêmula e peito arfante, com um medo que há de ter-lhe envenenado a existência, pusilânime que sempre foi. Agora vai passar o que lhe resta de vida remoendo o ódio que sente contra os generais do seu exército, que o abandonaram e o atiraram às feras.

Para a pequenez do personagem, já está de bom tamanho.

Depois da morte

by Maurenilson Freire
desenhista cearense-brasiliense

 

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 1° setembro 2025

No Brasil, a crença na reencarnação perpassa todos os estratos sociais. Está nos muito ricos, nos muito pobres e nos remediados. Vai da favela ao condomínio de luxo, atravessando fronteiras de classe e instrução. Junto com o arroz com feijão, a novela das oito e o futebol de domingo, o reencarnacionismo é parte constitutiva da identidade nacional. Mesmo não sendo dogma oficial de nenhuma grande igreja tradicional, e mesmo sendo incompatível com a doutrina católica, está profundamente enraizado no imaginário coletivo do brasileiro.

O sincretismo é traço peculiar da nossa religiosidade. Assim como orixás e entidades das crenças africanas se amalgamaram a santos e arcanjos da fé católica, a ideia de múltiplas vidas foi se entranhando na crença popular, servindo de pano de fundo para todo um universo esotérico – de médiuns de televisão a centros de mesa branca, passando por horóscopos, regressões, florais e cristais. O brasileiro, mesmo quando diz “não acreditar em nada”, costuma bater na madeira três vezes “só por via das dúvidas”.

E quanto mais se envelhece, mais a questão do depois vai se infiltrando no pensamento. O que virá depois do último suspiro? Costumo dizer, em tom de brincadeira (mas com sinceridade), que não me agradaria passar a eternidade sentado numa nuvem, de camisola branca, tocando lira, esperando não sei bem o quê. Um céu estático e entediante não me seduz. Já a doutrina espírita parece bem mais dinâmica, instigante até. Nela, a morte é apenas um ponto de passagem entre duas jornadas. Com ela, entra-se em fase de aprendizado, reflexão e planejamento, antes de reencarnar para mais uma etapa da longa caminhada.

Se for assim mesmo – se a alma tiver mesmo que voltar –, quero fazer um pedido modesto. Aceito ir e vir quantas vezes for necessário, sem medo, livre e galhardo. Mas não quero voltar a este planeta. Peço licença para seguir adiante, para outro mundo, uma outra Terra, quem sabe, mais justa, mais humana, mais honesta, mais igualitária. Uma sociedade menos estressante, menos predatória, mais sensível ao sofrimento alheio. Um planeta habitado por gente de boa vontade e incapaz de odiar, gente que ri com facilidade e vive com leveza.

Digo isso com o peso de quem sonhou diferente. Os da minha geração, quando jovens, acreditávamos sinceramente que a humanidade, em poucas décadas, teria superado sua fase mais bárbara. Achávamos que a era de Aquário traria sabedoria, paz e equilíbrio. O tempo passou e, infelizmente, nos desmentiu um bocado.

Houve avanços significativos, sim. Hoje se viaja pelo espaço, há curas médicas antes inimagináveis, a tecnologia nos conecta em tempo real, o número de analfabetos caiu, a expectativa de vida subiu, e o número de famintos diminuiu. Mas os retrocessos gritam. A violência atingiu um nível intolerável, a desigualdade persiste com cara renovada, e nacos do nosso território são hoje terra sem lei, dominada por forças paralelas – narcotráfico, milícias, facções. A educação pública foi sendo sucateada, minada de dentro para fora. Em vez de formar cidadãos, forma estatísticas. A ignorância, antes vergonha, agora é ostentação. Ou pior: há quem prefira permanecer nela, por conveniência ou por preguiça.

E não é só aqui. O mundo parece tomado por uma onda de lideranças sombrias, despóticas, personagens trevosos que cavam trincheiras em vez de pontes. Vampiros modernos, sedentos de poder, ergueram seus tronos em territórios diversos: nos Estados Unidos de Trump, na Rússia de Putin, na Venezuela de Maduro, na Coreia do Norte dos Kim, na Nicarágua de Ortega. Há também regimes disfarçados, onde a repressão vem com verniz de ordem e progresso. O Brasil, por exemplo, sob o clã dos Bolsonaros, por pouco não cruzou a fronteira que separa a democracia frágil do autoritarismo escancarado.

No mundo para onde quero voltar, esse tipo de liderança não existe. Não pode haver lugar para os que mentem em série, que instrumentalizam a fé alheia, que manipulam a verdade conforme lhes convém. E menos ainda para seus fiéis seguidores, cegos por preguiça, fanatismo ou desinformação. Quero viver num lugar em que a verdade não seja alvo de disputa, em que os direitos humanos não sejam vistos como “coisa de comunista”, em que a empatia não seja taxada de fraqueza.

Se um mundo assim existir – e há de existir, algures, entre os bilhões de planetas que coalham nosso céu noturno –, é para lá que quero ir. Nem que precise renascer com aspecto de homenzinho verde, de três olhos, com três dedos em cada mão.