História em três tempos

José Horta Manzano

A decepção
Confesso que a notícia do afastamento do chanceler Serra, por motivo de saúde, me deixou consternado. Compreendo que o ministro não se sinta mais à altura de exercer o cargo extenuante de chefe das Relações Exteriores. Além de completar 75 anos semana que vem, o político passou por cirurgia na coluna vertebral em dezembro. Operação da espinha, sacumé, costuma deixar sequelas. Teve de pendurar as chuteiras.

Fiquei com muita pena. Depois de 13 anos de trevas, de chanceleres mambembes e de identificação com tiranetes e ditadores, o Brasil redescobria as virtudes de uma política externa altiva, realista, condizente com o peso econômico do país. Com a aposentadoria do titular, tudo parecia voltar à estaca zero.

O insulto
Dia 18 de junho de 2015, uma comitiva de oito senadores brasileiros ‒ encabeçada por Aloysio Nunes Ferreira, presidente da Comissão de Relações Exteriores ‒ abalou-se para a Venezuela com a intenção de encontrar-se com opositores do bolivarianismo e de mostrar solidariedade aos presos políticos e aos oprimidos pelo regime rastaquera.

À época, a doutora ainda ocupava o trono no Planalto. Obedecendo, tudo indica, a ordens emanadas de Brasília, nosso embaixador em Caracas recebeu os senadores no aeroporto, cumprimentou-os e desapareceu deixando o grupo sem cicerone(*).

Ao descer do avião da FAB, os senadores brasileiros foram hostilizados, aos gritos, por grupos de militantes paramentados. «Fora! Fora!» e «Chávez não morreu, multiplicou-se!» eram as palavras de ordem. Objetos e frutas foram arremessados em direção ao micro-ônibus dos visitantes. Nenhum gesto foi esboçado para proteger os senadores.

O objetivo do regime venezuelano era impedir que a comitiva cumprisse o programa traçado. Para engarrafar a via de acesso do aeroporto ao centro da cidade, um túnel foi fechado para limpeza, caminhões miraculosamente enguiçaram pelo caminho, obras bloquearam a avenida da noite pro dia. Resultado: prisioneiros da balbúrdia, os brasileiros não conseguiram sair do aeroporto. Desenxabidos, não tiveram outro jeito senão embarcar no avião e voltar a Brasília. No Palácio Miraflores e no do Planalto, os orquestradores do triste espetáculo hão de ter esfregado as mãos, felizes com o sucesso da esperteza.

Quando figurões da República são ofendidos em terra estrangeira, convém encenar um gesto de reclamação. O governo da doutora se contentou de um protesto mole e protocolar, mandado por via diplomática. A coisa ficou por isso mesmo.

O ricochete
O mundo dá voltas. Para substituir o chanceler Serra, doutor Temer teve a iluminação de designar o senador Aloysio Nunes Ferreira, justamente o chefe dos visitantes enxotados da Venezuela ano e meio antes. O Brasil, país desmemoriado, já havia esquecido o gravíssimo incidente de Caracas. O novo chanceler, na qualidade de vítima principal, guarda memória viva.

Logo nos primeiros dias na nova função, o chanceler mostrou a que veio. Em entrevista ao Estadão, subiu o tom já demonstrado por Serra. Declarou que a Venezuela «já desbordou a normalidade democrática», ou seja, que o vizinho ‘bolivariano’ já amarga regime ditatorial. Disse mais. Ressaltou a «pouca importância» da chanceler da Venezuela, dado que, no país dela, «o importante são os carcereiros». Essa deve ter doído.

Para Caracas, a porta de entrada no Mercosul fechou-se de vez. Desta vez, nem pela janela vão entrar.

Moral da história
Quem ‘gospe’ pra cima periga receber uma ‘guspida’ na cabeça.

(*) Cicerone
Segundo alguns estudiosos, o étimo tem origem no nome do tribuno romano Cicero, famoso pelo dom da retórica. Contam que o homem tinha uma verruga em forma de grão-de-bico bem na ponta do nariz. Em latim, essa leguminosa se diz cicer ‒ cece em italiano, pois chiche em francês. A atual acepção do termo ‒ guia turístico ou acompanhante de visitantes ‒ deriva da facilidade oratória de Cicero. Não há consenso quanto à origem. Assim mesmo, essa explicação do grão-de-bico, se não for verdadeira, é um achado.

Quem avisa, amigo é

José Horta Manzano

Semana passada, quando de visita à Turquia, dona Dilma declarou que não havia por que se preocupar com ataques terroristas durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Segundo ela, o Brasil «está muito longe», fato que lhe parece garantia suficiente de imunidade.

Laurent Fabius 1Declaração de presidente ecoa. As palavras de dona Dilma deram a volta ao planeta em poucos segundos e chegaram aos ouvidos de todas as chancelarias. O pronunciamento deixou petrificado um governo francês já açoitado pelos sangrentos atentados ocorridos dias antes.

O descaso demonstrado por nossa mandachuva é criminoso, mormente quando se leva em conta o fato de já haver precedentes. De fato, tragédia terrível ocorreu durante os Jogos Olímpicos de 1972 em Munique. Naquela ocasião, em ataque à delegação de Israel, terroristas deixaram um rastro de 11 atletas e um policial mortos. No esporte olímpico, ninguém se esqueceu dessa desgraça. No Planalto, não é espantoso constatar que ninguém sabia de nada.

Percebendo que o governo brasileiro, por ignorância ou arrogância, não se estava dando conta do perigo que se anuncia, a França despachou rapidinho a Brasília o Ministro de Relações Exteriores, Laurent Fabius. Veio conversar com nossa presidente e com senhor Mauro Vieira, titular do MRE brasileiro.

Laurent Fabius 2O que foi dito? Não se sabe exatamente, mas supõe-se que o visitante estrangeiro não tenha gastado seu domingo num passeio ao Planalto só para tomar chazinho com nossos mandatários. Ele certamente veio alertar para o forte risco que paira sobre Rio 2016.

Se observarmos bem as fotos tiradas na ocasião, vamos ver que, na chegada ao palácio, Monsieur Fabius segura o braço de nosso chanceler. O gesto é, ao mesmo tempo, amistoso e revelador. Lembra o indivíduo mais experiente que dá conselho de amigo. É como se dissesse: «Não bobeie, caro Mauro Vieira, o Brasil não está tão ‘longe’ assim.»