Vitória da diplomacia brasileira

José Horta Manzano

Leio no jornal de hoje que a cúpula do G20 foi uma “vitória da diplomacia brasileira”. Tenho minhas reservas. Podiam dizer, com mais propriedade, que foi uma vitória da organização do evento, que:

não sofreu nenhum tropeço;

policiou por terra, mar e ar, abatendo drones intrusos;

preocupada com possíveis dificuldades masticatórias ligadas à idade avançada de alguns chefes de Estado, mandou servir-lhes pirarucu (que é peixe) e carne desfiada (que é molinha);

geriu com maestria o alojamento dos milhares de participantes, não deixando nenhum deles ao relento nas areias de Copacabana;

tocou com profissionalismo a complicada tradução multilíngue e simultânea das falas e dos discursos pronunciados em todas as línguas de Babel;

conseguiu convencer os cariocas a esvaziarem ruas e avenidas, sem fazer cara feia, para ceder passagem a alguns dos grandes deste mundo;

coordenar a presença de nossos graúdos com os graúdos de fora que pousavam ou decolavam do Galeão e requeriam uma acolhida à altura da ocasião. Há participantes que vieram de muito longe: alguns estão desde ontem voando de volta a seu país, onde só pousarão nesta quarta-feira à noitinha, hora de Brasília.

Entre outros, que me escapam neste momento, foram esses os pequenos ou grandes detalhes que compuseram a feira de vaidades que o Rio acolheu.

Quanto ao brado ufanista de “vitória da diplomacia brasileira”, acho-o exagerado. Quando o evento se abriu, já fazia dias que assessores e colaboradores tresnoitavam na confecção de um “comunicado final” que agradasse a todos os participantes ou, pelo menos, que não desagradasse frontalmente a nenhum deles.

É obra quase impossível. Em tese, há tantas posições quantos são os participantes. Todas divergentes entre si. Nessas horas, a solução é limar asperezas, aplainar desacordos, arredondar cantos, até que o texto se torne aceitável por todos. O resultado dessa busca de um denominador comum são comunicados finais insossos, pasteurizados, que não comprometem ninguém, que excluem dissensos e pontos de atrito.

Não se falou dos massacres provocados pela invasão da Ucrânia pela Rússia, não se deu importância aos massacres entre árabes e judeus. Sobraram vagas promessas de trabalhar pela erradicação da fome no planeta, arroz com feijão que ressurge a cada cúpula, seja ela qual for.

É o caso de se perguntar para quê servem essas cúpulas. Não tenho resposta exata e cravada, mas eu diria que, no mundo internetizado em que vivemos, não têm mais grande utilidade. Tudo o que se pode discutir em torno daquela imensa mesa, redonda ou em ferradura, pode ser debatido, com vantagem, numa videoconferência. Que, aliás, sai imensamente mais barata.

Nos anos 1970 e 1980, as reuniões do G7 (que já foi G5, G6, G8) eram um acontecimento. Numa era pré-internet, conferências presenciais eram indispensáveis. Naqueles anos, talvez, alguma decisão importante tenha sido tomada na ocasião desses encontros.

Hoje não é mais assim. Há grupos demais, conferências demais, reuniões demais. O que é demais cansa. Cada novo evento desse tipo suga a importância do anterior. Saibam meus caros leitores que, na Europa, não ouvi nem li uma linha sobre esse G20. Nada. Ninguém aqui ficou sabendo da extraordinária “vitória da diplomacia brasileira”.

Quando dois se reúnem, temos discussão séria e pra valer. É um pingue-pongue radical e frutuoso: se houver vontade de entrar num acordo, uma meta comum vai aparecer. Reunião de três participantes pode até funcionar, embora já não seja a mesma coisa. Mais que isso, complica.

Por outro ângulo, quando há uma certa uniformidade entre países participantes (PIB per capita, níveis de pobreza, avanço tecnológico razoavelmente compatíveis), as discussões tendem a ser menos ásperas e mais produtivas.

O chamado G20 é composto por países de grande disparidade de população, nível econômico, sistema de governo. Há democracias e autocracias medievais como Arábia Saudita e Rússia. Há países leigos e outros que se encaminham para tornar-se uma teocracia como Turquia e EUA. Há fortes diferenças em matéria de PIB (o da China é 37 vezes maior que o da África do Sul).

Nenhuma declaração de guerra jamais sairá dessas cimeiras. Nem tratados de paz, que necessitam seleção específica de participantes. Desse tipo de reunião, seja de G20, G7, Brics & congêneres, só podem sair esparadrapos – insuficientes para conter sangrias.

Mas já que divertem o povo e confortam o ego de organizadores e participantes, que se divirtam todos.

Paralelismo

José Horta Manzano

Muitas palavras têm sido criadas desde que a pandemia se instalou. É normal. Atos e fatos novos tendem a ser descritos por palavras novas. Em alguns casos, termos antigos que andavam esquecidos no dicionário se reabilitam e ressurgem pimpões e empertigados.

A própria palavra pandemia é um bom exemplo. De uso pra lá de restrito nos tempos de antigamente, voltou a circular com vigor assim que esse novo coronavírus se alastrou pelo planeta.

A palavra aparece em francês (pandémie), na altura dos anos 1750. Com pequenas adaptações, foi pouco a pouco adotada pelas demais línguas. É interessante notar que a língua inglesa, embora também conte com a palavra pandemia, dá preferência a pandemic, que é adjetivo na origem, mas substantivado nesse caso (pandemic disease = doença pandêmica).

Em nossa língua, uma palavra que andava meio fora de circulação e que ressurgiu agora é o adjetivo presencial. Ouve-se falar em aulas presenciais, por oposição a aulas à distância. É curioso constatar que ninguém, que eu tenha visto, ousou utilizar o antônimo natural de presencial, que é distancial.

É verdade que o adjetivo distancial não está dicionarizado. Mas não vejo razão pra esperar que apareça no Aurélio ou no Houaiss. Dicionários não impõem nem abolem palavras; eles só registram o que estiver em uso.

Por mim, se a aula (ou a conferência, a consulta, a conversa) não for presencial será distancial. Paralelismo não faz mal.

Novos termos

José Horta Manzano

Pandemias não agradam a ninguém. Trazem uma baciada de males e incômodos. Quanto mais duram, mais duradouros serão os transtornos. Lado bom, não há; parece que todos os lados são ruins.

No entanto, examinando bem, há que constatar que a covid está sendo propícia ao surgimento de termos novos ou à ressurreição de termos antigos, que voltam à moda reformados e com significado novo. Aqui estão alguns deles.

comorbidade
Palavra de uso antes raríssimo, estritamente reservada ao âmbito medical. Nem o Houaiss, nem o Aulette trazem o verbete. Comorbidade ocorre quando, a uma doença pré-existente num determinado paciente, vem se adicionar uma nova. Dado que está entre os principais fatores de risco, a comorbidade caiu na boca do povo.

presencial
Era termo raro, reservado para uso jurídico-policial. Ao frequentar os bancos da escola, nenhum de nós jamais se deu conta de que assistia a aulas «presenciais». Assim como o conceito não existia, o termo não era utilizado. O Houaiss dá dois exemplos: testemunha presencial, reconstituição presencial do crime. Hoje o termo é usado como contraponto a remoto.

remoto
Termo comum, presente na língua há séculos. Tem dois significados: tratando de tempo, indica o que ocorreu há muito; tratando de espaço, designa o que está fisicamente distante. No caso do ensino remoto, expressão de uso frequente, indica distância física entre educador e educando. Ainda não se cogitou em proporcionar ensino remoto no tempo, ou seja, ensino à moda antiga com intimidação e palmatória.

teletrabalho
A palavra é tão recente que ainda nem foi dicionarizada. É expressão bem mais simpática do que a pernóstica “home office”. A não ser que o indivíduo viva sozinho ou disponha de cômodo reservado, trabalhar em casa é complicado. Criança chorando, cachorro latindo, telefone tocando, adolescente escutando música em volume alto, campainha soando, tevê anunciando xampu – tudo isso atrapalha. Prefiro teletrabalho. É mais maneiro e parece menos cansativo.

alquingel
Nem sei se o produto existia antes da pandemia. Se existia, seu uso estava restrito a hospitais e outros ambientes onde esterilização é capital. Hoje encontra-se por toda parte. “Alquingel” é álcool em gel na voz do povo – palavra que parece não ter plural: “passa os alquingel aí!”. Dos termos que entraram na moda com a covid, é meu preferido. É menos perigoso que comorbidade e menos cansativo que teletrabalho. E, ainda por cima, protege. Que mais pedir?