Birds of a feather

Sites de namoro no Brasil:
“Por favor, não me diga que você é de esquerda, você é bonita demais pra ser esquerdista.”

 

José Horta Manzano

Em 1969, Jorge Ben compôs e Wilson Simonal cantou “País Tropical”, aquela que dizia:

Moro
Num país tropical
Abençoado por Deus
E bonito por natureza

Desde aquela época, a expressão “bonito por natureza” tornou-se uma daquelas frases feitas, citadas a todo momento em relação a nosso país tropical. A expressão não chocou ninguém, muito pelo contrário: encantou. É que combina com a imagem que nos fazemos de nosso Brasil cheio de encantos mil.

Sempre aprendemos que em nossa terra de sol e de música reinavam a paz e a concórdia. Aprendemos também que em certas regiões do mundo, esquecidas pelo Altíssimo, os habitantes viviam em pé de guerra, parte da população jogada contra a outra parte.

Sabemos que na Irlanda do Norte católicos e protestantes se odeiam, e que volta e meia entram em conflito. Houve embates sangrentos até os anos 1990. De lá pra cá, as tensões arrefeceram, mas as brasas continuam quentes e podem se inflamar a qualquer momento.

Outra coisa que sabemos é que, em certos países do Oriente Médio, como o Líbano, a população vive dentro de bolhas confessionais. Homem de família muçulmana não se casa com mulher de religião cristã. Na segunda metade do século 20, o país já foi castigado por uma guerra mortífera de origem religiosa que durou dez anos.

Na Índia, o fosso divisório passa entre hinduístas e muçulmanos. Os dois grupos não se bicam. Dado que são bem minoritários no país, os muçulmanos são frequentemente atacados pelos hinduístas, majoritários. Misturar-se? Não passa pela cabeça de ninguém.

Quanto a nós, até outro dia tínhamos certeza de viver num país abençoado por Deus e, ainda por cima, bonito por natureza. Isso foi até outro dia. Depois do desastre lulopetista e da catástrofe bolsonárica, o panorama mudou. O distinto leitor há de ter notado. Mas fique sabendo que até a mídia estrangeira já se deu conta.

A revista francesa Notre temps (Nosso Tempo) traz uma reportagem sobre o surpreendente caso brasileiro. Para espanto de seus leitores, revela qual é a primeira pergunta feita por usuários de aplicativos de namoro – aqueles em que cada um procura a alma gêmea. Logo no primeiro contacto, antes de dar bom-dia, a pergunta é: “Você vai votar em quem?”. Vale também a variante: “Você é de esquerda ou de direita?”.

Usuários entrevistados explicam não ter vontade de perder tempo com uma pessoa com ideias políticas diferentes das suas. Há até quem já declare suas preferências políticas logo no perfil, descartando assim todo mal-entendido.

Parece que alguns aplicativos vão mais longe. Já se especializam em usuários de direita (ou de esquerda), numa tendência “private club” à moda dos aristocráticos ingleses. Os frequentadores desses sites pensam todos da mesma maneira, o que evita perguntas inúteis e potencialmente agressivas.

Não sei você, mas eu acho essa situação lastimável. Recuso-me a considerar que esse estado de coisas seja fruto de um “progresso” qualquer. Ao contrário, parece-me uma regressão, uma involução. Mostra que, tendo perdido a capacidade de conviver com diferentes, aspiramos a viver num mundo de iguais, onde todos têm as mesmas ideias, gostam das mesmas pessoas, detestam as mesmas coisas, pensam do mesmo jeito.

Pôxa, que monotonia, não lhes parece? É uma vida monacal, sem sal e sem sabor.

O nome do movimento

O inglês diz:
Birds of a feather flock together.
Pássaros de mesma plumagem se aninham juntos.

Os franceses dizem:
Qui se ressemble s’assemble.
Quem se parece se ajunta.

Os italianos preferem:
Dio li fa e poi li accoppia.
Deus os faz e depois os junta.

Quanto a nós, temos algumas expressões correspondentes:
Os semelhantes se atraem.
Cada qual com seu seu igual.
Uma vaca reconhece a outra.

Mas melhor mesmo é dizer: Vade retro, vida besta! Xô!

Qui se ressemble – 3

José Horta Manzano

Já tivemos pencas de ministros desonestos. Já tivemos profusão de ministros corruptos. Já houve até ministros que acabaram na cadeia. Ao final do ciclo lulopetista, achamos que já tínhamos visto tudo o que tinha pra ser visto em matéria de folclore ministerial. Assustados, nos damos ora conta de que não era bem assim. Há pior.

Quando doutor Bolsonaro anunciou que não lotearia seu ministério entre partidos e apoiadores, a imensa maioria dos brasileiros aplaudiu de pé. Agora, vai! – pensamos.

Todo o mundo acreditou no que disse o novíssimo presidente. Só que ninguém se preocupou em perguntar quem ocuparia as vagas. De onde viriam esse ministros que o presidente ia tirar do chapéu? Todos esperavam que, no lugar dos velhos políticos bichados, viria gente fina, instruída, competente e capaz. Em algum ponto, por desgraça, a receita desandou. O ministério inclui figuras maléficas.

O caso de dona Damares é mais folclórico do que perigoso. Mas dois colegas dela estão causando estrago. São o ministro da Educação e o do Meio Ambiente. Ambos são caso típico de pessoa errada no lugar errado.

Emmanuel Macron insultado via Twitter por um ministro brasileiro
Chamada do jornal Le Temps, Genebra

O ministro do Meio Ambiente age como ministro do Desflorestamento, uma contradição nociva ao país. Comporta-se como lobista dos inimigos da natureza. Um disparate.

De todos, o ministro da Educação é o mais sem educação. Insultou o presidente da França outro dia, com palavras pesadas. Fez isso gratuitamente, sem nem ter sido provocado. Agiu conforme a receita do integrante de clã fechado e agressivo: assim que o chefe abre as hostilidades, o resto da turma entra pela brecha, armas na mão. Doutor Bolsonaro endossou comentário injurioso sobre a aparência física da esposa de Monsieur Macron. Foi a conta. Numa reação de agressividade grupal, o resto da patota se sentiu livre pra xingar.

São ministros, minha gente! Estamos falando do presidente da República brasileira, senhores! Como é que pode? Será que já vimos tudo ou será que ainda vem por aí coisa pior? Isso ainda vai acabar mal. Valei-nos, São Benedito!

«Qui se ressemble s’assemble – os semelhantes se atraem».

Qui se ressemble – 2

José Horta Manzano

O Mercosul não foi criado pra ser clube ideológico. A intenção dos fundadores era mais elevada. Visavam a alcançar maior integração comercial entre os membros e, obedecendo ao princípio de que a união faz a força, dar impulso às exportações de todos. Infelizmente, o relacionamento entre os sócios andou constantemente emperrado. Uma crise aqui, uma recessão ali, um deslize acolá – foi como se as rodas da carroça estivessem sempre entravadas.

Na época em que o lulopetismo dominava o país e encontrava eco na Argentina dos Kirchners, no Uruguai de Mujica, na Bolívia de Evo e na Venezuela de Chávez, o Mercosul tornou-se definitivamente um clube ideológico. Chefes de Estado se reuniam de vez em quando para muita foto de família e pouca resolução. O projeto de poder de cada governante tornou-se bem mais importante do que os avanços comerciais do grupo.

Foram-se os lulopetistas, foram-se os Kirchners, foi-se Mujica, foi-se Chávez. (Evo ainda está aí, mas quietinho, parado no ar, na expectativa de saber o que lhe reserva o futuro.) Quando Macri e doutor Bolsonaro anunciaram que o acordo comercial com a União Europeia estava assinado, só faltando ser ratificado, muitos disseram ‘agora vai’. Inclusive este blogueiro.

Que desencanto! A euforia durou pouco. Confirmando o que já diziam as sondagens, o voto popular das ‘primárias’ presidenciais argentinas apontou para a (mais que provável) derrota de Macri, o atual titular. Foi a conta. A turma do Planalto mostrou que o clube está tão ideológico quanto costumava ser. Antes, como todos comungavam os mesmos ideais, a caixa de ressonância do grupo funcionava com harmonia. Agora, que Brasil e Argentina estão na iminência de enxergar o mundo com óculos diferentes, a caixa de ressonância começou a desafinar.

Doutor Paulo Guedes, ministro da Economia, já deixou claro que a dissonância ideológica entre Brasil e Argentina pode significar a dissolução do Mercosul. Veja a que ponto chegamos, distinto leitor: um grupo criado para promover a harmonia, o progresso e o bem-estar entre Estados periga desaparecer por motivo de divergência ideológica entre governos! Será que ninguém se dá conta de que governos são efêmeros, passam, enquanto Estados são permanentes, não se vão?

O provável futuro presidente da Argentina chama-se Alberto Fernández. Na mesma chapa, Cristina Kirchner disputará a vice-presidência. Portanto, se vencerem, señor Fernández será presidente, enquanto señora Kirchner será vice. Passando por cima dessas miudezas, doutor Guedes já inferiu que a Presidência será exercida de facto pela vice-presidente. E não se acanhou de referir-se a ela de forma debochada: «E se a Kirchner quiser fechar (o Mercosul pra acordos externos), a gente sai. E se quiser abrir, então vou dizer: ‘bem-vinda, moça, senta aí’»

Não precisa muito esforço de imaginação pra identificar a pesada marca de família nesse modo desrespeitoso de falar dos outros. Acertou, leitor! É assim que doutor Bolsonaro costuma se exprimir. Você e eu, que não somos figuras públicas, podemos nos permitir esse tipo de linguagem de botequim. Eles, não.

Que fazer? Como dizem os franceses, «qui se ressemble s’assemble – os semelhantes se atraem». Eta, nós! Estamos bem arrumados.

Qui se ressemble

José Horta Manzano

O comportamento das autoridades brasileiras continua assombroso. Chegou a hora de perguntar se há um limite.

Acredito que seja do conhecimento de todos que um templo dito «de Salomão» foi inaugurado em São Paulo. Já me referi a esse assunto dias atrás. Está aqui .

Que fique bem claro: este não é um panfleto anticlerical. Continuo acreditando que assuntos religiosos residem no foro íntimo de cada um e de lá não deveriam sair. Se uma seita conseguiu juntar os quase 700 milhões de reais que custou a construção desse edifício, good for them ― sorte deles. Como se dizia antes da autocensura que hoje vigora: eles, que são brancos, que se entendam.

Imagino que parte desses milhões tenha saído do bolso de gente simples de espírito e escassa de finanças. É a prova do sucesso espetacular de um casamento perfeito entre populismo e messianismo. Mas não é esse o ponto que quero hoje abordar.

Todos os jornais denunciaram, uns dois ou três dias antes da inauguração, o fato de a autorização de construir ter sido expedida com base em dados fraudulentos. Os empresários, para escapar das restrições inerentes a construções novas, alegaram que se tratava da reforma de prédio existente.

by Júnior Lopes, desenhista paraense

by Júnior Lopes, desenhista paraense

Na verdade, o alegado prédio já havia sido demolido anos antes. Nada mais restava senão um terreno nu. Com essa declaração falsa, a seita logrou burlar a regulamentação de zoneamento e, ainda por cima, economizar alguns milhões em emolumentos.

Autorização de construir alicerçada por declaração ardilosa ― como qualquer um pode imaginar ― não tem validade, é nula. As autoridades competentes podem entrar com ação demolitória.

O embuste foi anunciado aos quatro ventos dias antes da inauguração. Apesar disso, as mais altas autoridades da República fizeram questão de comparecer à cerimônia. Estavam lá a presidente do país, o governador do estado, o prefeito da cidade, o vice-presidente do STF, magistrados, militares, parlamentares, ministros.

Todos aqueles medalhões mandaram ao povo um recado claro: a lei é feita para deserdados. Pobres e remediados são os que têm de obedecer. Já empresários bilionários não estão sujeitos a esses incômodos. Estão acima da lei comum.

Os figurões vieram «prestigiar» o empresário trapaceiro. Qui se ressemble s’assemble, dizem os franceses ― os semelhantes se atraem. É de deixar de queixo caído.

Pra terminar, fica uma pergunta: cá entre nós, alguém acredita que haverá ordem de demolição?

E mais uma, de última hora: será que o prestígio do Lula anda tão baixo que se esqueceram de convidá-lo?

Interligne 18bVídeo da inauguração
Um novo «Reino de Deus» in Deutsche Welle