Aux armes, citoyens!

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 31 março 2018.

Advertência
O diálogo reproduzido a seguir é puro produto da imaginação delirante deste escriba. Que não seja tomado a sério. Data venia, data venia! Não atirem no pianista!

A cena se passa num escritório almofadado do Superior Tribunal Federal:

‒ Ó Pacheco, venha aqui!
‒ Pois não, doutor.
‒ Na sessão de amanhã, vamos votar a resolução número cinco mil e tantos. Minha decisão está tomada: meu voto será favorável. Agora você bote a equipe pra trabalhar. Que escarafunchem os alfarrábios e encontrem elementos pra sustentar minha argumentação. Citações de grandes juristas, jurisprudência nossa, artigos da Constituição alemã, tudo serve, desde que vá no bom sentido.
‒ Pois não, doutor, pode ficar tranquilo. Tudo vai estar pronto pra amanhã.
‒ Ah, e mande digitar em caracteres grandes, hein! Não quero dar vexame na hora de ler. Escreva entre oito e dez laudas, que é pra ficar consistente.
‒ Pode deixar comigo, doutor.

Foi o espetáculo teatral encenado semana passada, quando do (pré-)julgamento do pedido de habeas corpus formulado pelo cidadão Lula da Silva, que me soprou essa fábula. De fato, assisti empolgado, durante quatro horas que passaram num instante, à esplêndida demonstração de saber dada pelas onze sumidades sorridentes e togadas que coroam a ossatura judicial da nação.

Nenhum dos atores foi inexato nem titubeante. Nenhum deles se esquivou nem se omitiu. Nenhum fugiu da arena nem hesitou. Do começo ao fim, o show foi brilhante. Fiquei impressionado com a galhardia de cada ministro e assombrado com tanta sapiência.

A par disso, o espetáculo me convidou a refletir. Argumentos cruzados deixam no espectador leigo uma impressão de zigue-zague. Há embasamento pra tudo! Nenhum dos pelejadores fez papelão. Na portentosa jurisprudência plasmada pela corte maior ao longo dos anos, encontra-se de tudo. Tanto os que optaram pelo ‘sim’ quanto os que preferiram o ‘não’ puseram à mesa fundamentos sólidos e irrefutáveis. Como é que ficamos? No espremer do suco, fica a vívida impressão de que o que vale mesmo é a íntima convicção de cada juiz. Seja ela qual for, argumentação sólida haverá.

Pressupondo que assim seja ‒ que cada ministro tenha liberdade de exprimir sua íntima convicção na hora de deliberar ‒ considero que Suas Excelências não foram felizes na sessão de 22 de março. Não se deram conta de que o momento era histórico, o penúltimo passo antes do ponto de não retorno. Dominados sabe-se lá por que preocupações, os juízes máximos mostraram estar definitivamente divorciados do momento nacional. Se dispunham de bases incontestáveis tanto para receber quanto para repelir o pedido de habeas corpus, deveriam ter-se deixado imbuir da angústia da nação.

Extenuados pela persistente desfaçatez dos inquilinos do andar de cima, os brasileiros honestos e bem-intencionados suplicam, em coro e de joelhos, que lhes seja dado o sinal de que podem contar com o tribunal maior. Quando Executivo e Legislativo já perderam a credibilidade, o Supremo Tribunal Federal se torna depositário da esperança derradeira. Suas Excelências, agindo como se vivessem noutro planeta, não fizeram eco à aflição popular. É pena.

Pelas redes sociais, um general da reserva manifestou, com veemência, forte desagrado com a decisão do STF no caso do “habeas” de Lula da Silva. Como se sabe, generais da ativa estão impedidos de manifestar-se publicamente. Mas não estão proibidos de observar, pensar e firmar opinião. Do jeito que vão as coisas, a hipótese mais branda é o povo desencantado dar seu voto, nas eleições presidenciais, a um candidato brutal que, com força e energia, prometa botar tudo abaixo pra recomeçar do zero. A hipótese mais salgada… melhor nem mencionar.

Passada a Páscoa, Suas Excelências têm ainda uma derradeira chance de acertar. É o «exame de segunda época», expressão que deve soar familiar a todos eles, que já deixaram a adolescência há muito tempo. A nação bota fé nesse último recurso. Se insistirem em dar sinal verde para a blindagem de personagens nefastos, as portas do desconhecido vão se abrir. E podem deixar escapar nuvens escuras que vão acabar toldando o próprio Supremo. Já vimos algo parecido há meio século. «Improbe Neptunum accusat, qui iterum naufragium facit» ‒ Não deve acusar Netuno, quem naufraga pela segunda vez.

Peço vênia mais uma vez. Por favor, não me prendam! Desde já, peço habeas corpus preventivo.

Frase do dia — 196

«Ter sido eleita por méritos de Lula tornou-se, para Dilma, mais obstáculo do que vantagem: se reeleita, o mérito será de Lula; se derrotada, será por falta de méritos próprios.»

Carlos Matheus, professor emérito de Ética e Filosofia Política, em artigo no Estadão de 22 out° 2014.

Emérito

José Horta Manzano

Você acha que alguns meses de serviço militar é muita coisa? Pois não viu nada! Os guardas pretorianos da Roma antiga tinham de cumprir 16 anos. Para os legionários, então, era mais duro ainda: 20 anos. Depois desse tempo todo ― ufa! ― tinham direito a receber um prêmio.Coroa de louro

Há dúvidas sobre o fato de a língua latina ter sido, em algum momento, a língua vernacular, ou seja, aquela que todos utilizavam no dia a dia. Muitos autores acreditam que o latim, como o português culto, estava distante do falar popular. Era reservado para pessoas de grande erudição. O povão falava diferente.

Meu próprio professor de latim dizia que, se Cícero usasse com seus empregados domésticos o mesmo linguajar erudito que utilizava nas altas esferas, não seria entendido. Acredito que ele tinha razão.

Seja como for, a língua escrita era o latim. As leis e os regulamentos tinham de se valer dele para serem difundidos.

A língua culta usava a palavra meritum, com significado próximo de nosso atual mérito. Era a coisa merecida, o prêmio, a recompensa.

Pretorianos e legionários, uma vez cumprido seu longo serviço à pátria, adquiriam direito ao descanso. Era um prêmio a que faziam jus por mérito. Ex-meritum, dizia-se. De ex-meritum, foi um pulinho chegar a emeritum e, de lá, a emérito.

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Bento XVI, a partir deste 1° de março, conservará seu título de papa. Mas será papa emérito. E expressão feliz e honrosa. Significa que o papa cumpriu seu serviço e aposentou-se por mérito.

Não sei se é a opinião de todos, mas, no que me tange, minha admiração por Joseph Ratzinger tem crescido a cada dia. É uma figura surpreendente.

Tem a bravura de um ariano aliada ao senso do real de um europeu do norte. Renunciou ao cargo, quebrando assim um tabu que já durava meio milênio. E, para coroar o feito, teve o destemor de declarar, em sua derradeira homilia, que, em certos momentos de seu pontificado, «o Senhor parecia dormir». Não é qualquer um que, na sua posição, ousaria proferir essas palavras.

Que tenha uma aposentadoria longa e tranquila! Esse personagem singular ganhou-a por mérito.

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Caso alguém tenha saltado esse capítulo, o Corriere della Sera traz o relato da última audiência pública de Bento XVI. Se você preferir, o Estadão online também dá a notícia.