Myrthes Suplicy Vieira (*)
Lá bem no fundo do meu baú de recordações estão aninhadas memórias que eu respeitosamente cataloguei sob o título de “Religiosidade”. Porém, como se poderá constatar a seguir, o respeito que pretendi imprimir ao conceber esse rótulo está restrito, confesso, ao desejo de demonstrar obediência às regras formais da igreja de meus pais.
A religiosidade sempre me pareceu uma manifestação transcendental menor quando comparada à espiritualidade. Muito cedo em minha vida intuí que as religiões não passam de formas mais ou menos acanhadas de grilagem do terreno espiritual. Cada denominação religiosa chama para si a glória de ser “a única” ou “a verdadeira”, aquela que, por razões históricas ou graças à virtude de seus profetas, está mais próxima de desvendar com fidelidade a vontade de Deus. Todas devotam-se com afinco às tarefas de expandir os limites territoriais de sua gleba e, ao mesmo tempo, opor-se com veemência às tentativas de expansão do território das demais. Eventuais contradições entre os dogmas e a prática religiosa dos fiéis me ensinaram também que ser praticante desta ou daquela não habilita ninguém a penetrar mais suavemente nos mistérios do sagrado.
Fui criada dentro da tradição católica. Meu pai, rato de igreja contumaz, jamais abriu mão da exigência de que todos os filhos assistissem à missa de domingo. Para ele, o horário ideal para que isso acontecesse era um pouco antes do almoço, de tal forma que pudéssemos nos manter em jejum e comungar sempre que possível. Minha mãe era forçada a permanecer em casa preparando o almoço. Embora a divisão me parecesse injusta e machista, nunca confrontei a necessidade dessa regra, uma vez que minha mãe parecia estar bem adaptada a ela.
Certa vez, a parábola apresentada durante a leitura do evangelho dizia respeito às “migalhas que caem da mesa dos poderosos” e alimentam os mais pobres. Francamente impressionada com aquele duro chamamento à responsabilidade social de todo cristão, eu saía feliz da igreja quando tropecei num mendigo com a mão estendida, pedindo algum dinheiro para mitigar sua fome. Envergonhada e culpada por já antever o prazer de consumir a farta refeição que minha mãe certamente havia preparado, olhei para meu pai na expectativa de que ele agisse de modo generoso. Incrédula, vi-o ignorar ostensivamente a presença incômoda daquele pedinte e nos arrastar de volta para casa. O choque que experimentei na ocasião foi suficiente para que eu, daquele dia em diante, vigiasse com mão de ferro a compatibilidade entre minhas crenças religiosas e minhas atitudes na vida.
Quando chegou minha vez de fazer a primeira comunhão, fui entregue aos cuidados de minha madrinha de batismo. Religiosa até a medula, essa mulher era um modelo vivo das virtudes cristãs. Esmerava-se na tarefa de zelar pela formação de novos padres, financiando seus estudos, comprando roupas e acessórios, aconselhando e visitando regularmente os noviços. Fazia tudo sempre com um sorriso nos lábios e era também gentil e tolerante para com minhas travessuras de criança. Só tinha um defeito: sentia-se autorizada a fazer promessas em meu nome, sem sequer me consultar.
Foi ela quem idealizou e confeccionou com as próprias mãos meu traje de primeira comunhão. Sem que eu soubesse, no entanto, ela havia prometido doar o vestido a uma criança pobre tão logo terminasse a cerimônia. Eu, toda orgulhosa, ainda me sentindo a pessoa mais pura e iluminada do universo, posava para uma foto na frente da igreja, quando ela se aproximou por trás e literalmente arrancou meu traje de primeira comunhão. Não posso ocultar que me senti duplamente desnudada: embora fisicamente eu vestisse outra roupa por debaixo, minha moldura religiosa me havia sido surrupiada e minha pequeneza interior, escancarada. Foi o segundo golpe preparado pelo destino a abalar minha convicção quanto à insuperável superioridade moral dos católicos.
Dali por diante, aprendi a recitar orações e textos religiosos sem ter consciência plena dos significados, a confessar pecados que eu sentia não ter cometido, a implorar por graças em momentos de aflição, me comprometendo a não voltar a pecar caso fosse atendida, mesmo sabendo que muito provavelmente não cumpriria a promessa.
A gota d’água que fez transbordar o copo da minha religiosidade de fachada aconteceu quando eu me preparava para enfrentar a última prova do vestibular. Tratava-se de um teste psicológico que definiria se eu possuía ou não condições emocionais para me profissionalizar na área. Como é fácil de imaginar, eu estava especialmente ansiosa naquele dia. Queria chegar cedo à faculdade e reservar um tempo para relaxar e me concentrar. Fiz seguidas tentativas de apressar meu pai: o dia dele só começava depois de um banho, do café da manhã e da leitura do jornal. Esperar que todo esse ritual fosse cumprido me parecia uma perda de tempo indesculpável. Pedi, gritei, chorei, protestei e implorei infinitas vezes. Lá pelas tantas, ele abriu a porta do quarto com violência e, sem nem mesmo tomar café, me arrastou furioso para o carro.
Durante todo o trajeto, eu e ele permanecemos em silêncio absoluto. O prédio da faculdade ficava ao lado de uma igreja. Ele estacionou o carro bem em frente a ela e, sem me dizer nada, me forçou a entrar e assistir a uma missa do começo ao fim. Não é preciso dizer que minha ansiedade e irritação atingiram o ápice ao longo da cerimônia. Quando ela terminou, eu me sentia psicologicamente destruída, sem condições mínimas de comprovar minha saúde mental. Não posso culpar exclusivamente essa sequência de eventos dramáticos por minha reprovação no teste. Jamais saberei se, em condições normais, eu teria recebido as bênçãos dos profissionais da área para meu noviciado em Psicologia.
A única coisa que sei com certeza é que esse dia foi decisivo para eu abandonar de vez o proselitismo religioso familiar e me abrir a toda sorte de novas experiências. Envolvi-me prazerosamente com a leitura das obras e com as práticas do espiritismo, do zen-budismo, da antroposofia (chamada por seu fundador de ciência espiritual) e do candomblé.
Qual foi o balanço final desse percurso religioso? Acredito que meu maior ganho foi ter sido capaz de desenvolver uma visão ecumênica da necessidade humana de buscar respostas para suas questões existenciais num plano que vai muito além do cérebro e da ciência.
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.