Baú de memórias ‒ 3

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Lá bem no fundo do meu baú de recordações estão aninhadas memórias que eu respeitosamente cataloguei sob o título de “Religiosidade”. Porém, como se poderá constatar a seguir, o respeito que pretendi imprimir ao conceber esse rótulo está restrito, confesso, ao desejo de demonstrar obediência às regras formais da igreja de meus pais.

A religiosidade sempre me pareceu uma manifestação transcendental menor quando comparada à espiritualidade. Muito cedo em minha vida intuí que as religiões não passam de formas mais ou menos acanhadas de grilagem do terreno espiritual. Cada denominação religiosa chama para si a glória de ser “a única” ou “a verdadeira”, aquela que, por razões históricas ou graças à virtude de seus profetas, está mais próxima de desvendar com fidelidade a vontade de Deus. Todas devotam-se com afinco às tarefas de expandir os limites territoriais de sua gleba e, ao mesmo tempo, opor-se com veemência às tentativas de expansão do território das demais. Eventuais contradições entre os dogmas e a prática religiosa dos fiéis me ensinaram também que ser praticante desta ou daquela não habilita ninguém a penetrar mais suavemente nos mistérios do sagrado.

luz-1Fui criada dentro da tradição católica. Meu pai, rato de igreja contumaz, jamais abriu mão da exigência de que todos os filhos assistissem à missa de domingo. Para ele, o horário ideal para que isso acontecesse era um pouco antes do almoço, de tal forma que pudéssemos nos manter em jejum e comungar sempre que possível. Minha mãe era forçada a permanecer em casa preparando o almoço. Embora a divisão me parecesse injusta e machista, nunca confrontei a necessidade dessa regra, uma vez que minha mãe parecia estar bem adaptada a ela.

Certa vez, a parábola apresentada durante a leitura do evangelho dizia respeito às “migalhas que caem da mesa dos poderosos” e alimentam os mais pobres. Francamente impressionada com aquele duro chamamento à responsabilidade social de todo cristão, eu saía feliz da igreja quando tropecei num mendigo com a mão estendida, pedindo algum dinheiro para mitigar sua fome. Envergonhada e culpada por já antever o prazer de consumir a farta refeição que minha mãe certamente havia preparado, olhei para meu pai na expectativa de que ele agisse de modo generoso. Incrédula, vi-o ignorar ostensivamente a presença incômoda daquele pedinte e nos arrastar de volta para casa. O choque que experimentei na ocasião foi suficiente para que eu, daquele dia em diante, vigiasse com mão de ferro a compatibilidade entre minhas crenças religiosas e minhas atitudes na vida.

Quando chegou minha vez de fazer a primeira comunhão, fui entregue aos cuidados de minha madrinha de batismo. Religiosa até a medula, essa mulher era um modelo vivo das virtudes cristãs. Esmerava-se na tarefa de zelar pela formação de novos padres, financiando seus estudos, comprando roupas e acessórios, aconselhando e visitando regularmente os noviços. Fazia tudo sempre com um sorriso nos lábios e era também gentil e tolerante para com minhas travessuras de criança. Só tinha um defeito: sentia-se autorizada a fazer promessas em meu nome, sem sequer me consultar.

religiao-7Foi ela quem idealizou e confeccionou com as próprias mãos meu traje de primeira comunhão. Sem que eu soubesse, no entanto, ela havia prometido doar o vestido a uma criança pobre tão logo terminasse a cerimônia. Eu, toda orgulhosa, ainda me sentindo a pessoa mais pura e iluminada do universo, posava para uma foto na frente da igreja, quando ela se aproximou por trás e literalmente arrancou meu traje de primeira comunhão. Não posso ocultar que me senti duplamente desnudada: embora fisicamente eu vestisse outra roupa por debaixo, minha moldura religiosa me havia sido surrupiada e minha pequeneza interior, escancarada. Foi o segundo golpe preparado pelo destino a abalar minha convicção quanto à insuperável superioridade moral dos católicos.

Dali por diante, aprendi a recitar orações e textos religiosos sem ter consciência plena dos significados, a confessar pecados que eu sentia não ter cometido, a implorar por graças em momentos de aflição, me comprometendo a não voltar a pecar caso fosse atendida, mesmo sabendo que muito provavelmente não cumpriria a promessa.

A gota d’água que fez transbordar o copo da minha religiosidade de fachada aconteceu quando eu me preparava para enfrentar a última prova do vestibular. Tratava-se de um teste psicológico que definiria se eu possuía ou não condições emocionais para me profissionalizar na área. Como é fácil de imaginar, eu estava especialmente ansiosa naquele dia. Queria chegar cedo à faculdade e reservar um tempo para relaxar e me concentrar. Fiz seguidas tentativas de apressar meu pai: o dia dele só começava depois de um banho, do café da manhã e da leitura do jornal. Esperar que todo esse ritual fosse cumprido me parecia uma perda de tempo indesculpável. Pedi, gritei, chorei, protestei e implorei infinitas vezes. Lá pelas tantas, ele abriu a porta do quarto com violência e, sem nem mesmo tomar café, me arrastou furioso para o carro.

luz-2Durante todo o trajeto, eu e ele permanecemos em silêncio absoluto. O prédio da faculdade ficava ao lado de uma igreja. Ele estacionou o carro bem em frente a ela e, sem me dizer nada, me forçou a entrar e assistir a uma missa do começo ao fim. Não é preciso dizer que minha ansiedade e irritação atingiram o ápice ao longo da cerimônia. Quando ela terminou, eu me sentia psicologicamente destruída, sem condições mínimas de comprovar minha saúde mental. Não posso culpar exclusivamente essa sequência de eventos dramáticos por minha reprovação no teste. Jamais saberei se, em condições normais, eu teria recebido as bênçãos dos profissionais da área para meu noviciado em Psicologia.

A única coisa que sei com certeza é que esse dia foi decisivo para eu abandonar de vez o proselitismo religioso familiar e me abrir a toda sorte de novas experiências. Envolvi-me prazerosamente com a leitura das obras e com as práticas do espiritismo, do zen-budismo, da antroposofia (chamada por seu fundador de ciência espiritual) e do candomblé.

Qual foi o balanço final desse percurso religioso? Acredito que meu maior ganho foi ter sido capaz de desenvolver uma visão ecumênica da necessidade humana de buscar respostas para suas questões existenciais num plano que vai muito além do cérebro e da ciência.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Quebrando hábitos

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Desde que me conheço por gente, sempre senti a necessidade de permanência. Não sei lidar bem com nada que me traga a sensação do efêmero, do transitório. A angústia que toma conta de mim quando algo muda ou acaba é tão devastadora que me fez desenvolver ao longo da vida um apego doentio pela rotina.

Minha ansiedade aflora desde quando ocorre o afastamento ou morte de pessoas queridas até pequenas perturbações do dia a dia, como uma simples mudança na mão de direção de uma rua que costumo utilizar. Se sei que tenho um compromisso agendado para amanhã, revejo instintivamente as tarefas que vão ser afetadas e me programo para realizá-las em outra ordem, outra hora ou outro dia. Se o evento é inesperado, primeiro entro em pânico e, quando mais tarde consigo voltar a respirar, aciono mentalmente todas as pessoas que poderiam me prestar ajuda, mesmo que seja na forma de aconselhamento.

calendario-1Hábitos são armadilhas, eu sei, mas me é sempre muito difícil resistir à doce ilusão de conforto e proteção que eles trazem. Como me alertava uma amiga consultora organizacional, a mente burocrática está assentada sobre dois pilares: a necessidade de controle e previsibilidade. Num cenário de crise, é inevitável que esses sustentáculos de segurança sejam abalados. Sem liberdade interna, não há condições para buscar soluções criativas.

Ultimamente venho sendo desafiada pelo destino, como em nenhuma outra fase de minha vida, a criar jogo de cintura. Mesmo ‘à contre-coeur’, praticamente todos os dias vejo-me forçada a adaptar meu corpo e minha cabeça a situações novas, criadas tanto pela deterioração das minhas condições físicas e financeiras quanto pelas do ambiente em que vivo. Para piorar, o desconforto, na idade em que estou, é um companheiro para lá de irritante, nada leal.

Relógio solarAcontece que, sem ter consciência plena do que estava fazendo, acostumei também minhas cachorras a conviverem com um rígido esquema de vida. Elas têm hora certa para acordar e para dormir, para comer, para passear e até para brincar. Têm dia certo para tomar banho. Têm local certo para desenvolver cada uma dessas atividades. A cada vez que elas tentam burlar minha “sistemática”, como dizem meus parentes mineiros, repito qual papagaio: “agora, não”, “espera um pouco”, “me deixa em paz”.

Pois bem, o preço dessa conduta insana me foi cobrado há dois dias. Minha irmã, condoída com o estado deplorável de meu sofá, resolveu me dar de presente um dos dela, que estava fora de uso, mas ainda em boas condições. Para acomodá-lo, fui obrigada a rearranjar todos os móveis da sala, dado que suas dimensões eram bastante diferentes.

A configuração da sala não era alterada havia mais de uma década, portanto, minhas cachorras nunca haviam passado por uma experiência similar. A mais nova estava habituada a dormir num canto entre o sofá e a parede, debaixo de uma mesinha lateral. A mais velha costumava se estender na frente do sofá, muitas vezes se aninhando embaixo das minhas pernas e dificultando minha locomoção. Com a mudança do layout, o espaço de “dormitório” da mais nova acabou sendo eliminado e o de relaxamento da mais velha, comprometido.

calendario-2Para meu desespero, tão logo terminei de colocar tudo no lugar, as duas entraram em um estado inacreditável de frenesi e ansiedade. Caminhavam sem direção e sem descanso pelo apartamento todo. Recusaram-se a comer, tanto na hora do almoço quanto na do jantar. O incômodo da mais nova era tão evidente que ela chegou a rejeitar até mesmo os petiscos pelos quais, antes, daria alegremente a vida. Meu descontrole emocional passou a alimentar o delas e vice-versa.

Foi então que me lembrei de um exercício recomendado por meu médico antroposófico para quebrar rapidamente hábitos arraigados. É um método engenhoso, mas simples e relativamente indolor. Consiste basicamente na criação do “dia do contrário”. Nesse dia, que deve acontecer pelo menos uma vez por mês, é preciso fazer tudo diferente do costumeiro: ensaboar-se numa sequência distinta, abrir portas, escovar os dentes e o cabelo com a mão errada, vestir-se de maneira não-usual, adotar um novo itinerário para chegar ao trabalho, alimentar-se com ingredientes alternativos, etc. Com isso, a sensação de aprisionamento pode finalmente chegar à consciência e determinar os passos que ainda serão necessários para se livrar de outros condicionamentos.

Resolvi testar a eficácia do método com minhas cachorras. No dia seguinte, levei-as a passear pela manhã, quando o habitual era o passeio à tarde. Dei comida algumas horas depois do esquema tradicional para que a fome as induzisse a aceitar de novo a comida. Espalhei iogurte por cima da ração seca para que o cheiro, o sabor e a textura dos grãos fossem alterados. Troquei os petiscos. Coloquei o sofá antigo em outra posição na sala, atravancando a passagem que elas estavam acostumadas a usar. Mudei minha rotina de trabalho para dar atenção e brincar com elas em horários incomuns – e rezei para que a estratégia funcionasse logo.

Relógio moleNo começo da noite, exausta, me dei conta de que havia uma quietude estranha no ambiente. Naquele horário, as duas ainda estariam ativas, brincando uma com a outra ou latindo para chamar minha atenção. Curiosa, fui pé ante pé até a sala e me deparei com uma cena enternecedora: a cachorra mais nova dormitava relaxadamente entre os dois sofás e a mais velha dormia a sono solto estendida na frente do novo sofá. Não tenho palavras para descrever a alegria e o alívio que experimentei. Só me ocorria saborear demoradamente essa recompensa sem igual para tantos eventos paradoxais do dia.

Posso informar a todos que já estou novamente me sentindo apta a pontificar a respeito do dom precioso que é ser capaz de flexibilizar o próprio credo comportamental. Isso sem falar da sublime leveza que se experimenta ao abrir mão das zonas de conforto. Recomendo a experiência a todos de “alma pequena” como eu.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Limbo ou… o insustentável peso de ser brasileira

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há mais de uma semana mergulhei de cabeça num estado anímico a que dou o nome de “limbo” e que, infelizmente, me é para lá de familiar.

Para não iniciados, trata-se do conceito católico de “lugar fora dos limites do céu, onde se vive de forma esquecida, longe da beatitude”. Embora não deva ser confundido com o purgatório, já que ao limbo estão destinados os justos e os inocentes que, por falta de batismo, guardam o pecado original, minha sensação de desamparo parece a de um pecador emperrado a meio caminho entre céu e inferno.

Z-Unknown 1Fora do contexto religioso, limbo rima com ostracismo e esquecimento. Em qualquer contexto, é fácil imaginar o desconforto e a tortura psicológica de se sentir num lugar em que nada ata nem desata.

Minha experiência de limbo traduz-se pela sensação de estar à margem da vida e de olhar ao redor com indiferença e alienação. Durante as crises, nada me interessa. Os acontecimentos dizem respeito a outrem, não encontram eco em mim. Falta-me vontade para tudo, desde levantar pela manhã até decidir se vou tomar banho ou não. Meus pensamentos vagueiam sem destino. Não sinto desejo de me comunicar com ninguém. Na boca, um gosto ruim. No corpo, uma sensação difusa de intoxicação, como se tivesse bebido ou comido demais. Emocionalmente, só um ir e vir doentio de sentimentos e pensamentos.

Torturante é querer escapar e não saber como. É energia física, mental e espiritual estagnada. Não há raiva nem revolta nem indignação. Apenas tristeza flácida, filha dileta da impotência e do cansaço. Sobram tédio, indisposição e má vontade. Falta fio terra, portanto, não há descarga.

Z-Unknown 2Quando eu me tratava com a medicina antroposófica, bastava ligar para o médico e dizer: “Estou no limbo”. Ele sabia decodificar minha queixa e dar o tratamento. “O fígado é o órgão da vontade”, explicava, “É preciso eliminar as toxinas acumuladas e dar tempo para a regeneração. Fígado sobrecarregado acaba interferindo no funcionamento da vesícula, a bile se acumula e daí advém a melancolia”. Fazia sentido e, na prática, funcionava.

Agora que não disponho mais daquelas sábias orientações, assumo sozinha o papel de detetive. Onde foi que errei a mão, exagerei e acabei sobrecarregando o fígado? Sei que não me empanturrei. Não bebo. Será que abusei do fumo? Ou, quem sabe, seria acúmulo de emoções tóxicas?

Z-Unknown 3De repente, faz-se luz: é isso, sofri uma indigestão política. Se antes já era duro poupar ao fígado explosões emocionais, imagine os danos que lhe causei ao degustar tanto veneno político. Relembro as longas horas acompanhando as votações no STF e no Congresso, as notícias eletrizantes sobre o mais recente escândalo de corrupção, as imagens acachapantes dos movimentos de rua, as manifestações de ódio nas redes sociais, a angustiante espera pelo desenlace. Depois, a vergonha de ver minha pátria transformada em mera republiqueta de bananas, a sensação surreal de estar me defendendo de transgressões que não pratiquei ou de estar defendendo o indefensável.

Aos poucos, as peças do quebra-cabeça vão se encaixando. É claro, eu estava viciada na adrenalina do desejo de demonstrar intelecto superior e análise equilibrada, mas acabei saturada. Daí o distanciamento afetivo compulsório, a obnubilação mental, a congestão psíquica.

Z-Unknown 4A revelação finalmente faz mover alguma coisa lá dentro. A dificuldade de exprimir minha provação acaba por me lembrar de outra perda: o afastamento do meu anjo. Sem a ajuda dele, titubeio e sou forçada a reescrever cada pensamento. Em meio ao cipoal de becos sem saída em que me enfio, percebo que a ausência dele pode até ser benção disfarçada. Talvez tenha sido apenas estratégia para me animar a dar o primeiro passo.

Ainda estou em processo de regeneração, ainda caminho em terreno pantanoso. De qualquer maneira, sinto que a chuva, o friozinho e os tons pastel da natureza podem me ajudar a concluir esta passagem pelo sótão de minha própria inutilidade. Vou me enrodilhar como gato e aprender a espantar os cães que ousarem ladrar enquanto a caravana passa.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Voltando ao assunto…

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Remedio 1Acabo de ler a notícia de que a presidente da República sancionou lei que libera a produção e a venda da fosfoetanolamina. Se estou feliz? Não, não estou. Ao contrário, estou assustada com as possíveis consequências do açodamento com que ela foi liberada e quero explicar meus motivos.

Outro dia, um jornalista escreveu artigo defendendo a ideia de que é possível estar certo pelas razões erradas. Ele se referia ao cenário político brasileiro e à incrível debandada de parlamentares que compunham a base de apoio da presidente. Ele estava certo, suponho, mas não é a isso que me refiro hoje.

Na reportagem que informava a liberação da chamada “pílula do câncer”, o autor afirma com todas as letras que, “apesar de estudos científicos não terem apontado nenhuma eficácia dessa substância”, a Casa Civil teria recomendado a liberação “para evitar qualquer ameaça de desgaste (e de perda de votos) às vésperas da votação do impeachment na Câmara”.

Farmacia 2Infelizmente, é assim que nosso país funciona. Tanto os congressistas, que aprovaram apressadamente a liberação da droga sem consulta aos órgãos médicos competentes, quanto o executivo federal operaram ‒ tudo leva a crer ‒ fazendo cortesia com chapéu alheio. Como afirma um oncologista do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer ouvido na reportagem, a pílula “não deve ser assunto político”. Assino embaixo. Os pacientes de câncer e seus familiares não merecem que se lide irrefletidamente com sua saúde e sua qualidade de vida.

Aonde quero chegar? Quero apenas refletir sobre os meandros burocráticos que cerceiam a pesquisa médica brasileira e, nesse contexto, analisar mais em profundidade o papel da Anvisa. Que não nos faltam cientistas de alto padrão é fato sabido por todos. Que instituições de ponta no ensino e na pesquisa médica como a USP e o Instituto Oswaldo Cruz alcançaram reconhecimento internacional por sua qualidade, também. Onde está então o problema?

Posso estar enganada, mas me parece que a Vigilância Sanitária brasileira entende como missão principal a de reinventar a roda todos os dias. Basta lançar um olhar desapaixonado para o que aconteceu há alguns meses com o canabidiol. Apesar de vários estudos científicos internacionais terem apontado a importância dessa droga no controle da epilepsia e outros transtornos neurológicos, a Anvisa não se deu por vencida por meses e anos a fio, permitindo que médicos que o receitassem e pacientes que o importassem continuassem sob ameaça de prisão por tráfico de drogas. Depois, acuada diante de tantas evidências de sua eficácia, foi liberando aos poucos a importação da droga, pretendendo fazer crer que pesquisas médicas nacionais em andamento estavam chegando aos mesmos resultados.

Injeção 1Há alguns anos, a Anvisa já havia se lançado impávida à tarefa de disciplinar a comercialização de medicamentos homeopáticos. Impôs aos laboratórios a anexação de bula com indicação de uso de cada substância, dosagem, efeitos colaterais, etc., fazendo de conta que desconhecia o fato de que um mesmo medicamento homeopático pode ser – e é – usado há séculos para diversas doenças, sem relação umas com as outras. A critério do médico, é claro.

Sou leiga no assunto e não posso me pretender imparcial diante dessa iniciativa, já que na época eu era paciente da medicina antroposófica e minha cachorra estava sendo tratada com sucesso com uma injeção contra o câncer desenvolvida por um laboratório suíço e comercializada havia mais de duas décadas no Brasil (eu mesma já a havia tomado, com igual sucesso). Em decorrência da postura irredutível da Anvisa, a tal injeção foi retirada de circulação e sua importação proibida, levando ao desespero e desamparo milhares de doentes de câncer da noite para o dia. Não sei o que aconteceu com os humanos. Minha cachorra morreu.

Voltando à fosfoetanolamina, suspeito que, se o químico que desenvolveu a pílula há mais de 20 anos fosse um pesquisador estrangeiro, a Anvisa já teria se interessado em promover por conta própria estudos mais aprofundados. Acredito também que a USP teria pensado duas vezes antes de tratar um profissional formado pela própria instituição de curandeiro e determinar a lacração do laboratório que produzia a droga.

Hospital 1Isso sem considerar que eventual comprovação da eficácia da pílula do câncer poderia colocar em polvorosa poderosas indústrias farmacêuticas multinacionais, ameaçadas de perder a hegemonia no combate ao câncer e seus fantásticos lucros. E pensar que o tal químico tupiniquim, além de ter feito uma descoberta de fundo de quintal, distribuía o medicamento gratuitamente, por acreditar cegamente no próprio trabalho.

Não pretendo insinuar que todos os cientistas, pesquisadores e médicos que se colocaram acidamente contra a fosfoetanolamina tenham se deixado abater pela pressão de grupos internacionais. Mas que, inadvertidamente, ajudaram a corroborar a tese de que sofremos da síndrome de vira-latas, lá isso está claro. A começar pela constatação de que havia menos fosfoetanolamina nas pílulas do que o alardeado e a presença de “resíduos” de outras substâncias. Ora, doutores, por que não investigar cientificamente a atuação da substância pura nas células malignas e determinar a dosagem ideal antes de afirmar que a droga não faz nenhum efeito ou tem menor eficácia que a de outras drogas já comercializadas?

Remedio 2Na sequência, me causou espécie saber que especialistas brasileiros tenham se deixado envolver em intensa polêmica a respeito da distribuição da droga como suplemento alimentar. Não ‒ diziam irados os opositores ‒ estaríamos tentando cobrir o sol com peneira, o produto continuaria a ser usado como medicamento. Afinal, doutores, desculpem a petulância de perguntar: que males (além da automedicação) poderiam advir se isso acontecesse? A fosfoetanolamina apresenta ou não efeitos colaterais indesejados? É tóxica para o organismo, interage e atrapalha a ação de outras substâncias anticancerígenas?

A resposta? Ninguém sabe, até mesmo porque a pesquisa da fosfoetanolamina ainda não avançou para a fase de testes clínicos em humanos…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A era DDD: demônios em dose dupla

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Rudolf SteinerDe todas as parábolas que já me contaram um dia, uma me despertou interesse especial. Segundo a Antroposofia, definida por seu criador Rudof Steiner como ‘ciência espiritual’ que tem ramificações nos campos da medicina, educação e agricultura, a humanidade é acossada continuamente por dois demônios: Árimã e Satã.

Esses dois seres ardilosos agiriam em estreita parceria, ainda que, superficialmente, possam parecer inimigos. Numa espécie de mecanismo de pêndulo, eles se alternam para atrair o homem para suas respectivas áreas de domínio. Satã, por seu lado, prometendo o poder material e os prazeres carnais. Árimã, por outro, prometendo o poder espiritual e os prazeres transcendentais. Dessa forma, quando a pessoa respira aliviada, acreditando que escapou das garras de um deles, já caiu sem o perceber na esfera de influência do outro.

Polarite 6Steiner conceitua o homem como um ser que tem a cabeça no céu e os pés firmemente plantados no inferno. Misto de criatura escrava dos desejos animais e, ao mesmo tempo, eterno aspirante à iluminação e à bem-aventurança. Sem dúvida, uma comovente analogia da dupla natureza humana, capaz de aprofundar a compreensão a respeito de nosso funcionamento psíquico.

Polarite 2Enquanto Satã age para o homem afundar cada vez mais no plano material e extrair seu gozo da conquista de poder, dinheiro e sexo, Árimã o convida a asceticamente virar as costas para os prazeres mundanos, purificar o corpo para encontrar paz interior e poder experimentar, então, as glórias espirituais. Sugado com força igual por esses dois ímãs, o homem teria como missão de vida a tarefa de manter-se equidistante – daí sua postura vertical, ao contrário da dos animais – tentando buscar o equilíbrio possível entre todas essas pulsões.

Polarite 5Essa história voltou com força à minha cabeça quando eu tentava encontrar um ponto de apoio intelectual para entender recentes acontecimentos em nosso país e no mundo. Corrupção, descalabro moral, intolerância social, religiosa e política, desastres ambientais, terrorismo, guerras separatistas, lutas fratricidas, disseminação do egocentrismo, miopia no trato das diferenças, morte do altruísmo – a lista é interminável e permite supor que esta já é, sem dúvida, uma das eras mais prolíficas para a dupla demoníaca em toda a história da humanidade.

Polarite 4Totalitárias de ambos os lados, as facções extremistas que atuam ao lado de Árimã perseguem com interminável voracidade assassina tudo o que representa movimento de expansão, contato, acolhimento, alegria, prazer, confraternização, conciliação ou coexistência pacífica neste plano, já que não toleram o prazer que a proximidade de corpos provoca. Já as que se aliaram a Satã atormentam incansavelmente a mente dos que aspiram secretamente a se regalar num festival orgástico de acumulação de riquezas e tráfico de influência, mesmo que isso seja conseguido às custas do sangue, suor e lágrimas dos demais à sua volta.

Polarite 3Difícil dizer qual das duas pulsões é mais cruel e danosa para o psiquismo humano. Para mim, o que encanta nessa parábola é a revelação da parceria não explicitada entre os dois polos. Ao contrário do que sustentam todas as demais vertentes religiosas, esta afirma com todas as letras que não é só o desejo do gozo material que é diabólico. Também a aspiração de posse de bens espirituais pode ser vista como demoníaca, se o foco do indivíduo está no ego e não no ‘self’ – ou, em outras palavras, se ele busca o céu só para si e não para toda a humanidade.

A mão que mata por negar comida e água é a mesma que aniquila negando liberdade de expressão e de autoafirmação. A cabeça que engendra planos mirabolantes para destruir corpos é a mesma que não se constrange em destruir almas.

Polarite 1Controle, subjugação e domínio absoluto sobre o corpo, os pensamentos, os sentimentos e o espírito do outro são as aspirações-chave não só do terrorista que se explode em via pública, mas também do homem que violenta e mata a mulher amada, do adulto que seduz sexualmente crianças, dos jovens que praticam bullying contra colegas, do cidadão que agride moral ou fisicamente pessoas de outras raças, estratos sociais, crenças ou orientação sexual, do político que desvia verbas públicas destinadas ao atendimento da população carente, do religioso que apedreja e desqualifica os praticantes de outra fé, do homem que envenena os cursos de água, polui o ar e a terra e destrói florestas.

Assim caminha a humanidade nessa nossa era DDD….

Interligne 18h

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Envelhecendo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Estou desolada. Diante do espelho, constato a celeridade com que o envelhecimento toma conta de mim em todos os sentidos. O que me incomoda não é tanto a decadência física mas principalmente aquilo que chamo de ‘perda de esperança’. Sinto que sobrevivo não por escolha mas por um simples compromisso religioso de cumprir tabela. Como se colocar ativamente um ponto final naquilo que não faz mais sentido pessoal fosse uma transgressão indesculpável perante a divindade. Contraditório, não é mesmo?

Computador 2Explico melhor essa sensação de obsolescência. Consultando o dicionário, é possível ver que, dentro de um contexto econômico, obsolescência significa “diminuição da vida útil e do valor de um bem devido não a desgaste causado pelo uso mas ao progresso técnico ou ao surgimento de produtos novos”, como informa o Houaiss. É precisamente o que sinto. Perdi todo meu valor de mercado no mundo profissional e grande parte dele na família e no meu círculo de amizades.

Submergi um tanto a contragosto no tsunami do desenvolvimento de novas tecnologias e minha recusa em utilizar as redes sociais para me comunicar foi o que bastou para decretar minha exclusão da vida prática. Não consigo lidar decentemente com tantos gadgets eletrônicos. É como se minha habilidade para mexer com essas maquininhas fosse comparável à de um hipopótamo tentando aprender passos de dança e minha inteligência estivesse próxima à de um ouriço. Novos aparelhos cada vez menores e teclados cada vez mais curtos e estreitos me parecem pensados para o uso de crianças ou para os jovens que aprenderam a digitar em seus celulares utilizando só a ponta dos dedos, só um dedo de cada vez e só uma das mãos. O mouse dos notebooks faz com que eu passe os dias praguejando contra minha canhotice e consequente falta de destreza.

by Salvatore Malorgio

by Salvatore Malorgio

O tempo, que antes me era tão precioso, perdeu agora todo o seu significado. Para mim, tanto faz se hoje é segunda-feira ou quinta, se o mês é maio ou agosto, se o ano é 1997 ou 2015. Os dias passam burocraticamente, sem deixar rastros na minha lembrança. Em que ano mesmo aconteceu a morte do meu pai? E o daquela amiga querida? Não importa. Tudo o que sobrou foi a memória dolorida do espanto, a inconformidade com a perda, a revolta contra o destino e, mais tarde, a pura e simples apatia.

Quando acordo, compilo mentalmente as tarefas que terei de executar ao longo do dia e depois as vou cumprindo mecanicamente. E, se penso no dia de amanhã, tudo o que me ocorre fazer é tentar lembrar que coisas vão ter de ser feitas nas próximas 24 horas. Tenho de ir ao banco pagar uma conta? Preciso passar na farmácia para comprar aquele remédio que está acabando? Não posso esquecer de telefonar para…

by Lena Karpinsky

by Lena Karpinsky

Olho-me ao espelho e observo condoída a desesperança instalada em meus olhos. Examino horrorizada as mudanças em meu corpo. Cadê as carnes que até uns cinco anos atrás enchiam confortavelmente estas roupas? Já dá para notar o acabamento em plissê na parte interna de meus braços e coxas e os músculos de minha barriga se espraiando num belo godê. O que foi feito do brilho dos meus cabelos e daquela luzinha que insistia em aparecer no fundo dos meus olhos? Por onde anda a curiosidade que sempre foi meu motor na vida? Pareço ridícula, tenho a figura de um espantalho que engoliu um melão e carrega nas costas, encurvado para a frente, um feixe de algodão. Estou literalmente minguando.

A vida de aposentada ajuda a acrescentar requintes de crueldade a esse quadro por si só dantesco. Quando vou ao supermercado, pego os ítens que me davam prazer consumir, fico assustada com os preços e acabo descartando-os quando chego ao caixa. Quando me alimento, já não vejo a comida com olhos de prazer ou de promessa de sabor e saúde, mas só com olhos de quantidade. Será que essa comida vai dar para chegar até o fim do mês? Se eu não comer isto aqui, vai estragar em dois dias. Isto é pouco ou muito para matar minha fome? Por falar nisso, qual é o tamanho real da minha fome? Consulto meu estômago e concluo sempre que dá para postergar por mais algumas horas a decisão de comer. Só volto ao assunto quando me sobe pelas entranhas aquela onda de enjoo e desconforto por tantos cigarros fumados inconscientemente.

by Edvard Munch

by Edvard Munch

Cinema, teatro, literatura e outras atividades culturais? Não, não posso mais pagar por esses afagos à minha alma. Além disso, só de pensar em me vestir, sair de casa, enfrentar o trânsito caótico desta cidade e pegar fila, minha disposição se esvai em segundos. Almoço com amigos? Não dá, enfrento sempre sérias restrições financeiras para encontrar o local certo, isso sem falar do meu vegetarianismo e da minha dificuldade de mastigar coisas muito duras. Uma saída à noite para uma conversa acompanhada por um drinque? Não posso, sou diabética.

Meu peito também já não vibra com praticamente nenhuma emoção. Talvez me tenha sobrado apenas a indignação derivada da leitura dos escândalos políticos ou dos tenebrosos casos policiais de violência. As emoções ditas positivas me ocorrem, sim, de quando em vez, mas parecem vir sempre filtradas. São tímidas, acanhadas, sempre em tom pastel. Às vezes experimento uma sensação de leveza ou de bem estar, principalmente quando uma brisa bate de leve em meu rosto ou quando me sento ao sol e fecho os olhos. Outras vezes me enterneço vendo minhas cachorras desfrutando de sua doce intimidade, chamando uma à outra para novas brincadeiras. Mas é só, nenhum turbilhão emocional nem num sentido nem em outro.

Meu cérebro é o último bastião. Continua teimosamente produzindo pensamentos, analisa, investiga, questiona, tira conclusões, revisa e coloca tudo em suspenso até um novo pensamento abrir espaço à força dentro dele. Tenho opiniões, sem dúvida, mas na maior parte das vezes sem serventia alguma. Estou cansada de apontar ranzinzamente o dedo contra as mazelas do mundo contemporâneo. Decididamente não tenho mais espaço nesse mundo que se transformou em um festival de selves e de selfies.

by Abby Schmearer

by Sylvia Baldeva

 

Sei que o que me falta neste momento é tolerância para acolher o novo, jogo de cintura para aprender coisas novas, alegria para remover os obstáculos e vontade de recomeçar. Não importa mais o que penso, como penso e quando penso. É só um velho hábito, uma boca torta pelo uso tão frequente desse cachimbo.

Na Antroposofia se diz que a energia vital entra pelos pés todas as manhãs e sai pela cabeça ao final do dia. Deve ser por isso que, ao longo da vida de uma pessoa, os orgãos dos sentidos vão desinvestindo aos poucos na realidade externa e o mundo interior vai ocupando lentamente os espaços vazios. É isso, a única realidade que me diz respeito é a extracorpórea. Sou um fantasma vagando desinteressado e sem direção por entre coisas e gentes.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.