Ói o rapa!

José Horta Manzano

O termo «camelô» vem do francês «camelot». Não há consenso sobre a origem da palavra. Deriva provavelmente do árabe «hamlat» ‒ novelo de lã. Em nossa língua, designa o indivíduo que vende bugigangas, objetos de baixo valor. É comércio de rua, muitas vezes exercido furtivamente e sem anuência da autoridade encarregada de regulamentar esse tipo de atividade.

Numa dos raros sambas que fugiam ao habitual clima de fossa, a cantora e compositora Dolores Duran descrevia, lá pelos anos 50, as agruras da profissão.

Camelô esse dono da calçada,
Na conversa bem jogada
Vende a quem não quer comprar.
Se tivesse tido a chance de uma escola,
Muita gente de cartola
Lhe daria seu lugar.

Ele é vesgo pois a profissão ensina
A ter um olho na esquina e outro olho no freguês.
Assim de vez em quando ele escapa
Gozando a cara do “rapa”
Que bobeou outra vez….

O «rapa» é o fiscal da prefeitura, aquele que vem conferir se o ambulante está agindo dentro das regras. Se não estiver nos conformes, pode perder a mercadoria. Nesse caso, o agente cata tudo, rapa de vez.

Rapar

Rapar

Estes dias, um certo senhor Batista, milionário pra lá de conhecido, foi apanhado pela PF e mandado para o xadrez. Maldosa, a mídia mostrou fotos do homem antes e depois da prisão. Nos tempos áureos, o referido senhor ostentava basta cabeleira; encarcerado, apareceu praticamente careca.

Há quem afirme que o antigo topete não passava de peruca. Outros asseguram que o cabelo foi cortado rentinho. A maioria ‒ pra não dizer todos ‒ informam que o cocuruto de senhor Batista foi raspado. Só de pensar, dá arrepio. É que, habituado a lidar com línguas em que rapar e raspar são coisas diferentes, sinto-me um tanto incomodado com a confusão que se faz, no Brasil, entre os dois verbos.

É verdade que os falantes são os donos da língua e fazem dela o que bem entendem. Ainda assim, acho uma pena ver palavras adequadas serem abandonadas em favor de outras menos apropriadas.

Raspar

Raspar

Rapar é catar tudo, geralmente num único movimento. Rapa-se a cabeça (caso do prisioneiro que acabo de mencionar), rapa-se a mercadoria do camelô desprevenido, rapa-se o saldo da caderneta de poupança. O crupiê rapa as fichas dos perdedores no tapete verde da roleta. Rapa-se barba e bigode.

Raspar é outra coisa. Raspa-se um objeto ou uma superfície, ou por acidente, ou na intenção de limpar ou de eliminar alguma impureza ou excrescência. Raspa-se fundo de panela. Raspa-se a pintura da parede velha antes de aplicar nova camada. Raspa-se o carro no muro. Raspa-se casca de limão e pele de cenoura.

Sabemos que nossas prisões são sucursais do inferno. Mas ainda não chegamos ao ponto de raspar a cabeça de recém-chegados, esfregando até o sangue. Crueldade tem limites.

Interligne 18cNota poliglota

Rapar fica assim:
Em inglês: to shave, to raze
Em francês: raser
Em alemão: rasieren, abreißen
Em italiano: radere
Em espanhol: afeitar, rapar
Em sueco: raka

Raspar fica assim:
Em inglês: to scrape, to scratch
Em francês: râcler, gratter
Em alemão: klauen, abkratzen
Em italiano: grattare
Em espanhol: rascar
Em sueco: skrapa

Os inocentes pelos pecadores

José Horta Manzano

O comércio tradicional, como conhecemos, está mudando rapidamente. O fenômeno é planetário. A internet tem influído na forma como se compra. Para os mais velhos, que conhecemos um tempo em que o único jeito era sair de casa e ir até a loja, pode parecer surpreendente. Mas para os jovens, que cresceram com um celular no bolso, a tendência de comprar à distância é cada dia mais intensa.

Pacote 2Todas as lojas ‒ de eletrodomésticos, de brinquedos, de móveis, de calçados ‒ se ressentem da evolução dos costumes. Conheço jovens que, nas semanas que antecedem o Natal, se sentam em frente ao computador e encomendam todos os presentes por via eletrônica. Compram tudo: para família, parentes, amigos e conhecidos. Não se levantam mais da cadeira nem pra comprar bugiganga. Os lojistas, naturalmente, constatam forte baixa em suas atividades.

Nada se pode fazer contra o fenômeno. Como se sabe, ninguém segura o progresso. No entanto, há um ponto em que as autoridades podem agir: é no gargalo das importações. Tudo o que chega de fora passa, em princípio, pela alfândega. Se as compras eletrônicas são incontroláveis, mercadoria encomendada no exterior pode ser monitorada.

Alfandega 2Para responder à grita dos comerciantes tradicionais, o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) propôs ao governo que passe a cobrar imposto sobre todas as encomendas vindas do exterior, incluindo presentes. É importante notar que, até o momento, importações de valor inferior a 50 dólares estavam isentas de taxação. Caso o ministério aceite a solicitação, qualquer agulha recebida do estrangeiro será taxada, ainda que o valor seja baixo.

A alegação dos comerciantes é de que muita encomenda estrangeira vem «disfarçada» de presente. O remetente se faz passar por pessoa física. Dessa maneira, burla a legislação, fazendo que a compra não passe pela alfândega brasileira. Compreendo que isso possa ocorrer. No entanto, cobrar taxa de importação por um presente de verdade, de valor inferior a 50 dólares, parece-me abusivo. É caso exemplar de punição coletiva.

Presente 1Pelas estimações do Itamaraty, cerca de três milhões de brasileiros vivem no exterior. Todos eles, vez por outra, mandam uma bobaginha à família, coisa pouca, nada que configure transação comercial. Não me parece justo que o destinatário ‒ muitas vezes gente de parcos recursos ‒ seja obrigado a pagar taxas e impostos pelo presente que recebe.

Como fazer a diferença entre presente e compra? Não cabe a mim dar a resposta. Nossas autoridades todo-poderosas que encontrem um meio ‒ são pagas para isso. O que não se deve é penalizar o infeliz que recebe uma lembrancinha mandada pelo filho ou pela irmã que lava chão numa casa de chá no Japão, na Alemanha ou nos EUA.

Mal comparando, fico aqui a pensar que o valor roubado por um só dos envolvidos na Lava a Jato é maior que os impostos que possam vir a ser coletados em muitos anos de cobrança de imposto sobre bugiganga.