Tu não te manca?

by Laerte Coutinho (1951-), desenhista paulista
via Folha de S. Paulo

José Horta Manzano

Chega a ser irritante a insistência do ex-presidente Bolsonaro em fazer de conta que ainda é o que já deixou de ser. De fato, um indivíduo que foi apeado do poder há dois anos e que é hoje inelegível e indiciado em um balaio de crimes deixou de ser um cidadão comum, como a maioria de seus concidadãos. Ele é hoje uma pessoa suspeita de ter praticado crimes e tem, portanto, contas a prestar à justiça.

Você e eu não vivemos sob “medidas cautelares” impostas pela justiça do país. Não temos de bater o ponto na delegacia; não precisamos pedir licença para visitar quem nos dê na telha; não estamos de passaporte retido pelas autoridades, impedidos de pôr o pé fora do país. Bolsonaro não pode dizer o mesmo. Suas liberdades estão cerceadas. É um indivíduo a um passo da infâmia de tornar-se réu da justiça criminal.

Apesar disso, ele volta e meia dá uma de joão sem braço e manda seus advogados solicitarem ao STF favores aos quais não faz jus. Sua proeza mais recente foi pleitear lhe concedessem autorização especial para reaver o passaporte e partir para uns dias de vilegiatura em Washington (EUA). A-do-ra-ria prestigiar(?) os festejos da tomada de posse de Donald Trump como presidente do país. Se conseguisse tirar uma selfie ao lado do empossado, então, seria a glória, a consagração.

Ó Bolsonaro, tu não te manca não, cara? – é assim que a gente costumava arrematar uma ousadia desse calibre. É impressionante como certos caras se consideram importantes como se fossem figurinha carimbada, enquanto não passam de reles figurinha rasgada. Não ornam mais nem álbum de criança.

Por que, raios, a justiça concederia favores especiais a um sujeito que passou os quatro anos de seu mandato a invectivar as instituições da república, o Judiciário em particular?

Que ele curta o empossamento de seu amigo Donald pela tevê, como todo o mundo, sentado no sofá da sala. Que aproveite, porque, quando estiver em cana, talvez nem direito a televisão lhe concedam.

A gravata

José Horta Manzano

Madame Da Silva esteve na Europa para uma vilegiatura de 5 dias em Portugal, mais um dia de lambuja na Espanha. Enquanto o marido tratava com gente séria e soltava alguma bobagem (mas só de vez em quando), Madame não tinha muito que fazer.

Um dia, levantou da cama decidida. Convocou um batalhão de seguranças e dirigiu-se a uma franquia da rede Ermenegildo Zegna, aquela loja de adereços masculinos que marca presença nos bons centros comerciais (=shopping centers) ao redor do planeta.

Lá encantou-se por um modelito de gravata rajada azul e branco – uma graça! Não ficou claro se Madame perguntou o preço. Mandou embalar e voltou para o hotel com a compra debaixo do braço.

Jornalistas curiosos foram atrás de informações. E descobriram que o mimo adquirido por Madame custou a bagatela de 195 euros (cerca de R$ 1.100).

Ok, concordo que cada um gasta seu dinheiro como quer. Se Madame Da Silva não se importa de investir um patrimônio numa gravatinha de grife, o problema devia ser dela, não nosso.

Só que tem uma coisa. Se o distinto leitor entrar numa boutique Zegna e comprar uma gravata de mais de mil reais, a notícia não vai sair nos jornais. Agora, quando se é a primeira-dama do Brasil, é diferente. Todo gesto, toda palavra, todo ato é escrutado, analisado, pesado, medido e… publicado. Assim como o presidente deveria tomar mais cuidado com suas declarações, a primeira-dama deveria prestar mais atenção a certos gastos ostentatórios.

Em primeiro lugar, há o perigo de muita gente pensar que a compra foi debitada no cartão corporativo, ou seja, que o gasto foi pra conta do povão. Essa ideia é evidentemente falsa. Mas pega mal.

Em seguida, tem o alcance do gesto. Madame Da Silva, que é socióloga, está sem dúvida sabendo que 33 milhões de conterrâneos passam fome. Esse contingente foi confirmado por seu marido em fala recente. Convenhamos: quem compartilha com o marido o topo da escala de poder não deveria dar demonstração pública de esbanjar dinheiro num país em que um em cada sete habitantes sofre cronicamente o flagelo da fome. Pega muito mal.

De uma próxima vez, não custa encarregar um assessor de ir até a loja e trazer a caixinha. A hipocrisia será a mesma, mas ninguém vai ficar sabendo.

A doutora na Finlândia

José Horta Manzano

A Finlândia me é simpática. Não fosse por outro motivo, foi ali que passei meu exame de motorista e recebi minha primeira carteira. Já faz muito tempo, mas guardo o documento de lembrança até hoje ‒ uma cadernetinha, como se usava na época, com páginas hoje amarelecidas. Os dados eram todos inscritos à mão numa língua que poucos conseguem ler. Bons tempos.

Doutora Dilma está estes dias na Finlândia. Ninguém sabe direito o que madame estará fazendo por lá além de desancar com nossas instituições e denegrir ainda mais a imagem do país. Por falar nisso, ninguém sabe ao certo o que a doutora tem feito estes últimos vinte anos. Além da saudação à mandioca e ao ET de Varginha, a memória coletiva nacional não guardou lembranças imperecíveis de sua passagem pelas altas esferas.

Em vista da viagem, ela solicitou ao Planalto que lhe fossem concedidos três assessores ‒ pagos com nosso dinheiro, naturalmente. O pedido foi acolhido. Assim, estamos nós todos financiando o alegre giro turístico da antiga presidente e de seus esforçados companheiros. Segundo a revista Época, ela pretende espichar a vilegiatura por 12 dias, entre Finlândia e Rússia. Rancorosa, continuará insistindo, em palestras diversas, na demolição das instituições do país.

Ao final do passeio, madame terá perdido mais uma vez. Não conseguirá ser reintegrada na presidência nem terá convencido finlandeses ou russos, quem têm outras fontes de informação além da fala confusa da palestrante. Aliás, nós outros, na qualidade de financiadores do giro, também teremos perdido. Pagaremos para dar à doutora a ocasião de admirar as cores deste começo de outono naquela região de floresta boreal.

Já na primeira palestra, proferida na Universidade de Helsinque, madame asseverou que o Lula estará na eleição de 2018 «vivo ou morto». Taí afirmação que, em matéria de surrealismo, rivaliza com a saudação à mandioca. Disse mais a ilustre palestrante. Assegurou que o Lula «sempre estará presente porque ele não é mais uma pessoa: já é um projeto».

Quem não há de ter apreciado é o próprio Lula. Ao dizer que o demiurgo, mesmo morto, pode participar de uma eleição por já se ter transformado em projeto, a doutora não faz um favor a seu criador. Admite, nas entrelinhas, que, ainda que esteja detrás das grades acolhedoras de Curitiba, nosso guia participará ‒ em espírito ‒ da eleição. Com amigos assim, o ex-presidente não precisa de inimigos.

Resumo da ópera: segundo a doutora, o projeto lulista continuará assombrando a próxima eleição. A candidatura do torneiro mecânico, na ótica de madame, não é indispensável. Qualquer um que encarne o suposto projeto serve. Te esconjuro!

Só fico com pena dos encarregados de traduzir o dialeto em que a doutora exprime seu pensamento confuso. Pra traduzir, é obrigatório ter entendido. Nós não entendemos, e intérpretes estão no mesmo barco. Que mensagem estarão passando a atônitos finlandeses e russos?