Filho de brasileiros

José Horta Manzano

Faz mais de seis meses que um bando de insurgentes autodenominado Ejército del Pueblo Paraguayo raptou um adolescente. Desde então, numa das modalidades criminosas mais repugnantes, o refém vem sendo mantido em cativeiro.

Filho de brasileirosO jovem, de pai e mãe brasileiros, nasceu no país vizinho. Dado que o Paraguai, exatamente como o Brasil e os outros países americanos, concede cidadania a todo aquele que nascer em seu território, o moço tem a nacionalidade paraguaia.

No entanto, o fato de ser detentor de um passaporte guarani não lhe cassa o direito à nacionalidade originária, legada pelos pais. Antes de ser paraguaio, o rapaz já era brasileiro por direito de sangue. Já nasceu com direito à nacionalidade verde-amarela. Está na Constituição.

Esse direito à nacionalidade paterna já lhe calhava antes mesmo do nascimento. Tivesse visto a luz nalgum outro país do continente americano, teria também dupla cidadania: a dos genitores e a do país de nascimento. No entanto, se tivesse nascido na Europa ou na maioria dos países fora da América, teria direito a uma só nacionalidade: a de seus pais. Pessoalmente, não sei de nenhum país europeu que conceda automaticamente a nacionalidade aos filhos de estrangeiros, ainda que nasçam em território nacional.

Expat 1O Brasil outorga a cidadania aos nascidos no território. Por extrapolação, costumamos imaginar que essa prática seja comum a todos os outros países. Não é. Universal é a transmissão da cidadania do pai (ou da mãe) para os filhos. Atribuir a nacionalidade por razão de nascimento no território é exceção. Prende-se a razões históricas e limita-se, em princípio, aos países do continente americano.

Todos os jornais brasileiros – todos, não vi exceção – vêm noticiando que «filho de brasileiros» foi (e continua) sequestrado no Paraguai. Com isso, subentendem que se trata de um jovem estrangeiro que, por acaso, é descendente de brasileiros. Não é assim. Filho de brasileiros, o rapaz herdou, além do patrimônio genético, a nacionalidade. Diga-se, portanto, que «adolescente brasileiro» continua sequestrado e mantido em cativeiro privado no Paraguai.

Afinal, filhote de gato, só porque nasce no forno, não é biscoito.

Os bandidos agradecem

João Eichbaum (*)

Suponhamos o seguinte: um marginal com 18 anos de idade, de tocaia na saída do colégio, rapta uma menina. Leva-a consigo, sem fazer qualquer exigência de resgate, e a mantém em seu poder por longo tempo. Tenta seduzi-la, mas ela resiste, não se entrega. Vencido pela obstinação da garota, o raptor resolve se descartar dela. Então, vende-a a uma rede de prostituição. Da menina, levada para outro Estado da Federação, a família nunca mais terá notícia.

by Alecus (Ricardo Clement), desenhista mexicano-salvadorenho

by Alecus (Ricardo Clement), desenhista mexicano-salvadorenho

A pena do raptor não chegará a oito anos, o que lhe dá direito ao regime semiaberto. De acordo com a lei, o condenado ao regime semiaberto cumprirá pena em colônia penal agrícola ou industrial. Ou melhor, cumpriria. Desde a semana passada, por decisão do STF afinada pelo diapasão do STJ e de outros juízos e tribunais, o preso condenado ao semiaberto terá o direito humano de levar vida muito melhor do que a de suas vítimas. Desde que consiga emprego, nem que seja de faz de conta, ele só dormirá na prisão.

À desgraça da menina, que se perdeu para sempre, poderá o destino acrescentar mais um script infame: seus pais e familiares nunca mais a verão, mas o raptor, que foi causa da desgraça, poderá cruzar com eles todos os dias, sorridente e impune.

Essa torpeza foi incrustada na axiologia jurídica sob inspiração do ministro Barroso. Com seu ar evangélico, ele e mais oito acompanhantes estenderam a graça descolada para José Dirceu a todos os malfeitores do país condenados a menos de 8 anos de prisão.

Neste país, não se julga. O ato de julgar implica juízo de valor a partir de duas premissas: a da norma, que é a premissa maior, e a do fato, que é a premissa menor. Entenda-se por norma a lei, o regulamento, a portaria, em suma, qualquer ato jurídico coercivo. Se o ato coercivo for ignorado, não existe premissa e, não existindo premissa, julgamento não há.

by Alecus (Ricardo Clement), desenhista mexicano-salvadorenho

by Alecus (Ricardo Clement), desenhista mexicano-salvadorenho

Assim, a jurisprudência que ignora a ordem legal do cumprimento de um sexto da pena para a progressão do regime ― e o trabalho externo implica progressão de regime ― não merece o nome de julgamento. Não passa de uma concessão gratuita de benefício, contaminada pela política ou sublimada pela caridade. Em nenhuma dessas hipóteses se vislumbra a obra de juiz autêntico, porque o verdadeiro juiz apenas julga, não faz caridade, nem política.

Agora é oficial: à omissão do Executivo, acrescenta-se a do Judiciário. Barroso juntou-se aos juízes que soltam bandidos por falta de vagas e de condições padrão Fifa nos presídios. “Para não sobrecarregar o sistema penitenciário”, ele mandou soltar os malfeitores. Quer dizer, é maior o direito destes do que o dever dos governantes. A sociedade que se lixe.

Nesta hora soam como rojões de advertência as palavras do advogado e escritor gaúcho Ricardo Giuliani: “o Judiciário só existe para si próprio e não para a sociedade”.

(*) João Eichbaum é advogado e escritor.
Edita o site joaoeichbaum.blogspot.com.br